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Após "vaquinhas", elas criaram o 1º fundo para mulheres negras do Brasil

Equipe do Fundo Agbara com duas das contempladas em agosto de 2021. - Divulgação
Equipe do Fundo Agbara com duas das contempladas em agosto de 2021. Imagem: Divulgação

Ana Maria Alcantara

Colaboração para o UOL, de Londrina (PR)

06/10/2021 04h00

O que era uma "vaquinha online" que captaria dinheiro para financiar microempresárias acabou virando o Fundo Agbara, o primeiro do Brasil voltado exclusivamente a mulheres negras.

Com foco na inclusão, sustentabilidade e empoderamento de mulheres, o fundo acaba de completar seu primeiro ano. Desde que foi criado, arrecadou de colaboradores mais de R$ 100 mil, que foram distribuídos a negócios que impactaram cerca de 1,2 mil mulheres negras pelo país, direta e indiretamente.

"Queria dar voz a outras mulheres negras. E só é possível pensar e sistematizar uma iniciativa coletiva de transformação social quando temos acesso financeiro"
Aline Odara, idealizadora e diretora-executiva do Fundo Agbara

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), as mulheres negras são 27,8% dos brasileiros, o que representa a maior parcela da população se considerarmos os recortes de gênero e raça. Menos da metade desse gigantesco contingente exerce algum trabalho remunerado e, além disso, as que trabalham recebem 44% do salário de um homem branco, segundo dados da pesquisa Potências (in)visíveis: a realidade da mulher negra no mercado de trabalho, da Agência Box 1824.

Aline Odara, idealizadora e diretora-executiva do Fundo Agbara, também aponta para o histórico de ausência de políticas públicas de inclusão produtiva e empregabilidade para as mulheres negras no país, cujos efeitos se intensificaram durante a pandemia.

"Sempre empreendemos, desde o período escravocrata, com as 'pretas de ganho', as 'quitandeiras'. E esse empreendimento na vida das mulheres negras sempre aconteceu por falta de oportunidade, de inclusão, e é assim até hoje"
Aline Odara, idealizadora e diretora-executiva do Fundo Agbara

A vaquinha que se transformou em fundo

Além da mestranda em Educação Aline Odara, o Fundo Agbara surgiu da iniciativa da publicitária Fabiana Aguiar e da socióloga Mariana Pimentel, todas elas de Campinas (SP). Acostumadas a fazer "vaquinhas" online para subsidiar algumas necessidades de estudantes universitários, custear cursos ou até pagar o aluguel, as três resolveram oficializar o uso de arrecadações coletivas voltadas às mulheres negras e criaram uma associação. Nascia assim o fundo filantrópico em setembro de 2020.

"Agbara no idioma Iorubá significa força e potência e isso se mostrou real desde o início do fundo.
Aline Odara, idealizadora e diretora-executiva do Fundo Agbara

Ela conta que começou com 20 amigos, cada um doando R$ 20 por mês para ajudar uma mulher negra. Dali a cinco dias, já eram 100 doadores. Com uma campanha, dobraram para 200 apoiadores. Hoje, já são mais de 270 doadores individuais, conta Odara.

A mestranda em Educação Aline Odara e a publicitária Fabiana Aguiar, idealizadoras do Fundo Agbara. - Divulgação - Divulgação
A mestranda em Educação Aline Odara e a publicitária Fabiana Aguiar, idealizadoras do Fundo Agbara.
Imagem: Divulgação

Atualmente, oito mulheres gerenciam o fundo. O apoio financeiro tem duas linhas de trabalho: um de atendimento recorrente, que atende a cada mês três mulheres de São Paulo e duas mulheres de outros estados; outro, por meio de editais direcionados, abertos para atender empreendedoras de outros estados - o próximo, por exemplo, está previsto para ser lançado dia 10 de outubro e focará em mulheres negras trans no país.

