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Marina Silva lembra a luta de Dorothy Stang contra fazendeiros

Lucas Lima/UOL
Imagem: Lucas Lima/UOL

Camilla Freitas

De Ecoa, em São Paulo

13/02/2021 04h00

Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, estava discursando na assembleia de criação da Reserva Extrativista Verde para Sempre no Pará quando o ambientalista do Greenpeace Paulo Adario lhe trouxe a notícia de que a missionária Dorothy Stang tinha sido assassinada em Anapu, cerca de 300 km de onde estavam.

Ecoa conversou com Marina sobre a importância de Dorothy Stang e os desafios da luta ambiental no Brasil. Leia abaixo o depoimento dela:

Quando recebi a notícia Dorothy, parei o que estava fazendo e busquei falar com o presidente Lula para que o delegado da Polícia Federal que estava comigo pudesse assumir o caso porque eu sabia que a polícia local ia distorcer a realidade. Nós pegamos o helicóptero e fomos para Anapu.

Lá, fiquei na casinha da irmã, e os policiais federais foram para a delegacia. Quando chegaram, o delegado local já estava registrando o depoimento do Francisco, um menino que a irmã Dorothy criou, dizendo que ele havia mandado matar a irmã para ficar com um terreninho que ela tinha. Eu já estava acostumada com esse tipo de coisa. Fizeram de tudo para botar a culpa da morte do Chico Mendes no nosso próprio movimento.

Chegou uma picape com o corpo dela e eu vi um foguetório no município que parecia festa de São João. Eram os fazendeiros celebrando o assassinato de uma mulher com aquela idade, com aquela fragilidade física, mas com aquela fortaleza moral, ética e espiritual que ela tinha.

Tivemos que mandar uma força-tarefa do exército para o Pará porque mais duas pessoas tinham sido assassinadas. Foram quase dois mil homens destacados para lá até conseguirmos conter a violência no local e começar um processo de investigação Enquanto isso, eu estava o tempo todo em conversa com o bispo da região e com os movimentos sociais.

A morte da irmã Dorothy foi uma retaliação a todo o trabalho que estávamos fazendo na região da Amazônia. Nós fechamos o cerco contra os madeireiros ilegais, fechamos o cerco contra a grilagem de terra, a invasão, e fiscalizamos e demarcamos áreas criando unidades de conservação.

O Brasil era e ainda é um dos países mais perigosos para ativistas ambientais do mundo e isso acontece exatamente porque, aqui, a violência se dá em função da apropriação criminosa de terras públicas, do roubo de madeira, de garimpos ilegais, seja em terra pública, em terras indígenas ou de conservação.

Nunca fui de contar isso, mas no tempo em que fui ministra do Meio Ambiente, tinha pelo menos uns três sites sobre "Como matar Marina Silva". Eles continham um monte de dicas de como me matar. Até que uma vez foram ao meu prédio e minhas crianças, que ainda eram pequenas, brincavam na quadra do condomínio. Perguntaram para o porteiro se eu tinha segurança para elas. O porteiro respondeu que não e disseram a ele "diga a ela que é bom ter segurança para as crianças, porque é muito perigoso elas estarem brincando aí sozinhas".

Quando o porteiro me contou, meu coração quase saiu pela boca. A Polícia Federal me orientou que eu tomasse cuidado. Além desse caso, houve um tempo em que, para eu ir para o ministério, tinha que ser sempre por um trajeto diferente. Foi um momento muito difícil.

Mais ameaçados ainda eram os fiscais do Ibama, e tudo isso porque nós não retrocedemos um milímetro naquilo que nós estávamos fazendo.

Tentamos, então, ao mesmo tempo dar toda a segurança para equipe e para as comunidades e continuamos demarcando as áreas.

A irmã Dorothy, assim como Chico Mendes, contribuiu para o que conhecemos como bioeconomia na Amazônia. Esse modelo une comunidades locais, territórios para uso sustentável, sistemas agroflorestais e agroindústrias. A luta dos dois firmou, no meu entendimento, as bases do que os cientistas conhecem por novo ciclo de prosperidade com base na biodiversidade.

A gente já teve, no passado, o desenvolvimento da região Norte tendo como base um produto da biodiversidade que era a seringueira, em um modelo altamente verticalizado. Eu mesma nasci nesse regime de semiescravidão dos seringueiros. Eles vendiam com exclusividade para os patrões e eram obrigados a comprar os manufaturados deles. Só que a borracha era muito barata enquanto os manufaturados eram muito caros. E, assim, se perpetuava a dívida.

O ciclo defendido por Chico Mendes e irmã Dorothy era altamente horizontal, com uma cadeia distributiva que cria sinergias para pequenos, médios e grandes produtores, além de integrar comunidades locais com projetos que não precisam necessariamente ser modelos de empresas tradicionais, podem ser empresas sociais também.

Por isso a irmã Dorothy me lembrava muito o Chico Mendes, os dois foram pessoas, como costumo dizer, que não tinham uma causa, era a causa que os tinha. Pessoas como eles têm um olhar assim que atravessa as coisas.