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Catador cria auxílio emergencial com empresa bilionária: "gente que limpa"

Roberto teve grupo de rap na adolescência, e hoje é líder em associação nacional da catadores - Divulgação
Roberto teve grupo de rap na adolescência, e hoje é líder em associação nacional da catadores
Imagem: Divulgação

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

25/02/2021 04h00

O catador Roberto Laureano Rocha lembra do olhar de estranhamento dos vizinhos quando foi visto na coleta de materiais recicláveis pela primeira vez. "Era catar lata ou cair no crime", diz. Há mais de 25 anos, ele tenta mudar esta percepção. Roberto quer que catadores se sintam e sejam valorizados como educadores ambientais e agentes de limpeza urbana. "Sempre vivemos na invisibilidade e quero que os catadores recebam o valor e entendam o peso que têm em nossa sociedade", diz.

É o trabalho de uma vida toda e o desafio ficou ainda mais complicado com a pandemia.

Roberto é presidente da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT) desde 2016. Graças a ele, 9.300 catadores receberam R$ 200 pago pela operadora de vale alimentação bilionária Sodexo por três meses em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e outros estados no país. Mais 5 mil famílias também receberam cestas básicas.

Desorganizando para organizar

Roberto Laureano - @d3l1m4 - @d3l1m4
Roberto (foto) criou auxílio especial para catadores com ajuda de empresa bilionária de cartões
Imagem: @d3l1m4

A vida do presidente da associação se mistura com a atual capacidade de organização, luta e conscientização dos catadores. Roberto é morador da periferia de Poá, cidade da região metropolitana de São Paulo, e frequentava as tradicionais rodas paulistanas de breaking no Jabaquara e as de rap na São Bento entre as décadas de 80 e 90. A namorada ele conheceu no baile. Quando tinha 19 anos, ela engravidou.

Roberto não concluiu os estudos. Na época, acreditava que viveria da música, dos eventos, mas a gestação acendeu um alerta. Era preciso procurar um emprego e dar início à vida adulta. O pai os ajudou com uma pequena casa em Poá. A namorada, hoje esposa, morava no extremo da zona leste paulistana e se mudou para o local. Ela trabalhava como vendedora de cosméticos, mas o emprego do marido demorava a aparecer. Os dois sobreviviam da comida doada pelos vizinhos, da xepa, da pechincha. O dono de uma pizzaria vendeu a eles uma pizza fiada, comida lentamente para durar o fim de semana inteiro.

Foi então que Roberto começou a coletar material reciclável. Os vizinhos estranharam a decisão. A atividade era coisa de dependente químico e de pobres muito vulneráveis, não de um músico inteligente e filho de um funcionário público, um jardineiro da prefeitura de São Paulo.

Naqueles primeiros dias, Roberto cantava "Homem na estrada" dos Racionais MC 's enquanto arrastava uma carroça pelas ruas. Era uma forma de se manter firme. "Muitos companheiros de caminhada daquela época morreram ou foram mortos", diz. "O rap meu deu estrutura, me incentivou na militância, de lutar pelos direitos", lembra.

A primeira treta

A primeira luta foi contra o ferro-velho do bairro. Segundo ele, os ferros-velhos no geral deveriam ter vínculo de trabalho e pagar mais para os catadores. O relacionamento entre os lados pode ser hostil. "Já fui muito humilhado e explorado por dono de ferro-velho", diz.

Nas ruas, Roberto comprava e cozinhava pés de galinhas e miúdos para o almoço dos catadores. A comida era esquentada em uma lata de ervilha ou molho de tomate. O catador tinha ideia de unir os colegas e diminuir a dependência do ferro-velho, mas não sabia qual a melhor maneira. Em um dia de trabalho, encontrou uma cópia do jornal "O Trecheiro" onde estava uma saída.

A publicação criada no início dos anos 90 para as populações de rua trazia a notícia sobre uma cooperativa de reciclagem inaugurada em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Era uma das primeiras do ramo no Brasil.

Mas Roberto não tinha dinheiro para a passagem. Em várias viagens deu um jeito para embarcar de graça no trem. Não se orgulhava, mas era o jeito. Para não correr o risco de perder uma reunião, pediu dinheiro emprestado para a mulher. "Ela foi minha grande patrocinadora", disse.

