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'Cura gay': Entenda por que terapias de conversão sexual são um equívoco

Getty Images
Imagem: Getty Images

Antoniele Luciano

Colaboração para Ecoa, de Curitiba (PR)

19/02/2022 06h00

Parlamentares franceses aprovaram recentemente uma lei que criminaliza qualquer tentativa de "terapias de reorientação" sexuais, que buscam impor a heterossexualidade normativa a lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Com a nova legislação, semelhante à adotada no Canadá no ano passado, psicólogos e outros profissionais de saúde adeptos da chamada "cura gay" poderão ser penalizados com até 3 anos de prisão e multa de 45 mil euros, o equivalente a R$ 266 mil.

No Brasil, métodos de reversão de orientação sexual são proibidos pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) desde 1999. No entanto, nos últimos anos, o assunto tem retornado à pauta, levando o órgão a se mobilizar na Justiça para evitar o enfraquecimento da resolução que trata do tema, a 01/99. Foi somente em 2020 que o Supremo Tribunal Federal (STF) extinguiu uma ação popular que buscava, desde 2017, regularizar práticas de conversão sexual.

Mesmo sendo consenso junto à comunidade científica, por que, tantos anos depois, essa mobilização brasileira e leis como a francesa e a canadense ainda são necessárias? Qual o caminho para que a sexualidade da população LGBTQIA+ seja respeitada? Ecoa ouviu especialistas para explicar essas e outras questões relacionadas ao assunto.

Por que a "cura gay" não existe?

Presidente do CFP, a psicóloga Ana Sandra Fernandes salienta que não há cura para algo que não é considerado uma patologia. Desde 1990, a homossexualidade foi retirada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).

É por isso, enfatiza Ana Sandra, que a noção de que a psicologia poderia "curar" orientações sexuais, algo inerente à identidade de cada pessoa, não passa de um equívoco. "Entendemos que não é doença, então como reverter algo que não é doença? Esse é o nosso entendimento e é assim que orientamos os psicólogos", diz.

Não raramente, lembra ela, há grupos que ainda tentam submeter pessoas a esses tratamentos. Hoje, caso seja comprovado que um profissional foi responsável por isso, ele deve responder a um processo de ética, podendo ter cassado o direito de exercer a profissão. "A psicologia não permite que façam uso dessas práticas que comprovadamente têm promovido muito mais sofrimento, dor e exclusão", observa.

Qual o risco para pessoas submetidas a esses métodos?

O sofrimento da população LGBTQIA+ não decorre de sua orientação afetiva e sexual, mas, na maioria das vezes, das condições sociais, históricas e políticas, analisa a psicóloga. Conforme Ana Sandra, a perspectiva dominante de cultura heteronormativa atribui um sentido pejorativo às vivências e expressões dessas pessoas, prejudicando sua qualidade de vida. Ao tentar reverter essa orientação por meio de uma terapia, corre-se o risco de provocar ainda mais danos.

Segundo a presidente do CFP, o órgão revisou mais de 80 estudos relacionados ao tema e concluiu que esses métodos, além de não apresentarem eficácia, causam prejuízos como depressão, ansiedade e podem evoluir, inclusive, para tentativas de suicídio. "A pessoa não deixa de ser quem ela é. É um processo de sofrimento incalculável, uma tortura. Por isso, é extremamente importante que as nações possam rever seus códigos, suas legislações", define.

Por que ainda são necessárias leis como a aprovada na França?

A necessidade desse tipo de mobilização se deve ao fato de a sexualidade, mesmo no século 21, ainda ser alvo de vigilância, comenta o presidente do Grupo Dignidade, organização LGBTQIA+ sediada em Curitiba, Toni Reis. "Isso vem da Idade Média. Tem gente que acredita que é pecado mortal, crime ou doença, isso ainda está na mente das pessoas. Infelizmente, a nossa cultura é muito heteronormativa", salienta ele, ao recordar que, na adolescência, chegou a ser levado ao médico porque a família também entendia que ser gay era uma doença.

A presidente do CFP pontua que ainda é necessário avançar muito no tema. Ela classifica o problema como urgente, devido à violência e dificuldade de acesso a direitos a que essa população ainda é submetida. "É preciso entender que é uma pauta de todas as pessoas, independentemente de orientação sexual. Uma sociedade onde as pessoas ainda morrem em função de sua orientação é uma sociedade perigosa para todos", reforça.

Qual o caminho para que haja respeito à diversidade sexual?

A criminalização das terapias de reversão sexual, aponta Ana Sandra, é importante porque estabelece limites, mas não representa o único caminho. Hoje, o CFP tem feito um trabalho de orientação e fiscalização sobre o assunto. Em 2019, o órgão lançou um livro com relatos de pessoas submetidos à "cura gay", o "Tentativas de Aniquilamento e Subjetividades LGBTIs", como forma de mostrar aos profissionais o impacto dessa prática. Apesar de não citar números, Ana lembra que ainda são recebidas denúncias para averiguação e existem processos correndo em sigilo junto à entidade.

Toni Reis observa que tratar do assunto no ambiente escolar também pode ajudar a estimular o respeito à singularidade de cada pessoa. Ele relata que uma pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) apontou que 40% dos meninos entrevistados não gostariam de estar uma sala de aula com um colega homossexual. Esse dado, avalia ele, sinaliza a necessidade de trabalhar a não-violência nesse ambiente. A Lei 13.185/2015, que trata do bullying, pode ser uma aliada, uma vez que vítimas dessa violência costumam acumular diversos tipos de discrminação.