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Furto famélico: por que subtrair comida para sobreviver não é crime?

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Imagem: iStock

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

26/10/2021 06h00

Execuções em praça pública, linchamentos e outras barbáries estão documentados na história e em livros como o clássico "Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão", do filósofo francês Michel Foucault. A obra publicada em 1975 é leitura quase obrigatória de muitos juristas e fala sobre a história das prisões e das punições, e sobretudo como as sociedades excluíram as barbáries de suas condenações.

Com o passar dos anos, o senso de justiça mudou em boa parte do mundo. As legislações abrandaram a punição ou excluíram a ilicitude de delitos como o furto famélico (quando a pessoa rouba "para comer"), como aconteceu no Brasil. No entanto, casos como o da mulher que ficou presa por cerca de 15 dias por furtar duas garrafas de refrigerante, dois pacotes de macarrão instantâneo e um pacote de suco em pó em um supermercado de São Paulo ainda acontecem.

A Justiça de São Paulo negou o pedido de habeas corpus da Defensoria Pública por duas vezes antes de sua soltura. O caso perdurou até chegar ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), que considerou o valor do furto insignificante e arquivou o processo. A norma não é obrigatória, mas orienta os juízes a desconsiderar furtos de valores irrelevantes e que não causam prejuízos.

"O caso dessa mãe se soma a diversas outras situações que a cada dia acontecem no Brasil e expressam o desespero de um número cada vez maior de pessoas que vivem a tragédia da fome. Manter na prisão essa mulher e tantas outras que cometem atos semelhantes é cruel e completamente dissociado de qualquer senso de justiça", opina Francisco Menezes, ex-presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e analista de políticas e programas da ActionAid.

No Brasil, uma pesquisa da Penssan (Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar) feita em dezembro de 2020 mostrou que 19 milhões de brasileiros estão em estado de insegurança alimentar grave - leia-se passando fome. Por outro lado, o direito à alimentação é expresso na constituição.

No Jd. Ângela, bairro periférico da zona sul de São Paulo, no açougue da rede de supermercados Extra, o estabelecimento tomou como regra entregar bandejas vazias aos consumidores depois de pesar a carne, mas só entregar o alimento depois que o cliente efetua o pagamento, como contou o colunista de Ecoa Rodrigo Ratier. De acordo com colaboradores a medida teria cerca de um ano e foi adotada na pandemia para evitar furto de carne. O mesmo procedimento não era adotado em outras lojas da rede. Para o presidente do Procon-SP, a medida é abusiva e 'inaceitável' e pediu fiscalização em supermercados da periferia e da região metropolitana de São Paulo.

Diante desse cenário, como identificar o que é furto famélico? Por que quem comete esse crime é isentado? Quais as outras alternativas para lidar com pessoas que cometem esses atos para sobreviver a situações de emergência e qual o papel do estado nisso? Ecoa conversou com juristas e cientistas sociais para responder a essas e outras questões.

O que é furto famélico e como se caracteriza?

O furto famélico se dá quando alguém furta comida, medicamentos ou qualquer outro item que seja imprescindível para sua sobrevivência ou de outra pessoa. Diferente do roubo, não deve haver uso de ameaça, violência ou arma.

O advogado criminalista Ricardo Martins, especialista em Direito Penal e Processo Penal e mestre em Direitos Humanos, explica que nesses casos não existe crime porque a pessoa agiu amparada pela excludente de ilicitude de estado de necessidade. "Não é nem uma causa de diminuição de pena, e sim da exclusão de crime propriamente dito", esclarece Martins.

"Como está expresso no artigo 24, alguns requisitos devem estar presentes para que se reconheça essa condição de necessidade. Entre eles, que a subtração seja o único recurso que o agente tem, e que o item seja capaz de remediar a emergência diretamente. Deve existir a insuficiência dos recursos adquiridos com o trabalho ou a impossibilidade de trabalhar dessa pessoa", explica Rogério Sanches Cunha, promotor de justiça e assessor do Centro de Apoio Criminal do MPSP (Ministério Público do Estado de São Paulo).

