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Pescador transforma barco antigo em biblioteca no litoral da Itália

Lattarulo acima, à esquerda, junto com os amigos que ajudaram a montar a estante - Arquivo Pessoal/ Leonardo Lattarullo
Lattarulo acima, à esquerda, junto com os amigos que ajudaram a montar a estante Imagem: Arquivo Pessoal/ Leonardo Lattarullo

Carolina Vellei

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

22/06/2021 06h00

Fotos de metade de um barco à beira-mar, com prateleiras repletas de livros, circularam na internet nos últimos meses. Decorada com verde e vermelho, cores da bandeira italiana, a charmosa embarcação vem encantando turistas no litoral de Polignano a Mare, na região da Puglia (localizada onde fica o "salto" do mapa italiano em formato de bota).

Ecoa entrou em contato com a prefeitura da cidade italiana para identificar o autor da iniciativa que fez sucesso nas redes. Descobrimos que se trata de um pescador de 39 anos, chamado Leonardo Lattarulo.

Leonardo é um morador que vive o dia a dia em sua forma mais tradicional para aquela região: a bordo de uma embarcação de pesca, de onde tira o sustento de sua família. "Tenho a sorte de ser pescador e estar sempre em contato com a natureza", disse ele à reportagem.

A prefeitura contou que outras bibliotecas para trocas de livros já foram feitas pela cidade, mas sempre em locais internos e institucionais, como a Biblioteca Municipal ou o Museu de Arte Contemporânea. O ponto ao ar livre surpreendeu a todos e foi elogiado pela administração municipal. "Nunca se pensara em criar tal iniciativa próxima ao mar antes, num lugar encantador como a enseada de Portalga", explicaram por e-mail.

Hoje, a estrutura virou ponto turístico. Tendo como paisagem o Mar Adriático, a biblioteca foi pensada não apenas para incentivar a leitura, mas também para eternizar a história dos pescadores locais e divulgar seus feitos às gerações mais novas.

Leonardo revelou que fez a instalação porque queria valorizar a "antiquíssima história ligada ao mar e às suas tradições". E completa: "O mar sempre dominou e condicionou a vida da cidade e deve ser sempre lembrado por todos".

Ele explica ainda que, com meio século de história, o pequeno barco de casco pontiagudo pertencia a um conhecido pescador de Portalga, Carlino Carusi, e ficou abandonado no porto por anos após a sua morte. Responsável por cuidar da manutenção do lugar, o italiano decidiu restaurar e reaproveitar a embarcação para homenagear seu antigo dono e, sobretudo, prestigiar a tradição marítima da cidade.

Os livros são bons companheiros

A literatura sempre foi uma grande companheira dos pescadores naquele local. "Eu e os meus amigos que me ajudaram a realizar o trabalho lemos muito", conta. Segundo ele, os livros são seus parceiros de viagem no mar e até quando os barcos estão atracados no porto.

Barco de pesca do Leonardo na enseada de Portalga - Arquivo Pessoal/Leonardo Lattarullo - Arquivo Pessoal/Leonardo Lattarullo
Barco de pesca do Leonardo na enseada de Portalga
Imagem: Arquivo Pessoal/Leonardo Lattarullo

Em meio ao clima de dor e tristeza trazido pelo coronavírus, a instalação, feita em 2020, ajudou a melhorar um pouco o humor dos moradores locais e também dos turistas que aos poucos começaram a voltar à região. Tina Raucci é uma delas. A jornalista italiana sempre foi apaixonada pela região da Puglia, onde fica Polignano a Mare.

Em março de 2021, ela se mudou da região da Campânia para a cidade litorânea e uma das primeiras coisas que fez foi visitar o barco-biblioteca que ficou famoso em toda a Itália. "Em novembro tive Covid e isso me fez mudar muito minha visão de vida. Morar aqui era meu sonho secreto, agora realizado", contou a Ecoa.

Tina já tinha visto uma biblioteca ao ar livre com possibilidade de trocas de livros em um parque na Alemanha. Mas a do porto de Portalga foi a primeira que viu à beira-mar. "A ideia é fantástica. Ler, viajar com a imaginação, voar com o pensamento, ir ao fundo do mar com as histórias, é maravilhoso", afirma.

Poesia e literatura como farol para tempos sombrios

Na parte superior do barco, os visitantes encontram uma breve descrição poética do mundo ao redor da estante e da vida dos pescadores que atuam na enseada. "A pesca deu lucro, os remos viravam asas e o mar tinge-se da lua. Pare, lance âncora aqui. Leia, respire, ame", diz a inscrição marcada em letras douradas na madeira, traduzida para o português.

Já na parte inferior, um convite: "prendi un libro, lascia un libro" ("pegue um livro, deixe um livro"). Mais de 100 volumes ocupam as prateleiras da biblioteca adaptada no pedaço da embarcação. Tina reparou que havia uma caixa abaixo das estantes. Em seu blog, a jornalista descreveu: "as prateleiras já não bastavam: um sinal tangível do sucesso da iniciativa".

A jornalista Tina Raucci em visita ao barco-biblioteca - Arquivo Pessoal/Tina Raucci  - Arquivo Pessoal/Tina Raucci
A jornalista Tina Raucci em visita ao barco-biblioteca
Imagem: Arquivo Pessoal/Tina Raucci

Para ela, que adora ler, ter um ambiente assim próximo à natureza estimula a leitura e o bem-estar das pessoas, além de ajudar a cuidar da mente. "Concordo com quem diz que a leitura permite viver vidas além da sua. A leitura permite que você conheça e avalie o mundo a partir de perspectivas que não conhecia antes. Não há maneira mais bela de enriquecer a alma", defende.

Essa é uma visão com que o criador da instalação marítimo-literária também concorda. Em um momento conturbado como o que vive o mundo no momento, Leonardo enxerga a necessidade de reconexão com as raízes de seus antepassados e com as coisas que realmente importam. "Creio que em um período histórico como esse, a cultura e a redescoberta da natureza e do mar possam ser instrumentos importantes para mudar o pensamento das pessoas", explica o pescador.