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Em "Pé no Barro", Lene Souza conta o dia a dia do MTST em formato de poesia

A poeta Lene de Souza  - Arquivo pessoal
A poeta Lene de Souza Imagem: Arquivo pessoal

Sibele Oliveira

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

19/11/2021 06h00

Ocupamos pelos legítimos direitos negados, sonegados.
Ocupamos, porque plantamos, mas não podemos comer,
produzimos, mas não podemos comprar,
construímos, mas não podemos morar.

Esses são versos do livro "Pé no Barro" (editora Funilaria), escrito por Lene Souza, 58, que já trabalhou com educação e autodefesa no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e atualmente é uma das responsáveis pelo setor de arte e cultura. A intenção da autora é que a obra - que será lançada no fim de novembro, após campanha de financiamento coletivo - chegue às mãos de todas as pessoas que vivem em ocupações — seja por meio de doação ou vendida a um preço acessível. Para Lene, é uma forma de levar a elas esperança.

Marilene Ferreira de Souza ganha a vida trabalhando com educação infantil em Cotia (SP) e vive numa casa alugada em Embu das Artes. Mas, por muito tempo, morou em ocupações como a Roque Valente, Paulo Freire, Dona Deda, Capadócia, Vila Nova Palestina e Marielle Franco, todas na zona sul da Grande São Paulo. Tirou inspiração para o livro das entranhas desse dia a dia. Sua poesia, conta, é um grito contra as dores e injustiças com as quais convive, contra tudo o que vê de errado.

Ao longo de uma década, Lene anotou conversas, pensamentos compartilhados por outras pessoas e sentimentos colhidos na correria de atos do movimento. Esses registros, antes compartilhados em saraus do MTST, deram vida ao seu primeiro livro. "São as lutas, as ocupações por onde eu passei, as nossas pautas políticas nos últimos 10 anos, as denúncias de um sistema opressor. São poesias que trazem a questão do feminicídio, da opressão, da violência doméstica e da violência de gênero", diz.

Capa do livro "Pé no Barro", de Lene de Souza - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Pé no Barro", de Lene de Souza
Imagem: Divulgação

Poeta, como é conhecida nas ocupações, ela batizou a obra com uma expressão comum no movimento. "O barro é o que nos faz. A ocupação é feita de lona, luta e barro. Nós entramos e ocupamos zonas de interesse social dentro das várias periferias de São Paulo. Ali vai ter moradia popular, uma escola, um hospital popular. Mas é um terreno nosso, que já está pago. Muitas vezes os proprietários estão devendo 'milhões de trilhões'. Quando entramos ali é o barro que vamos pisar, construir a nossa luta", resume.

Lene não recorre à poesia para abrandar a realidade, embora a veja como um jeito gostoso de juntar as palavras. É sensível à arte de compor versos desde que se entende por gente. Criada pela avó paterna em Itamira, interior da Bahia, desenvolveu uma ligação forte com a terra, a fé e as palavras. Vivia com intensidade a lida na fazenda, as canções e as rezas na calçada. Quando a avó ficou doente, mudou-se para São Paulo, aos sete anos. Mesmo estando na companhia dos pais, ficou aflita ao se ver cercada de asfalto, grades e muros.

Mas não se esqueceu das "pelejas de palavras" de que os tios cordelistas, que ficaram na Bahia, faziam parte. Passou a se encantar com livros. Lia de tudo, de gibis a autores importantes como Clarice Lispector e Machado de Assis. Nessa imersão literária, descobriu-se apaixonada por Hilda Hilst e Carolina de Jesus. Quando entrou na faculdade de Ciências Sociais na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), integrou a militância estudantil. Participou de manifestações como as Diretas Já. Mas precisou trancar o curso para poder cuidar do filho e foi trabalhar em ONGs.

"Arte não é coisa de elite"

Poeta conheceu o MTST em 2011. Na época estava separada do marido, com quem teve três filhos, e morava numa casa alugada. Quando não conseguiu mais pagar o aluguel, mudou-se para a ocupação Roque Valente, em Embu das Artes. Passou a ter mais contato com as mulheres que tinham histórias parecidas com a dela. "O movimento me aproximou de mim mesma. Eu me silenciei e comecei a repensar toda a minha vida. Foi aí que a palavra começou a aparecer de maneira diferente do que era para a Lene Souza antes do MTST, militante do movimento secundarista e da juventude socialista na década de 1970. Ou mesmo na universidade".

Lene ajudava na cozinha e na organização do espaço. À noite, reunia-se com as pessoas dali à beira de uma fogueira para conversar e se olhar, como acontece em uma família. "Aí, o silêncio tomou conta e entendi que a palavra precisava tomar outro rumo. A palavra para o outro falar, o outro falando. Aí a poesia vai tomando conta. Eu, a Lene Souza, a Poeta, que eles tanto gostavam e gostam de ouvir, dizendo o que sente, o que entendeu, percebeu, o cheiro da noite, do dia, o cansaço, a dor no corpo." Foi nesses encontros que ela recebeu a sugestão de escrever um livro.

Lene de Souza - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A poeta Lene de Souza durante o Sarau das Andorinhas, organizado pelo MTST
Imagem: Arquivo pessoal

Convidar os companheiros a expressar o que sentem e pensam é um dos trabalhos que Poeta mais gosta de fazer. "As pessoas acham que arte é coisa da elite. Não é isso. Os trabalhadores gostam de ler, de declamar, de cantar. Aquele momento que em percebem que não é só o peso dos dias, de acordar, trabalhar e pagar contas. Somos muito mais do que isso. O capitalismo nos colocou dentro dessa fornalha. Mas somos amplos e precisamos da vida se reinventando", diz. Daí a necessidade de fazer denúncias poéticas em prol de um mundo melhor e mais justo.

Além de poesias, Lene também escreve contos. Um deles, chamado "Sem riscos", foi premiado na mostra Cine Solar. Ela sonha concluir a faculdade de Letras e se especializar em literatura popular para pesquisar o cordel. Também planeja, talvez no ano que vem, publicar um livro de contos em prosa poética.

O outro sonho de Poeta é coletivo. "Abrir a janela da minha casa todos os dias com saúde para trabalhar. Abrir a janela e falar: 'Nossa! Aquela mana que estava desempregada, devendo aluguel, sem conseguir colocar comida na mesa, conseguiu um trabalho. Chegar na creche e ver aqueles maravilhosos, que são o meu respiro, me abraçando. Ver as plantinhas que tenho aqui do outro lado felizes. Sou uma mulher da terra. Gosto de ver as coisas crescendo, se multiplicando e felizes", completa.

Lene de Souza - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A poeta Lene de Souza durante manifestação do MTST, na avenida Paulista, em São Paulo
Imagem: Arquivo pessoal

O financiamento coletivo para o livro levantou mais de R$ 14 mil, o suficiente para 1.250 exemplares que serão editados e impressos. As ilustrações do livro, inspiradas na literatura de cordel, são do artista Otto Favacho.