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Com baixa visão, professor de música abriu caminhos para educação inclusiva

O músico e professor Renato Brandão - Arquivo pessoal
O músico e professor Renato Brandão Imagem: Arquivo pessoal

Danilo Casaletti

Da Republica.org

06/01/2022 06h00

A baixa visão, derivada da doença de Stargardt, nunca foi um fator limitante para o professor de artes Renato Brandão, manauara de 45 anos. A diminuição da visão central, característica da doença, começou a se manifestar quando ele tinha 15 anos. Ele estudava música desde os 12 anos, quando a mãe o matriculou em aulas de flauta doce e inicialização musical.

"Não fui para a música por conta da falta de visão. Era algo de que sempre gostei de fato, além de ser um complemento educacional", afirma. À medida que a doença avançava, Brandão precisou desenvolver maneiras para continuar seu aprendizado, o que o levou a criar métodos de ensino que até hoje servem de inspiração para alunos e professores de música.

Sem poder ler as partituras convencionais — Brandão tem a visão periférica —, ele ampliou sua área de interesse. Em vez de se dedicar apenas ao erudito, no qual a notação musical é algo essencial, ele passou também a se dedicar ao popular que, segundo ele, é mais "perceptivo". Graças à ampliação de seu repertório, na segunda metade dos anos 1990 foi contratado para trabalhar no corpo artístico de uma rede de hotéis, tocando música regional.

No início dos anos 2000, foi aprovado em concurso e se tornou músico titular da Orquestra de Violões do Amazonas, que atuava dentro do Teatro Amazonas, em Manaus, um dos mais importantes do Brasil.

Dessa experiência veio mais uma adaptação. Brandão passou a ampliar a matriz gráfica das partituras para que, depois de impressa, ele pudesse ler e executar as obras escolhidas pelo maestro. "Eu recebia as partituras iguais às de todos os músicos e trabalhava em cima delas", conta. Foram cinco anos em companhia do grupo — ele era o único com deficiência visual.

Apesar disso, Brandão não vê o meio musical fechado às diferenças. "A orquestra é um lugar de excelência. O que falta é uma reforma da proposta educacional no país para que músicos em potencial, deficientes ou não, possam adquirir conhecimento para conseguir entrar em uma. Elas estão de portas abertas. Não é algo restrito. A arte, em si, já é um meio inclusivo."

Atuando na educação

Foi na educação que Brandão passou a fazer a diferença. Aprovado em concursos para atuar como professor em colégios da prefeitura de Manaus e do estado, conseguiu formar as primeiras turmas de alunos de música com deficiência visual, compartilhando o que havia desenvolvido até então. Na Biblioteca Braille do Amazonas, em Manaus, subordinada à secretaria estadual de cultura, Brandão criou um estúdio de gravação para audiolivros.

"Qualquer professor aplica um método, alguns usam metodologias mundialmente famosas. Mas cada um também usa de processos próprios. Foi o que eu fiz. Isso favorece a todos", afirma Brandão. "Mostro como percebo a música subindo ou descendo, os movimentos musicais e a compreensão melódica que, na percepção auditiva, não funciona muito como algo escrito e sim algo tátil, olfativo. Não me lembro de um papel de pauta em branco e sim de algo que já ouvi ou que associei. Vale dizer que isso não é um privilégio da pessoa com deficiência. Qualquer um pode fazer isso. É nisso que eu acredito: a música não é visual e sim perceptiva. Tudo para mim tem música", explica.

Com baixa visão, a professora de inglês Eloisa Souza, 26, teve aulas de violão com Brandão entre 2009 e 2010 na Escola Estadual Maiara Redman Adbel Aziz. Sem nunca ter tido contato anteriormente com o instrumento, Eloisa lembra como foi importante aprender a tocar com o método que Brandão lhe aplicou. O professor dava um número a cada casa e a cada corda do violão. "Foi essencial porque, para mim, é muito complicado ler partitura, com aquelas bolinhas pequenas. Ele anotava e eu sabia exatamente qual nota tocar. Foi fácil de aprender, sobretudo os solos", conta.

Eloisa se lembra de outra valiosa lição do professor: tirar a música de ouvido. "É tudo muito natural para mim. Eu era muito tímida, fechada. Aprender música fez eu me expressar melhor. Hoje dou aulas, fico na frente de alunos crianças e adultos. O professor Renato é uma inspiração para mim."

Na Escola da Cidadania do governo estadual do Amazonas, que abriga projetos federais de núcleos pedagógicos da Lei da Pessoa com Deficiência — o que inclui deficiências visuais, auditivas e físicas, mobilidade reduzida e pessoas com transtornos mentais —, Brandão implementou entre 2005 e 2009 uma proposta de abordagem para facilitar o acesso desse público às artes em geral.

