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Ela criou primeiro fundo para direitos de mulheres e pessoas trans do país

Amália Fischer, criadora do fundo Elas+ - Divulgação
Amália Fischer, criadora do fundo Elas+ Imagem: Divulgação

Lígia Nogueira

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

27/02/2022 06h00

A mexicana-nicaraguense Amália Fischer, 66 anos, chegou ao Brasil para um doutorado em comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Era a década de 1990, uma época em que o país estava começando a se abrir para a ideia do investimento social. Ela desembarcou por aqui depois de 20 anos dando aulas na faculdade de ciências políticas e sociais da Universidade Nacional Autônoma do México, período no qual conheceu e se tornou amiga da artista feminista Lucero González, criadora do primeiro fundo para mulheres da América Latina — o Fondo Semillas.

Foi inspirada no Fondo Semillas que Amália decidiu se juntar a outras quatro mulheres, todas ativistas e feministas lésbicas, para criar o primeiro fundo independente voltado exclusivamente para a promoção de direitos de mulheres e pessoas trans no Brasil. A ideia era promover e fortalecer o protagonismo, a liderança e os direitos das mulheres, mobilizando e investindo recursos em suas iniciativas coletivas.

"No México eu era próxima da filantropia direcionada e feita por mulheres. Sabia da importância de construirmos um espaço para termos recursos para nossas ações. Quando cheguei aqui, Fernando Henrique Cardoso havia acabado de assumir a presidência, e, dada a trajetória da luta feminista no Brasil e toda a construção do terceiro setor nesse momento da democracia brasileira, comecei a falar com várias feministas sobre a importância de criarem esse fundo. A maioria achava que isso era loucura, que não ia funcionar. Eu insisti tanto que elas falaram: 'Faça você'. Então eu aceitei o desafio", conta Amália em entrevista a Ecoa.

Enquanto tocava a sua tese de doutorado sobre o movimento feminista na América Latina no período entre 1975 e 1995, ela se uniu a Neusa das Dores Pereira, Raquel Silva, Izabel Ferreira e Madalena Guilhon para fundar o Elas+. "São mulheres negras e não negras que vêm de diferentes movimentos: feministas, de mulheres, da cultura, das rádios comunitárias etc."

A principal estratégia da iniciativa, desde então, é mobilizar recursos não só no Brasil, mas também no exterior, para investir nas ações desses grupos. Empresas, fundações, organismos internacionais e pessoas físicas são parceiros de investimento para que grupos e organizações de mulheres e pessoas trans atuem em seus territórios.

"Começamos apoiando as mulheres que têm menos acesso aos recursos: negras, lésbicas, pobres, com valores entre R$ 2 mil e R$ 5 mil", conta a coordenadora-geral, acrescentando que não foi fácil fazer os doadores entenderem a importância da equidade de gênero.

"As mulheres tinham os mesmos direitos que os homens de acordo com a Constituição, então havia uma ideia de que não era mais necessário falar sobre direitos das mulheres, de que ser feminista era algo fora de moda, que não fazia sentido. E dentro do terceiro setor não se apoiavam causas menos palpáveis como o feminismo, direitos humanos e socioambientais. Se apoiava muito mais a conservação do meio ambiente do que as pessoas que ajudavam na conservação dos biomas, que vivem nos biomas, que lutam por eles", avalia Amália.

Um dos maiores desafios foi posicionar os direitos das mulheres dentro do âmbito da filantropia e do investimento social privado.

Amália Fischer, fundadora do Elas+

Em 21 anos de atuação, o Elas+ tem realizado diálogos com participantes de diferentes grupos para escutar ativistas, intelectuais e especialistas convidados. A ideia é que, a partir dos conhecimentos combinados, seja feito um mapeamento das necessidades de investimento. Os temas levantados contribuem para a elaboração de editais.

No ano passado, a iniciativa fortaleceu sua governança com três novas conselheiras — duas pessoas trans negras e uma indígena —, reafirmando o seu compromisso com a diversidade, segundo Amália. "Aprofundamos a confiança nas mulheres, sensibilizamos novos parceiros e lançamos o maior edital de toda a nossa existência." O Mulheres em Movimento distribuiu mais de R$ 4 milhões em doações diretas para o fortalecimento institucional de 119 grupos e organizações lideradas por mulheres e pessoas trans.

Como funciona o fundo?

O Elas+ lança dois ou três editais por ano sobre diversas temáticas — eles são públicos e as organizações e coletivos podem se inscrever por meio de uma plataforma. Agora, conta Amália, o foco está em fortalecer organizações mais antigas e coletivos. A seleção é feita por um comitê diverso formado por mulheres que não estão entre aquelas que enviaram propostas, para que haja a maior transparência possível.

"Além disso, o Elas+ reúne as mulheres selecionadas para conhecerem as propostas umas das outras e articularem um trabalho em rede para potencializar recursos e ações. Nós temos um sistema de acompanhamento e de avaliação dos resultados com o intuito de que os coletivos e as organizações se vejam a si mesmos e possam melhorar sua atuação. O intuito é fortalecer esses grupos, muito mais do que fiscalizar."

Um dos diferenciais do fundo é apoiar tanto organizações quanto coletivos informais que atuam entre os grupos de mulheres negras, indígenas e LBTs. "Os coletivos sabem exatamente o que se precisa nos territórios, nas comunidades, nos movimentos, muito mais do que quem financia e quem doa", diz Amália.

Apoio a associações e grupos de mulheres indígenas

Marciane - Divulgação - Divulgação
Marciane Tapeba, 30 anos, coordenadora da Articulação das Mulheres Indígena do Ceará
Imagem: Divulgação

A Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará (AMICE) foi uma das contempladas pelo fundo em 2020. Entre outras iniciativas, o grupo realizou um mapeamento da violência contra a mulher indígena, em uma ação até então inédita no estado.

"Tanto o Ceará quanto o Brasil têm números altos de violência contra a mulher e no território indígena não é diferente", afirma Marciane Tapeba, 30 anos, coordenadora da AMICE e vice coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas Tapeba (AMITA).

O grupo também recebeu apoio para participar da Marcha Nacional de Mulheres Indígenas, em setembro de 2021. "Foi muito importante ter esse apoio enquanto movimento e poder trocar com outras mulheres em Brasília para fortalecer a nossa luta em nível nacional."

Impactos da pandemia

Em novembro de 2021 o Elas+ divulgou os resultados de uma ampla pesquisa sobre o impacto da pandemia de covid-19 em organizações da sociedade civil lideradas por mulheres e pessoas trans no Brasil. O estudo — um retrato de 953 organizações da sociedade civil (OSC), formais e informais — mostra como o contexto sociopolítico e econômico brasileiro levou à perda de direitos e à precarização.

A pesquisa levantou dados sobre trabalhadoras domésticas, profissionais do sexo, mulheres negras, empreendedoras sociais, mulheres com deficiência, jovens, mulheres do campo, quilombolas, ativistas da arte e da cultura e traz informações até então inéditas sobre organizações lideradas por mulheres indígenas. Um dos diferenciais é a contribuição sobre as organizações informais, grupos sociais que não integram bancos de dados de pesquisas. O resultado pode ser conferido aqui.

Amice - Divulgação - Divulgação
Marcha Nacional de Mulheres Indígenas, em setembro de 2021
Imagem: Divulgação