As doações em dinheiro do fundo podem chegar a R$ 1 mil e são realizadas uma única vez para cada contemplada que, por sua vez, tem de oferecer uma contrapartida que propicie desenvolvimento comunitário.

Dona da marca de moda Zwanga, em Macapá (AP), a designer Rejane Soares recebeu, em setembro de 2021, um aporte de R$ 1 mil para investir em matéria-prima para confecção de produtos e no espaço físico de sua empresa, que é usado como local de trabalho para outras 42 mulheres. Juntas, elas criam e vendem artesanatos, artigos para festas, doces, artigos de decoração, entre outros.

O fundo também provê apoio psicológico e rodas de conversa sobre vários temas acerca da realidade da mulher negra na sociedade.

Soares também participou dessas rodas e, hoje, se comunica com outras empreendedoras por meio de um grupo no WhatsApp, que acessa para tirar dúvidas, pedir orientações para seu negócio ou mesmo para conversar. "São suportes que deixaram o cenário de pandemia menos solitário, menos doloroso. Eu tenho orgulho de tê-las como companheiras de luta e nós nunca nem nos vimos pessoalmente", explica.

Mariana Pimentel, coordenadora de Atendimento às Mulheres do Fundo Agbara. - Divulgação - Divulgação
Mariana Pimentel, coordenadora de Atendimento às Mulheres do Fundo Agbara.
Imagem: Divulgação

Mariana Pimentel, coordenadora de Atendimento às Mulheres do Fundo Agbara, explica que as rodas de conversa acontecem quinzenalmente e são um lugar onde as mulheres que fazem parte da rede do fundo podem falar e ser ouvidas.

"No início muitas não querem falar das suas dificuldades e nesse ponto o Agbara é um ponto de inflexão nessa trajetória, porque é um espaço seguro, onde essas mulheres são vistas, ouvidas e valorizadas. E disso surge uma grande potência"
Mariana Pimentel, coordenadora de Atendimento às Mulheres do Fundo Agbara

Trabalho multidisciplinar

Em outra frente de atuação, o Agbara fornece um programa de educação, com cursos de formação às empreendedoras e assessorias técnicas. Mais de 60 profissionais "doam" mentorias ao fundo e suas beneficiadas.

O professor Edgard Barki, coordenador do Centro de Empreendedorismo de Novos Negócios (CENN) da FGV (Fundação Getúlio Vargas), é um destes apoiadores e atua na estruturação do Fundo Agbara.

"Temos trabalhado juntos em uma Teoria da Mudança, que é um planejamento do ponto de vista do impacto social que elas querem criar. E é uma ferramenta importante para que se tenha mais eficiência para entender melhor os impactos desejados e os caminhos para atingi-los", explica.

Enquanto ajuda mulheres a superarem a limitação de seus negócios, o Fundo Agbara enfrenta seus próprios desafios: as idealizadoras do fundo ainda trabalham de forma voluntária.

"Nós fazemos jornada dupla, às vezes, tripla, entre estudos, nossos trabalhos remunerados e o trabalho no Agbara. E isso não é motivo de orgulho. Nós queremos que o Agbara cresça e que possamos receber por nosso trabalho", explica Aline Odara.

A captação de recursos financeiros também é um processo no qual ainda veem que precisam avançar. "Nosso maior problema atualmente é com a captação de mais investimentos sociais para ter ferramentas adequadas de trabalho e podermos nos consolidar como o primeiro e principal fundo de mulheres negras do Brasil", diz.

"As empresas e fundações estão mais sensibilizadas para as questões de raça e gênero, entretanto os investimentos sociais ainda não foram efetivamente democratizados. Esses investimentos não chegam para organizações encabeçadas por mulheres negras e isso é fruto do racismo estrutural que concentra poderes materiais e simbólicos. Para combater efetivamente o racismo precisamos promover a circularidade desses poderes. Fazer com que dinheiro e prestígio também estejam disponíveis para iniciativas negras"
Aline Odara, idealizadora e diretora-executiva do Fundo Agbara