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Novo colunista Alexandre Ribeiro conta vida de um favelado rodando o mundo

O escritor Alexandre Ribeiro, autor de "Reservado" é o novo colunista do UOL - Lucas Sampaio/Divulgação
O escritor Alexandre Ribeiro, autor de "Reservado" é o novo colunista do UOL
Imagem: Lucas Sampaio/Divulgação

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

11/03/2021 04h00

Em uma viela da favela da Torre, em Diadema (SP), Antenor Gomes Barros Filho comprou com uma vendedora ambulante um pacote com alguns quadrinhos sobre Moisés, por R$ 25. Como considerava o valor alto para um favelado que já ganhava pouco como segurança de firma, decidiu que obrigaria o filho Alexandre Ribeiro a ler com ele pelo menos cinco páginas por dia antes de dormir. E assim fizeram. O costume se encerrou quando Alexandre tinha apenas 11 anos — Antenor foi uma das mais de duas mil pessoas mortas pela H1N1, ou gripe suína, no Brasil em 2009.

Assim como muitos brasileiros durante a atual pandemia de covid-19, Alexandre conhece o drama de perder o pai enquanto esperava por atendimento médico. "Por causa da morte dele, eu nem lembro o que aconteceu comigo no ensino médio porque eu estava trabalhando todos os dias para ajudar em casa. Eu ia para escola só pra ter um tempo para dormir. E ver essas coisas acontecendo de novo com cada vez mais pessoas no Brasil me pesou muito", diz

Voltando do trabalho um dia, Alexandre por acaso trombou com o rapper Marcello Gugu no metrô de São Paulo e se ofereceu para vender uns CDs do artista na rua. Marcello Gugu aceitou e no final dessa história Alexandre se deu tão bem que outros artistas do meio o procuraram para divulgar os trabalhos. Assim entrou de vez nesse mundo quando recebeu um convite para trabalhar como assistente na LAB Fantasma, empresa dos músicos e irmãos Emicida e Fióti.

O menino que já vinha escrevendo desabafos em seus cadernos, só entendeu o real valor que a escrita tinha em sua vida quando, aos 17 anos, ganhou uma bolsa para estudar jornalismo na agência de conteúdo Énóis. Cinco anos após o batismo de Alexandre como escritor, ele já publicou o livro "Reservado" (2019) e prepara uma nova obra para relatar a visão de um favelado que começou a viajar pelo mundo. Desde 2019, o escritor vive na Alemanha para fazer trabalho social com crianças com deficiência.

Nesta sexta-feira (12), Alexandre estreia como novo colunista de Ecoa.

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Ecoa - Como nasceu o Alexandre escritor?

Alexandre Ribeiro - Eu sou um moleque de quebrada comum que perdeu o pai quando tinha 11 anos. Naquele momento eu já tive que começar a trabalhar para ajudar em casa. Assim eu comecei a sair mais da minha quebrada em Diadema. Cruzava a cidade para chegar em Santo André para trabalhar em um shopping. Depois, trabalhar em um hotel na Oscar Freire, na capital de São Paulo. Em 2016 consegui uma bolsa para estudar jornalismo na Énóis. Lembro que lá a gente teve uma oficina de escrita que era para escrever um texto sobre nossa infância. Eu escrevi um chamado "O dia que minha barriga escreveu um poema", que era um texto sobre a fome mesmo. Eu tinha 17 anos na época, já escrevia antes, mas era sempre só pra mim. Eu ia em sarau, em slam, mas as coisas que eu escrevia eram só desabafos, escrevia só para ter um refúgio dos pensamentos que eu tinha, da minha realidade na quebrada. Quando eu li pra galera da Énóis, eles falaram que eu escrevia muito bem. Essa foi a primeira vez que eu senti confiança no que eu estava fazendo e me vi como escritor.

Mas você é um escritor que cresceu rodeado de livros?

Eu gostava muito de ler na adolescência porque foi uma forma que encontrei de fugir da violência ao meu redor. De esquecer um pouco as coisas que eu estava passando. O meu pai, antes de falecer, me obrigava a ler pelo menos cinco páginas de um livro bíblico antes de dormir. E como meu pai era segurança de firma, ele trabalhava sempre de madrugada, então quando a gente ia dormir, ele tava saindo para trabalhar, então dava tempo da gente ler com ele antes de sair. Essa é a memória afetiva que eu tenho com a leitura. No começo eu não gostava, achava chato. Mas depois que ele morreu eu comecei a resgatar essas coisas e a leitura veio pra mim como os abraços paternos que eu não pude ter depois da morte dele.

Falando no seu pai, muita gente está passando por um luto por motivos parecidos com o que você viveu em 2009. Tem algo que você refletiu ou aprendeu sobre aquele momento que pode ser compartilhado com quem está passando por isso hoje?

O que eu posso compartilhar é que no final das contas o vírus vai embora e as famílias vão ficar. Não existe remédio para o luto. O que eu posso dizer é que eu tenho muita ciência que as coisas que aconteceram com meu pai e com todas essas pessoas que estão morrendo agora não serão em vão. As pessoas que ficam são responsáveis por honrar as pessoas que se foram. É fazer com que a vida e morte de quem a gente ama seja um motivo para a mudança. Eu não quero que outra pessoa tenha que esperar por 12 horas na fila de atendimento médico como meu pai esperou, sabe? Nós temos essa possibilidade, não uma obrigatoriedade, de ser um fazedor de mudança. Eu diria para essas pessoas que elas não estão sozinhas também. Os bons estão em silêncio, mas estão sempre trabalhando.

