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Presos produzem casinhas de cachorro, muletas e móveis no interior de SP

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Imagem: Divulgação

Ana Prado

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

15/06/2021 06h00

Há alguns anos, Valdemar Alves dos Santos, diretor de unidade do Centro de Detenção Provisória (CDP) "ASP Sandro Alves da Silva", de Serra Azul (SP), notou que as pessoas privadas de liberdade estavam perdendo o interesse pela biblioteca do local. Ele não demorou a entender a razão: "Estávamos com um número reduzido de títulos, e havia muitos repetidos", lembra.

Para mudar isso, Valdemar fez uma campanha envolvendo as prefeituras de cidades próximas. "Como recebemos pessoas de toda a região, solicitamos que cada município nos desse um livro para cada detento que tivesse enviado para nós", conta.

A ação foi bem recebida e as doações ultrapassaram em muito o esperado: foram quase 3 mil novos livros, o que fez o acervo praticamente dobrar de tamanho. Com os novos títulos, o interesse pela leitura voltou a subir.

Mas o sucesso na arrecadação gerou outro desafio: faltavam estantes para abrigar todos os livros. Valdemar começou então uma busca entre os colegas por alguém que pudesse ajudar a reformar a biblioteca. Encontrou Ronaldo Cesar Justino, marceneiro de profissão, e os dois começaram uma parceria que tem funcionado até hoje.

"Ele começou com a biblioteca e não parou mais", conta o diretor. Uma fábrica de móveis da região doou sobras de madeira para ser usada como matéria-prima. Com elas, além das estantes, Ronaldo e outros internos construíram diversos outros móveis para o setor administrativo do CDP.

Casinhas para cães desabrigados

Depois que as atividades de marcenaria começaram, pessoas da região começaram a oferecer materiais ou pedir ajuda para Valdemar. Ele conta que um dia, há cerca de três anos, uma pessoa ligada à causa animal ofereceu madeira e perguntou se eles poderiam construir casinhas para cães desabrigados. "Nós fizemos dez, que foram colocadas nas ruas de Serra Azul", lembra.

Matéria-prima para a fabricação das casinhas para os animais desabrigados - Divulgação - Divulgação
Matéria-prima para a fabricação das casinhas para os animais desabrigados
Imagem: Divulgação

Aquela atividade foi pontual na época, mas ressurgiu em 2020, quando uma publicação numa rede social chamou a atenção do diretor. No post, um empresário de uma cidade vizinha divulgava sua iniciativa de instalar pontos de alimentação e bebedouros para animais sem um lar.

Foi a chance de retomar a ação. "Como a gente já tinha essa experiência das casinhas, liguei para ele e ofereci de construirmos", conta Valdemar. O empresário conseguiu doações de madeira que iriam para o lixo e a produção logo começou. Nascia, assim, o Projeto Acolher.

A partir de um modelo que Valdemar encontrou na internet, eles passaram a construir três tamanhos diferentes de casas, que foram distribuídas para entidades de proteção animal que promovem feiras de adoção - a ideia inicial era que, ao adotar um cão, a pessoa levasse de graça uma casinha. Mas elas fizeram sucesso e muitos que já tinham um animal de estimação começaram a pedir também. A solução encontrada foi oferecê-las em troca de doações de ração para as instituições.

A construção é feita de acordo com a demanda, o espaço e os materiais disponíveis. Até agora, cerca de 60 casinhas foram feitas desde o ano passado, e há mais 40 prontas para serem montadas. Segundo Valdemar, eles ainda têm madeira para outras 50 e já existe fila de pessoas e instituições querendo apoiar ou replicar o projeto em outros lugares.

Os envolvidos no projeto comemoram os resultados. "É gratificante porque estamos confeccionando essas casinhas para proteger os animais, e isso é uma coisa que mexe com a gente. Eu pretendo continuar fazendo essa obra quando ganhar minha liberdade", conta o marceneiro Ronaldo.

Valdemar completa: "Todo mundo vê a penitenciária como o patinho feio do município, é algo que ninguém quer ter perto. Então estamos desmistificando isso, mostrando que podemos fornecer serviços para ajudar diretamente a comunidade."

Além das casinhas e da biblioteca, o grupo já reformou prédios da prefeitura, um ônibus escolar e até bancos antigos de igreja antes da pandemia. Também já fizeram até muletas: "No ano passado, um colega de outra unidade estava precisando e resolvi verificar se era possível construir por aqui. Usando um modelo que já tínhamos, conseguimos fazer 50 pares", conta Valdemar. Elas foram distribuídas entre unidades prisionais e um asilo.

Esperança e uma nova formação

Embora seja um Centro de Detenção Provisória, a instituição de Serra Azul abriga 600 pessoas já condenadas de um total de 900. É principalmente com elas que essas ações são realizadas, já que exigem um tempo de planejamento e aprendizado. Hoje, há 90 trabalhando em setores variados, incluindo não só marcenaria, mas também manutenção, limpeza, cozinha, padaria e almoxarifado, entre outros.

Detentos produzem casinhas de cachorro, muletas e móveis em Serra Azul (SP) - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Além de permitir economizar recursos e fornecer uma boa distração para quem está no sistema prisional, o trabalho tem um papel importante para ajudar em sua ressocialização e também lhes dar uma formação profissional. "Sempre colocamos quem sabe junto com outros que têm interesse em aprender", conta o diretor. "Isso tem sido bom, já que os cursos profissionalizantes que costumam ser oferecidos tiveram uma pausa com a pandemia."

Carlos Eduardo Domingos Marciano cita ainda outras vantagens: "Essa é uma oportunidade de diminuir minha pena, já que cada três dias que trabalho são um dia de remissão. O salário também me ajuda bastante, não preciso que a minha família me mande nada", explica. As pessoas privadas de liberdade envolvidas no projeto recebem uma pequena remuneração pelo trabalho, o que permite comprar mantimentos básicos.

Pai de duas filhas - uma de 10 e outra de 9 anos -, ele conta que trabalhava como tratorista de usina, e agora comemora a nova formação: "Vai ser uma alegria voltar para a minha família e dizer que estou saindo com mais uma profissão, que é a de marceneiro."

Além de prestar serviços como pedreiro, profissão que já tinha antes, Mauricio Donizete Domingos de Moura também aprendeu marcenaria no CDP. "Como nem sempre tem serviço de pedreiro aqui, eu fico ajudando o Ronaldo e nesse tempo venho aprendendo", conta. "Não sou muito de ficar falando, mas eu fico muito contente por isso. Ocupa a cabeça e acaba sendo uma terapia, né."