Entre as atividades de Cunha, está a assessoria em questões do dia a dia e a busca por melhores soluções para algumas decisões judiciais e aplicações de leis novas. O promotor preferiu não analisar diretamente as decisões do caso citado no início da reportagem, mas lembra que, para esse tipo de reconhecimento, o réu não pode ser reincidente. "Para reconhecer o estado de necessidade, temos que entender que não temos um criminoso habitual, aquele que se vale do crime como uma necessidade habitual", afirma.

Já o advogado criminalista analisa que o julgador [em primeira instância] do caso em questão levou em conta o fato de o réu ser reincidente na prática de furtos. Mas ele critica essa justificativa: "Prender alguém que furta para saciar a própria fome em época de pandemia é um absurdo jurídico e uma falta de compreensão e razoabilidade por parte do julgar", opina Martins sobre a prisão preventiva.

Como a lei pode agir em casos de furto de comida?

Se somados todos os itens furtados pela mulher presa, o valor à época daria um total de R$ 21,69. Manter alguém atrás das grades no Brasil custa em torno de R$ 1.916 por mês, de acordo com um levantamento feito pelo TCU (Tribunal de Contas da União) em 2019.

Cunha concorda que a prisão não é a melhor maneira de lidar com esse tipo de ocorrência e analisa que pode parecer razoável que o Estado não possa agir nesses casos - mas na verdade não é: "A atuação do Ministério Público precisa entender esse ambiente de miserabilidade que temos, mas essa situação não pode ser suportada pelo cidadão, tem que ser resolvida pelo governo", diz.

"Se para matarem a fome essas pessoas ficam furtando, então o Estado está jogando esse problema para o mercado em vez de resolvê-lo. Não agir pode dar voz a discursos armamentistas, que defendem que o Estado não está fazendo o seu papel na segurança", completa.

É possível manter quem furta por fome longe das celas

Mas é longe das grades que o problema pode ser resolvido de fato, defende o promotor. Para ele, o Estado deve estar presente não no sentido punitivo, mas sim através de políticas públicas, como melhor distribuição de renda. "Há ainda medidas alternativas, como chamar a pessoa ao fórum quinzenalmente para apresentar suas atividades, ter o acompanhamento de um assistente social e o apoio da prefeitura", aponta.

Para Cunha, ambientes como o da justiça restaurativa, em que se reúne vítimas e réus, pode resolver conflitos desse tipo sem que a prisão seja uma alternativa. "Se a aproximação do supermercado com essa mulher acontece, garanto que ela não furtaria mais esse estabelecimento. Mas, no fim, temos duas vítimas da omissão do Estado", opina o promotor.

Quem é culpado pela fome?

No jogo de vítimas e culpados pela fome, em que juízes, promotores e outros juristas por vezes se reúnem para decidir o destino dos que furtam refrescos e pacotes de bolachas, nem sempre se tem claro os possíveis culpados do problema social.

Para Marco Antonio Teixeira, sociólogo, pesquisador de pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim e coordenador científico do grupo de pesquisa Alimento para Justiça, a própria existência de furtos famélicos diz muito sobre a falta de direitos da nossa sociedade. "É um forte indício de que o direito à alimentação adequada no Brasil não está sendo garantido. Trata-se de um direito humano e constitucional, inscrito na constituição federal brasileira desde 2010, que está sendo violado. O Estado é o responsável por não garantir este direito", diz para Ecoa.

A sequência de cortes orçamentários em programas de segurança alimentar colabora para que o cenário de fome persista e se agrave no Brasil. Portanto, o problema não se deve apenas à pandemia de covid-19, de acordo com Menezes. "No primeiro dia de governo se extinguiu o Consea. Pratica-se uma política antiambiental de forma sistemática, que tem fortes impactos sobre a capacidade de produção de pequenos agricultores. A fome que explode agora é muito mais o resultado dessas escolhas que foram feitas", explica.