E agora você está morando na Alemanha, tem acompanhado o que está acontecendo no Brasil?

Sim, é desesperador. A minha família já tinha noção de como um vírus pode destruir uma família. Para a gente nunca foi só uma "gripezinha". Olha o tanto de famílias que vão ser afetadas como eu fui. Para mim é um trauma não ter um pai. Por mais bonita que essa história do moleque da quebrada que está rodando o planeta possa ser, eu trocaria tudo isso para ter um almoço de domingo com o meu pai. Além disso, todos esses lances da minha vida não foram nada legais. Por causa da morte dele, eu nem lembro o que aconteceu comigo no ensino médio porque eu estava trabalhando todos os dias para ajudar em casa. Eu ia para escola só pra ter um tempo para dormir. E ver essas coisas acontecendo de novo com cada vez mais pessoas no Brasil me pesou muito, tanto que nos últimos meses eu tive que me desligar das notícias. Dá um desespero ver que a nossa vida não vale nada. Eu continuo pagando imposto no Brasil, continuo tendo meu CPF e comprovante de residência. Eu sou brasileiro, meu sonho é voltar pra minha quebrada e montar um centro cultural para ensinar tudo que estou aprendendo aqui, mas, sim, essas coisas todas desanimam mesmo.

Como tem sido essa experiência de sair de uma quebrada brasileira para morar na Alemanha?

O James Baldwin fala em um livro que ele só se tornou americano quando pisou na França. Eu sinto isso também. Só me tornei brasileiro quando pisei aqui na Alemanha. Quando você está distante da própria terra, você começa a entender a falta que ela faz. Posso dar o exemplo mais bobo aqui e falar sobre como faz falta comer mamão papaya no café da manhã. Você começa a perceber tudo que faz parte da sua brasilidade, da sua maneira de ver o mundo. A gente tem muitos problemas para lidar e resolver como país, mas isso não anula as belezas que a gente tem no Brasil. Eu acabei conhecendo mais a história do meu país aqui, porque foi quando tive mais oportunidade de ler, mais tempo de estudar. Hoje em dia eu enxergo que adoro a Alemanha, mas minha terra é o Brasil. Foi esse país que me fez ser quem eu sou.

Alexandre - Lucas Sampaio/Divulgação - Lucas Sampaio/Divulgação
#DaQuebradaProMundo é o nome da coluna do escritor Alexandre Ribeiro e de seu próximo livro.
Imagem: Lucas Sampaio/Divulgação

E como você voltou a ter contato com a literatura depois da perda do seu pai?

Depois que meu pai morreu, eu fui resgatado pelo movimento Hip Hop. Em Diadema tem a Casa do Hip Hop que é — na verdade, era porque sofreu muito desmonte — a maior casa de cultura do gênero da América Latina. Foi lá que eu vi um show do Criolo com 11 anos. Foi lá que fiz oficina de DJ com 14. O rap sempre esteve presente na minha família por causa do meu pai, ele tinha umas fitinhas cassetes de rap em casa. No aniversário de 10 anos de casamento dos meus pais, minha mãe deu o disco duplo do "Nada Como um Dia Após o Outro Dia", do Racionais Mc?s, para ele. A cultura Hip Hop tem quatro braços, né? O DJ, o MC, o B-Boy e o grafite. Eu acredito que ainda exista um quinto elemento aí: o conhecimento. Existe uma exaltação de grandes nomes da história nas letras, líderes negros, revolucionário. Isso me trouxe a literatura. Eu sou muito grato de ter aprendido tanto com essas letras.

Na introdução do seu livro "Reservado" (2019) você tenta definir o que é a literatura através do olhar de um favelado. Pode contar um pouco mais sobre isso?

A minha perspectiva mudou depois que eu li Conceição Evaristo, que eu li Lélia Gonzalez, que eu comecei a ler autores negros publicados em grandes editoras. Minha noção do passado era que a literatura era muito branca e muito elitizada. Continua sendo um fato isso, só que a partir desses outros espaços que consegui alcançar com meu livro, a minha perspectiva mudou. Ainda acho que a gente tem que ter uma critica muito ferrenha para essa literatura que é para uma branquitude, mas eu não posso negar que existe um movimento negro unificado de autores e autoras que estão fazendo tudo para a literatura brasileira ser diferente.

No seu livro você escreve quase um pedido para que outras pessoas faveladas leiam seus textos e escrevam suas próprias histórias. Por que você acha isso importante?

Eu acho isso importantíssimo porque eu sou aquele moleque que sempre entendeu que não era um gênio. Eu nunca tive autoestima para me achar assim. Eu tenho dúvidas todos os dias, eu procrastino para caramba, tenho inseguranças? Falo isso porque eu acho importante a gente sair dessa de achar que só quem tem um dom, só quem nasceu para isso pode escrever. No final das contas, é isso que também afasta a gente das coisas.

Eu acho importante democratizar essa literatura para que todo mundo possa contar histórias. Eu adoro Jorge Amado, mas eu também queria ouvir o ponto de vista de uma mulher negra baiana daquele mesmo período para ter outros pontos de vista sobre o Brasil daquela época, sobre a nossa sociedade. Eu queria ter registros históricos de mulheres brasileiras contando como foi para elas viverem alguns acontecimentos históricos.

Escrever é técnica, é estudo, é ler bastante, quanto mais você lê mais você tem. As pessoas pobres e negras do Brasil tem muitas experiências e histórias que estão na nossa cabeça e precisam ser colocadas no papel.