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Chico Rei quer tirar o estigma de presidiários por meio do trabalho

Interno trabalha na unidade da Chico Rei em penitenciária de Juiz de Fora (MG). - João Schubert/Divulgação
Interno trabalha na unidade da Chico Rei em penitenciária de Juiz de Fora (MG). Imagem: João Schubert/Divulgação

Felipe van Deursen

Colaboração para Ecoa, de Resende (RJ)

13/01/2021 04h00

Estava na hora da Chico Rei dar o próximo passo. Era 2015 e, até ali, a loja digital de camisetas terceirizava a confecção e a estamparia de seus produtos. Fundada sete anos antes por Bruno Imbrizi, então um estudante de Artes e Design na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Chico Rei incorporaria, também, o setor de produção.

Para isso, resolveu construir uma sede própria, que juntasse sob o mesmo teto todas as etapas do trabalho, do estúdio de criação à confecção das peças. Só que erguer um prédio para 110 funcionários seria inviável em um bairro central da cidade mineira, então a Chico Rei transferiu-se para a periferia.

Chico Rei foi um personagem lendário que, segundo a tradição oral, era um monarca do antigo Reino do Congo que foi escravizado, trabalhou na região de Ouro Preto, comprou sua alforria e a de outros conterrâneos e acabou virando novamente um rei, dessa vez em terras mineiras. Hoje, a sede da Chico Rei fica em um bairro de Juiz de Fora que homenageia outro personagem ilustre de Minas Gerais: Santos Dumont.

"Não conseguiríamos viabilizar a construção em outro local, então optamos por um bairro em crescimento. Mas desde o primeiro momento buscamos o fim social", diz Vitor Vizeu, diretor de marketing da empresa. "Junto com a mudança, começamos uma horta comunitária, disponibilizamos as hortaliças para a comunidade e priorizamos a contratação de pessoas do bairro."

Os funcionários da Chico Rei passaram a ver de perto o cotidiano do bairro, especialmente o dos estudantes e funcionários da Escola Municipal Santos Dumont. Com mais de 600 alunos, ela nunca havia passado por uma reforma geral. "Estava colecionando problemas estruturais", lembra Vizeu.

Sede da Chico Rei - João Schubert/Divulgação - João Schubert/Divulgação
Sede da marca Chico Rei, em Juiz de Fora (MG)
Imagem: João Schubert/Divulgação

Em 2018, a Chico Rei destinou parte da renda dos seus produtos para custear a reforma. Membros da equipe e da comunidade fizeram mutirões de pintura. Artistas da cidade criaram murais de grafite. Depois, revitalizaram as salas de aula, trocando de carteiras até cortinas. O trabalho está próximo do fim, segundo Vizeu, mas a Chico Rei decidiu dar mergulhos mais profundos em sua missão de "cuidar do entorno", como ele diz.

No começo de 2019, a marca lançou o selo "Camisetas Mudam o Mundo", que garante que todos os produtos têm parte da renda revertida para projetos socioambientais. "Foi a formalização do projeto iniciado na escola", explica Vizeu. "Desde o lançamento, agregamos uma série de parceiros bacanas, que fortalecem o selo, como a ONG SOS Mata Atlântica, o projeto Meninas e Mulheres na Ciência, a Apae etc." A Chico Rei ainda trabalha com outras seis instituições, da luta contra o câncer à proteção animal.

No fim daquele ano, a Chico Rei iniciou a reforma de um espaço na penitenciária masculina Professor Ariosvaldo Campos Pires, no bairro de Linhares, a fim de contratar homens que estão cumprindo pena. Tudo correu rápido. "Os novos funcionários passaram pela fase de aprendizado de confecção e em menos de 40 dias já estavam produzindo dentro do nosso padrão de qualidade", conta Bruno Imbrizi, que hoje ocupa o cargo de diretor-geral da empresa.

Atualmente a empresa tem 116 funcionários. Executando a função de costureira(o) são 31 pessoas. Na penitenciária ficam 10 desses funcionários, ou seja um terço dos costureiro(a)s da empresa são internos. Outros 20 estão em treinamento. Em novembro eles produziram 9 mil camisetas. "Esperamos triplicar esse número no primeiro trimestre de 2021", diz Imbrizi.

A realidade do trabalho nos presídios

Internos de costas - João Schubert/Divulgação - João Schubert/Divulgação
Internos trabalham na sede da Chico Rei na Penitenciária Ariosvaldo Campos Pires, em Juiz de Fora (MG)
Imagem: João Schubert/Divulgação

Na teoria, contratar pessoas cumprindo pena é bom para os dois lados. A pessoa recebe um salário de pelo menos 75% do salário mínimo, pode ajudar a família, muitas vezes desamparada, e ainda tem um abatimento de sentença, pois a cada três dias trabalhados, um dia da pena é descontado.

