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Viagem ao Quilombocéu: menino trans, gordo e negro vira príncipe em livro

Capa do livro "Ariel"  - Divulgação
Capa do livro "Ariel" Imagem: Divulgação

Juliana Domingos de Lima

De Ecoa, em São Paulo (SP)

18/06/2021 06h00

Inspirada em uma história de Hans Christian Andersen, a personagem Ariel, de "A pequena sereia", é bem conhecida por crianças e adultos. Nascida sereia, ela vive no mar e sonha em habitar um corpo diferente do seu, com pernas no lugar de sua cauda.

Quando desenha a si mesmo como realmente é, o Ariel criado pelo escritor mineiro Jared Amarante se compara à sereia ao ganhar pernas. Ele chora de felicidade. "Esse sou eu. Obrigado por me permitir usar você para descrever como sei que sou", diz ao papel, que se torna seu aliado.

O papel é também um portal para um lugar mágico, o Quilombocéu, onde Ariel encontra sabedoria, aceitação e corpos como o seu. A viagem do menino trans, preto e gordo a uma outra dimensão o ajuda a se tornar quem sempre foi, a amar a si mesmo e a entender sua missão no mundo.

É esta a história contada no livro "Ariel - a travessia de um príncipe trans e quilombola", sexto livro de Jared Amarante, lançado em 2021 pela editora Giostri. A Ecoa o autor disse que a criação do personagem veio para promover a representatividade e fomentar o debate sobre essas identidades.

Jared Amarante - Divulgação - Divulgação
O escritor Jared Amarante
Imagem: Divulgação

Como homem gay, cisgênero, branco e magro, ele deseja somar forças para a luta antitransfobia, antirracista e antigordofobia. Vários de seus trabalhos anteriores — como "O amor que ninguém viu", sobre dois meninos evangélicos que se apaixonam, semi-autobiográfico — já lidavam com a temática da diversidade.

A narrativa fantástica de "Ariel" se cria em função da realidade social do nosso mundo, definido pelo personagem como "o universo dos grandões": um lugar cheio de "certo e errado", de regras a serem seguidas e expectativas a serem correspondidas. Numa cena que poderia fazer parte da experiência de qualquer criança trans, Ariel se sente rejeitado ao mostrar ao pai seu desenho como menino e ouvir que "não poderia ser" ele, que "não estava certo". É o ponto de partida de sua descoberta de si.

Parte dessa ancoragem na realidade factual vem das notas de rodapé, que acrescentam camadas de informação complementares à história. Elas são úteis principalmente ao público menos familiarizado com o tema, mas algumas vezes caem em um excesso de didatismo. Diminuem a força da história de Ariel ao não permitirem que ela fale por si. Uma solução seria colocar as notas no fim do livro para permitir uma interpretação mais livre do leitor.

Há momentos em que a voz de Ariel, cheia da inocência e da visão aguçada das crianças sobre o mundo, se sobressai na história, desarmando a gente. Ariel se pergunta o que pode fazer pra que todos os lápis de cor da caixinha se sintam especiais. Quando chega no Quilombocéu, ele se surpreende com a relação estabelecida com quem o recebe porque, de onde ele vem, as visitas "antes querem saber a senha do Wi-Fi, depois perguntam se você tira boas notas e guarda os mandamentos".

As ilustrações do paraibano Nathan Borges dão forma a passagens da história. Numa delas, não à toa escolhida para a capa, Ariel dança valsa com Deus, já coroado como príncipe. A coroa é um pente garfo, símbolo de afirmação da identidade e da autoestima negras.

Ao final, o livro traz entrevistas feitas pelo autor com jovens trans de várias partes do Brasil, que serviram de inspiração para a composição da trajetória do personagem. Eles relatam suas experiências relacionadas à identidade de gênero e falam sobre religiosidade, representação, discriminação e expectativas para o futuro.

Essas vivências escancaram ainda mais o quanto precisamos de livros como "Ariel". Quantas histórias sobre um personagem como ele você já leu? Quantas crianças trans e suas famílias precisam nesse momento da validação, pertencimento, amorosidade e informação que ele traz?

"É na infância que validamos a autoestima, que dizemos que a criança é potente, criativa, especial. Isso os corpos cis recebem em abundância do mundo, mas crianças trans não. Queria mostrar que crianças trans, pretas e gordas também podem ser príncipes e princesas", disse Amarante a Ecoa.