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Por respeito à natureza, artista Tikuna levou 16 anos para criar um cocar

O artista José Tikuna  - Adalmir Chixaro
O artista José Tikuna Imagem: Adalmir Chixaro

Paula Rodrigues

de Ecoa, em São Paulo

08/09/2021 06h00

Foi na calma, sem pressa alguma, que o artista José Nazário de Souza, 47, também conhecido como José Tikuna, fez seu cocar. Botou pena por pena, todas enfileiradas ao redor de um pedaço de fibra de tururi, uma espécie de pano feito da parte interna da casca de uma árvore chamada ubuçu. Depois foi só dobrar o tecido ao meio e fazer uma costura para deixar tudo firme no lugar.

Herdou a técnica dos mais velhos do povo tikuna, que é considerado o mais numeroso da Amazônia — a estimativa é de que sejam 30 mil pessoas em três países: o Brasil, o Peru e a Colômbia. Enquanto realizava o processo, José cantava. É que além de artesão, ele é músico. Ou melhor, nasceu músico, com o sangue de musicista que ele diz que a maioria de seu povo tem. Quando um bebê chora, José diz, já tratam de colar um maracá (espécie de chocalho, geralmente feita com uma cabaça recheada de sementes ou pedras) na mão da criança para ela se distrair chacoalhando e parar de chorar.

"Já o cocar não é tão usado entre a gente, são mais as mulheres que usam uns pequenos ao redor da cabeça em dia de ritual da moça nova", ele diz se referindo ao rito de passagem da vida de adolescente para a de adulta que as meninas tikunas passam após a primeira menstruação. Mesmo não sendo tão usado, José sempre quis ter um. Fez alguns cocares pequenos de pena artificial de arara e mais recentemente terminou o terceiro. Dessa vez com pena de gavião real.

Agora, se as penas, o tururi e até a música foram importantes para a criação da peça, a paciência que José teve foi fundamental para que ele conseguisse terminar o cocar. Por acreditar que a natureza e tudo que faz parte dela têm vida que merece ser preservada, o artista esperou 16 anos até conseguir completar o cocar no final de 2020. "É o cuidado que a gente tem que ter com nossa casa, né?", diz José.

16 anos de espera

José Tikuna - Adalmir Chixaro - Adalmir Chixaro
O cocar não é vendido, e José só o usa em apresentações artísticas e no ritual da pajelança
Imagem: Adalmir Chixaro
As primeiras penas de gavião real que conseguiu chegaram em 2005. Um amigo o encontrou na aldeia certa vez e ofereceu algumas penas do animal que tinha encontrado morto no meio do mato tempos antes. "Depois, em 2011, um cacique me disse que tinha algumas também, perguntou se eu queria, eram umas oito. Juntando com as que eu tinha, já dava para fazer um pedaço do cocar", conta José.

Para completar a peça, ele precisou contar com mais doações de amigos e conhecidos. José mesmo chegou a rodar pela floresta atrás das penas do bicho, mas não encontrava nada. Os anos passavam, e ele seguia procurando e esperando. E enquanto esperava, planejava matematicamente onde colocar cada pena, optando por deixar espaços mais largos entre uma e outra para para conseguir preencher toda a extensão da tira de fibra de tururi.

Só em 2014 encontrou novas penas. Dessa vez, um colega o procurou para que ele usasse seus dotes artísticos para criar um amarrador de cabelo com pena. José topou fazer e ainda conseguiu ficar com algumas para colocar em seu cocar.

José Tikuna - Adalmir Chixaro - Adalmir Chixaro
"A gente tem que ter um respeito muito grande com as coisas que Tupã deu para nós, para que nossa floresta não seja devastada", diz José
Imagem: Adalmir Chixaro

É difícil achar essas penas mesmo. Mas não fiquei ansioso, não. Eu desejava muito ter porque representa poder, né? Tem muita ancestralidade também porque o gavião real faz parte de um clã nosso, o das aves José Tikuna

Acontece que os Tikuna são organizados em grupos que José chama de clã ou nação. Tem o das aves, o das plantas e o dos animais, esse último é ao que José pertence. "Eu sou da onça, mas não tem problema usar cocar de pena de gavião porque tem respeito, né?"

Com cocar pronto, José o coloca em apenas duas ocasiões: para o fazer artístico, em algumas peças de teatro que realiza na aldeia, ou em rituais da pajelança, que acontecem quando um pajé visita alguma pessoa que está doente para curá-la. "O pessoal tem essa coisa de falar que sou pajé, mas eu não sei, não gosto desses títulos". Mesmo assim, quando solicitado, José bota o cocar, pede ajuda aos ancestrais e aos espíritos da floresta e parte para ajudar quem precisa.

Segundo ele, desde muito cedo os Tikuna passam para os mais novos esses aprendizados em relação ao respeito pela floresta. José lembra das conversas com amigos tocadores de tambor que sempre falam que se um animal ou uma árvore sofreu ou morreu para que conseguissem produzir o instrumento musical, o mínimo que eles deveriam ter é respeito.

Em uma postagem em suas redes sociais, José recebeu vários comentários de gente elogiando a peça, mas também pedindo para comprar. O que não adianta insistir: ele responde a todos dizendo que não vende nem por todo dinheiro do mundo, primeiro porque sabe que é proibido comercializar arte plumária, mas principalmente por considerar a peça como algo sagrado, que veio da natureza. São as duas filhas musicistas dele que herdarão o cocar um dia.

Para gente isso tudo é sagrado, cocar é sagrado, tambor é sagrado. Tem que ter respeito pelo animal que morreu para a gente ter comida, que deu pele para a gente fazer tambor, que deu pena para o cocar. Qualquer coisa que a gente tem vem tudo da natureza. A gente tem que ter um respeito muito grande com as coisas que Tupã (Deus, né?) deu para nós, para que nossa floresta não seja devastada. José Tikuna

Agora, José espera o momento certo, ou como ele diz "um tempo bom" para voltar a trabalhar com muita calma e paciência na peça, já que ganhou mais 30 penas do cacique esse ano. "Vou colocar 15 de um lado e 15 do outro. Aí pronto, não vou mexer mais, não."

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Imagem: Arte Uol