Para a empresa, pode ser vantajoso, já que o que regula esse regime de trabalho é a Lei de Execuções Penais, e não a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Sem CLT, não há carga tributária sobre o detento, o que facilita as coisas para a empresa. Além disso, o próprio Imbrizi explica que, ao firmar acordo com o Estado, não há cobrança de aluguel do espaço de trabalho usado no presídio.

O problema é que, muitas vezes, o preso não vê a cor do dinheiro. Cerca de 66% da população carcerária masculina que trabalha em presídios brasileiros recebe menos do que os três quartos de salário mínimo exigidos por lei. Para piorar, quase metade (48,35%) não ganha nada, segundo dados do primeiro semestre de 2020 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, relatório divulgado pelo Ministério da Justiça.

A Chico Rei está disposta a combater esse abuso de mão de obra. Ela não divulga os salários, mas Vizeu garante que eles chegam a ser 40% superiores à média do mercado. O montante é dividido em três, seguindo a norma estipulada: 25% vão para a conta-pecúlio, um tipo de poupança que eles podem acessar quando ganham liberdade, 25% ficam com o Estado e 50% vão para a assistência familiar.

Quanto ao custo da operação, apesar das vantagens citadas acima, Imbrizi pondera que há um investimento no aprendizado e que existem regras do sistema penitenciário a serem seguidas, o que limita, por exemplo, as horas de produção diárias. "O custo acaba sendo maior, mas no longo prazo acreditamos que essa conta feche positiva." Mas o foco, por ora, é outro. "Neste momento, temos uma mirada gigante para a ressocialização", diz.

Essa ressocialização já começa nas próprias camisetas. O cliente não sabe se o que comprou foi confeccionado por alguém que hoje está dentro do presídio ou não. São todas camisetas da Chico Rei, feitas por funcionários da Chico Rei.

O trabalho na prática

Internos trabalhando - João Schubert/Divulgação - João Schubert/Divulgação
Internos trabalham na Penitenciária de Ariosvaldo Campos Pires para a marca Chico Rei
Imagem: João Schubert/Divulgação

"Tivemos uma adesão espetacular por parte deles, uma velocidade inacreditável para aprender a costura. Em apenas nove dias já tínhamos as primeiras camisetas costuradas por quem nunca havia encostado em uma máquina de costura", lembra Imbrizi.

"A sequência do trabalho, fora da prisão, também tirava o sono e, hoje, vemos que a formação está muito além da capacidade de costura, mas na capacidade de acreditar em projetos pessoais e em evolução profissional. Muitos já desenham possibilidades de empresa, sociedades criadas dentro mesmo da unidade e que tomarão corpo quando estiverem em liberdade."

O diretor-geral da Chico Rei se lembra com carinho do primeiro dia de trabalho na penitenciária. Era 13 de fevereiro de 2020, seu aniversário de 33 anos. "Eu comemorava mais um ano de vida na presença de um bocado de gente nova, literalmente preso com eles numa cela de produção."

Milton Nascimento -  Chico Rei/Divulgação -  Chico Rei/Divulgação
Chico Rei lançou uma coleção oficial com roupas inspiradas em Milton Nascimento
Imagem: Chico Rei/Divulgação

Se os novos funcionários assimilaram rapidamente as técnicas do trabalho, o aprendizado da sociedade civil é mais demorado, na opinião dele. "Nosso papel é o de demonstrar a necessidade dessa mudança. Não nos cabe qualquer julgamento posterior sobre esses indivíduos", diz, ao reforçar que esses homens estão cumprindo suas penas e que eles merecem oportunidades para não retornarem à cadeia. "Ele voltará para a sociedade em liberdade. A escolha é nossa de como será esse retorno."

O impacto também repercute do lado de fora da Ariosvaldo Campos Pires. "É uma alegria danada ver mães e avós contagiadas com seus familiares nesse processo", conta Imbrizi, que já contratou parentes para o "time que trabalha fora da penitenciária", como ele diz.

Recentemente, o primeiro funcionário da Chico Rei no presídio terminou de cumprir sua pena. Ele segue trabalhando na confecção. Só que, agora, em liberdade.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do publicado em legenda de foto, a sede da marca fica em Juiz de Fora, não Santos Dumont (MG). A informação foi corrigida.