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Demarcação de terras indígenas pode impactar na produção de comida?

Indígenas fazem em Brasília ato contra ação que ameça direito sobre terras em processo de demarcação - Amanda Perobelli/Reuters
Indígenas fazem em Brasília ato contra ação que ameça direito sobre terras em processo de demarcação Imagem: Amanda Perobelli/Reuters

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

05/10/2021 06h00

A votação do Marco Temporal da Terra Indígena, que estipula que novas terras só podem ser demarcadas para indígenas que estavam no território em 5 de outubro de 1988, quando foi declamada a Constituição Federal, marca uma disputa com muitos holofotes e quedas de braço no STF — a votação está suspensa desde 15 de setembro, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos.

Entre os que defendem a tese, um dos argumentos mira a defasagem na produção de alimentos e enfraquecimento do setor agrícola, ideia presente no discurso do presidente Jair Bolsonaro, feito em uma feira com produtores rurais. "Se a proposta [o voto] do ministro Fachin vingar, será proposta a demarcação de novas áreas indígenas que equivalem a uma região Sudeste toda, ou seja, é o fim do agronegócio", disse na ocasião.

Mas como os assuntos realmente se relacionam na prática? A demarcação de terra para indígenas pode resultar em menos comida para todos? Quais questões culturais, ambientais e climáticas estão ligadas ao tema? Ecoa conversou com especialistas e pesquisadores de áreas e instituições diversas para responder essas e outras perguntas.

Demarcação de terra para indígenas pode significar menos comida?

Não há a garantia de que as terras indígenas seriam usadas para produção de alimentos, caso não fossem demarcadas, assim defende Fábio Ishisaki, analista de políticas públicas e membro da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).

O analista aponta que a questão da fome e da produção de alimentos tem origens que são distantes da demarcação de terras, mas na verdade estão ligadas às políticas públicas.

"O problema de alimentação da população vem da má distribuição de renda e enfraquecimento de políticas públicas, como exemplo a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) no governo Bolsonaro", explica Ishisaki. A produção de alimentos no Brasil seria suficiente para alimentar 800 milhões de pessoas, segundo estudo divulgado este ano pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

Messias Basques, doutor em antropologia pelo Museu Nacional, que pesquisa povos indígenas, defende que a preservação de terras indígenas tem efeito positivo na produção de comida pelo setor agrícola:

"A manutenção de florestas no interior de terras indígenas está diretamente associada ao fenômeno dos 'rios voadores', que transportam vapor de água proveniente dessas áreas para regiões de maior produção agrícola no país, como o Centro-Oeste", diz para Ecoa.

Demarcação de terras pode prejudicar o agronegócio?

Para Eduardo Daher, diretor executivo da ABAG (Associação Brasileira do Agronegócio), a relação é justamente oposta e a tentativa de alterar leis e regras sobre o tema pode, inclusive, prejudicar o mercado criando instabilidade.

"Significa dizer que uma parte das pessoas que foram ocupar esses espaços não deveriam estar lá efetivamente, e agora, vão sofrer uma injustiça. E o inverso também é verdade - os oportunistas foram para esses espaços acreditando na mudança no Marco Temporal. A grande perda do processo tem nome: se chama insegurança jurídica", diz o diretor da Associação Brasileira do Agronegócio para Ecoa.

Daher ainda aponta que a demarcação de novas terras teria uma influência praticamente nula no agronegócio e na produção de comida por questões técnicas. "A consequência menos sensível é o agronegócio e a produção agrícola. Não veremos nenhuma variação, não se incorporarão novos territórios, tecnologias e nem competências técnicas para produção ou exportação, e não é um volume de terra que é digno de logística e abastecimento para nenhum dos mercados", completa.

Na visão de Basques, há um potencial inexplorado, que pode ser usado no campo comercial internacional, na produção agrícola e de extrativismo sustentável pelas próprias comunidades indígenas.

O pesquisador ressalta que essas populações detêm conhecimentos milenares que poderiam ser alvo de políticas públicas específicas e de investimentos por parte do Estado, e aponta como exemplo, o sistema agrícola do Rio Negro, que já foi reconhecido pelo IPHAN como patrimônio histórico imaterial.

"Imagine o potencial de produção e comercialização no Brasil e no exterior de produtos que teriam como valor agregado a defesa do meio ambiente, a sustentabilidade e o 'selo indígena', que atestam a relação com uma cultura e um modo de vida indígena, ameríndio e milenar", vislumbra o antropólogo.

Maior parte dos agricultores nunca viu povos indígenas perto de suas terras

Os números mostram que é distante a ideia de que exista realmente um conflito, entre demarcação de terras e a produção agrícola na prática — ao contrário do crescente conflito e invasões que os territórios indígenas sofrem com o garimpo ilegal. Atualmente, 13,8% do território brasileiro é ocupado por terras indígenas (TIs), de acordo com procedimentos demarcatórios e dados do Diário Oficial da União (DOU).

"Pode parecer muito, mas está abaixo da média mundial, que é 15%. E é na Amazônia Legal que se encontram mais de 98% da extensão das TIs, sendo somente 0,6% do restante do Brasil ocupado por indígenas", aponta o advogado indígena Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).

Terena ainda ressalta outros dados importantes sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil, e afirma que em oito dos nove principais estados do agronegócio, as TIs não passam de 0,5% do território.

"No Mato Grosso, maior produtor agropecuário nacional, o percentual de território indígena é um pouco maior (16%), no entanto, a demanda por demarcações é igualmente pequena. E assim como no resto do país, os agricultores vêm aumentando sua produtividade, independentemente dos conflitos fundiários", explica.

"Dos mais de 5 milhões de produtores rurais brasileiros, a imensa maioria nunca viu um indígena, nem está em conflito fundiário ou interessada em mais desmatamento ou mesmo em ocupar mais terra. É viável seguirmos como potência na produção de alimentos e, ao mesmo tempo, atender a demanda por demarcações, respeitando os direitos indígenas previstos na Constituição", frisa o advogado.