No novo trabalho, ouvia palestras e recebia treinamentos. Uma fala do engenheiro Paulo de Tarso o comoveu. Ele falou sobre importância ambiental e o direito à dignidade dos catadores. Naquela época, era comum que catadores fossem confundidos e incluídos nos mesmos grupos de pessoas em situação de rua. "O tempo foi me lapidando", diz.

Roberto sentiu que tinha que fazer algo e dar autonomia e mais respeito a uma população que, mesmo empobrecida, movimentava uma indústria cada vez maior de reciclagem.

Em 1996, ele fundou a própria cooperativa em Poá: a Cooperativa de Reciclagem Unidos pelo Meio Ambiente (Cruma), nome que aproximava os catadores da agenda ambiental e ampliava a importância da atividade.

Atualidade

Hoje, os catadores se reúnem em duas categorias: os avulsos e os cooperados. Os cooperados driblam o ferro-velho e trabalham diretamente com a indústria responsável pela reciclagem, são registrados, recebem comissões e participam de assembleias para definir os rumos da cooperativa. Os avulsos são catadores de rua, que vendem ao ferro-velho e cooperativas.

Segundo Roberto, apesar dos avulsos ainda serem mais vulneráveis, há catadores desta categoria que se profissionalizaram e hoje são Microempreendedores Individuais (MEI).

No país existem 1829 cooperativas, e não se sabe ao certo o número de catadores. Os dados do anuário da ANCAT, instituição presidida por Roberto, mapeou 10 mil catadores. Em 2020, apenas 33% das cooperativas brasileiras foram responsáveis por mais de 300 mil toneladas de material reciclado; como alumínio, vidro, papelão e plástico.

No Brasil, a renda média de um catador é de R$ 932,19. A renda é menor na região nordeste, em torno de R$ 650. Em estados como a Paraíba, é cerca de R$ 380. Já na região sudeste, o valor cresce. Na região sul a média salarial é de R$ 1.140, chegando a R$ 1.1190 em Santa Catarina.

O pulo do gato

Roberto 2 - Reprodução - Reprodução
Roberto é presidente da associação nacional de catadores
Imagem: Reprodução

As associações de catadores no Brasil foram beneficiadas pela política nacional de resíduos sólidos, em 2010. A lei foi o primeiro passo para uma política de reciclagem que envolve o compromisso com a logística reversa. Ou seja, a de "pegar de volta o que foi vendido".

A logística reversa virou um jogo de empurra nos setores de eletrodomésticos, que somente dez anos depois deve anunciar um consenso sobre o tema. A indústria de reciclagem de latinhas tornou-se bilionária e hoje recicla 97% das suas embalagens.

A ANCAT se dispôs a realizar a logística reversa prevista por lei e a prestar consultoria para indústrias como a Ambev e Coca-Cola.O dinheiro recebido paga as operações da instituição, que faz o investimento nas cooperativas. Parte do dinheiro também serve para treinamento ambiental e, agora, para adquirir materiais e educação sanitária para enfrentamento do novo coronavírus.

Pandemia

Com o fim dos grandes eventos que beneficiam catadores avulsos, provocado pela pandemia de covid-19, há cooperativas que ficaram fechadas por meses ou ainda não foram reabertas. Só na capital paulista, 24 cooperativas foram fechadas.

Em 2020, a ANCAT entrou com advogados para a criação de um Auxílio Emergencial de R$ 600 para catadores em São Paulo, além do Auxílio Emergencial pago pelo governo federal. Apesar dessa vitória para o movimento, a informalidade entre os catadores ainda é alta. A prefeitura tem apenas 2.100 pessoas cadastradas como catadores, enquanto milhares não tiveram acesso ao benefício.

O próximo desafio de Roberto é lutar para que municípios, estado e a indústria reservem um pedaço maior para quem está na ponta do sistema. O presidente da associação também pretende concluir o que abandonou no passado. Irá se formar em administração de empresas.

"Desde que eu nasci, me lembro de ver o assunto ambiental para lá e para cá. Mas ninguém nunca falou do catador. Depois que comecei a catar os primeiros materiais, eu vi que quem faz esse serviço é gente. Quem limpa é a gente e nós é que somos educadores ambientais".

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, o nome correto  é Paulo de Tarso Carvalhaes, e não Moraes. O nome foi corrigido.