Nela, Brandão trabalhava com teatro, dança, música, pintura, criação de rádio, gravação de discos. Criou um circuito sensorial no qual, em uma sala escura, as pessoas caminhavam por um piso com uma textura especial. As flores e folhas da floresta davam o aroma para a sala. Caixas de sons reproduziam os sons de animais. "Queria que as pessoas vissem o mundo de outra forma", diz ele.

Acessibilidade no meio universitário

Aprovado em um novo concurso, desta vez para a Faculdade de Artes da Universidade Federal do Amazonas, na cadeira de produção sonora, Brandão foi então exercer sua grande paixão: gravar discos e fazer trilhas sonoras. Desde 2010, dá também aulas de violão, análise musical, história da música, flauta doce e ukulele.

Na universidade, ele também implementou o EUAPOIO, um núcleo de acessibilidade que é exigência legal do governo federal e no qual atuou até 2018. O núcleo tem como principal objetivo oferecer um ambiente favorável para que o aluno com deficiência consiga se desenvolver no ambiente acadêmico. A comissão conversa com o aluno e identifica em quais pontos pode colaborar. Essa ajuda pode acontecer por meio de um curso de informática, do desenvolvimento de um material adaptado, da tradução de textos em português para Libras, a língua brasileira de sinais, ou de orientações de professores e coordenadores do curso.

Atualmente, quem está à frente do núcleo — ou comissão, como também é chamada — é o servidor Everaldo de Oliveira Mesquita, 48, que está na Federal do Amazonas desde 2013. Ele, inclusive, foi acolhido por Brandão logo que chegou para assumir seu posto, inicialmente no setor de Recursos Humanos. Ficou dois meses no núcleo tendo aulas de informática.

"Foi fundamental para mim. A gente passa anos estudando para um concurso, empolgado, e quando assume dá um desespero no sentido de 'o que farei aqui agora?'. O professor Renato me levou para o núcleo para trabalhar minhas dificuldades", conta Mesquita, que perdeu a visão aos 7 anos de idade.

Mesquita, único servidor do núcleo de acessibilidade da UFAM, conta com uma equipe formada por três bolsistas monitores para dar suporte a 38 alunos com deficiência — estrutura bem distante da ideal e até da própria lei federal que determina que um núcleo de acessibilidade tenha um corpo técnico formado por professores, assistentes sociais, pedagogo e psicólogo, além de um servidor técnico.

"Trabalhamos na garra, pela causa", diz ele. "Costumo dizer que a parte mais fácil é ingressar. Difícil é concluir o curso. As universidades ainda não estão preparadas para lidar com o diferente. Cada pessoa tem uma necessidade. Se tiver 100 cegos dentro da universidade, haverá 100 necessidades diferentes."

A professora de música Manuela Tapajós, 30, foi aluna de Brandão na graduação — a disciplina de educação inclusiva é obrigatória na grade. Ela diz que aprendeu muito com o docente. "Ele é bem inteirado com a tecnologia e é um profissional incrível. Todo o seu conteúdo é digitalizado. Ele usava uma tela de TV no lugar do monitor e programas que transformam texto em som. Ele também nos ensinou a ler e a escrever em braile", conta.

Manuela diz que os ensinamentos de Brandão foram importantes — ela ainda trabalhou por um período com o professor — para saber de que maneira tratar, por exemplo, uma criança cega ou com baixa visão. "Não é apenas passar o conteúdo por passar. A criança precisa aprender de fato. Eu tenho a obrigação de dar todos os meios para que ela consiga isso e seja aprovada por mérito. Apenas ter empatia não me ajuda e nem ajuda o aluno. É preciso saber como agir, e isso o professor Renato nos ensinou", afirma.

Explorando outras áreas

Brandão continua dando aulas para a educação especial, apesar de não ser mais o centro de suas atividades. Ele nutre um sentimento quase de dever cumprido por ter avançado no tema em uma época em que a inclusão ainda engatinhava. "Há 20 anos, quase ninguém falava sobre isso. Atualmente, temos muitos profissionais na área, os congressos educacionais discutem essa questão."

Além da produção e gravação de discos, Brandão, que concluiu o doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia, pesquisa a história da música amazônica e sua proximidade com países como Peru, Bolívia, Equador e Venezuela. Adora viajar pelo mundo como mochileiro.

"Quando vejo estudantes ingressando em capacitação para educação especial sinto uma esperança, sobretudo porque eles podem ajudar o deficiente a ser o que ele deseja. Porque eu quero e me formei para ser o que eu sempre desejei: um profissional. Não quero ser apenas ligado à educação 'especial', não por maldade ou rancor, mas porque quero experimentar outras áreas. Não posso ser piloto de avião, por exemplo, mas posso ser um bom músico, um bom professor universitário."

Esta reportagem foi desenvolvida em parceria com a Republica.org, organização social apartidária e não corporativa que se dedica a contribuir para a melhoria do serviço público no Brasil, em todas as esferas de governo.