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"Parece que acordei", diz interno no Maranhão ao assistir ao doc de Emicida

Emicida no show do Theatro Municipal - Jef Delgado / Divulgação
Emicida no show do Theatro Municipal Imagem: Jef Delgado / Divulgação

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

23/12/2020 04h00

Vez ou outra aparece algo ou alguém que faz o coração bater diferente. Que faz a lágrima escapulir sem querer. Que faz a gente ter vontade de cantar em voz alta na frente de estranhos dentro de um ônibus com destino a Balsas, no Maranhão. Pode acontecer. Pois aconteceu bem assim no dia 8 de dezembro com o ludovicense Rômulo Mafra Cruz. Rômulo emocionou-se tanto que o vizinho desconhecido de poltrona ficou curioso para saber o motivo do chororô.

"Assiste aí, mermão, documentário do Emicida, conhece?", respondeu mostrando a tela do celular da qual não tirava os olhos enquanto assistia "AmarElo - É tudo pra ontem" e cantava as músicas conforme apareciam no documentário.


E quanto mais Rômulo via e ouvia, mais ficava difícil desistir da ideia que tinha nascido em sua cabeça, nas pernas, nos braços, e que tomou o corpo todo até que já não era mais uma opção se livrar dela. Bastava só colocá-la em prática. Quando desceu do ônibus, o psicólogo nascido em São Luís já tinha tudo acertado com ele mesmo: Queria proporcionar a outras pessoas a mesma emoção que sentiu do começo ao fim do filme e, por isso, promoveria uma sessão para os internos da Unidade Prisional de Ressocialização (UPR) de Balsas, onde trabalha como psicólogo há cinco anos.

O que mais me impulsionou é que finalmente a gente tem oportunidade de conseguir mostrar em uma obra audiovisual a nossa história. Não é possível contar a história do Brasil sem contar a nossa história, a história do negro. E poucas vezes nossa história foi contada de forma tão afetuosa. A gente sempre fala da nossa história com muita dor, com muita raiva, muita revolta, e o filme conseguiu passar a nossa história como se fosse um abraço.
Rômulo Mafra Cruz, psicólogo

E assim o fez. Pediu permissão para o diretor da unidade, encontrou um tempinho para explicar a uma colega de trabalho que o nome do rapper era "Emicida" e não "Homicida", como ela tinha entendido, e também arrumou um projetor, uma sala pequena e um público interessado.

O momento resultou em uma foto divulgada nas redes sociais em que três homens aparecem vestindo uma camiseta laranja com a palavra "interno" escrita nas costas. Prestavam atenção à projeção da obra em uma parede branca. A imagem rodou pelas redes sociais. O próprio Emicida a repostou dizendo: "Obrigado irmãos, essa me emocionou."

Foi Rômulo quem a tirou. Estava lá nos fundos da sala dividindo atenção entre o documentário que estava assistindo pela terceira vez em menos de 24 horas e a reação daqueles homens e mulheres privados de liberdade.

Mas o momento precisou ser interrompido logo nos minutos iniciais quando duas internas pediram para que pausassem a sessão. Tinham um pedido a fazer. Foi bem quando um menino tinha acabado de aparecer em cena andando no interior do Theatro Municipal, localizado no centro de São Paulo, onde boa parte do filme se passa. "Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje", narrava Emicida. E foi assim que aquelas mulheres ouviram pela primeira vez este ditado iorubá.

"Aí elas me falaram: 'me dá um papel e uma caneta?'", conta o psicólogo. Acharam tão interessante a citação que queriam anotá-la para não esquecer. O mesmo pedido foi repetido por outros internos e internas que lá estavam. Por causa da pandemia, fizeram sessões separadas, cada uma com 15 pessoas. Com papel e caneta em mãos, passaram os 89 minutos do filme anotando nomes, citações, palavras? Tudo que também fazia o coração bater diferente.

Uma das palavras mais anotadas e que chamou mais a atenção foi "interseccionalidade", como rememora Rômulo. "Queriam entender o que era isso. Marcou muito porque temos uma interna que é uma mulher transsexual. Ela ficou muito emocionada, falava que nunca tinha visto alguém falar sobre ser LGBTQIA+ daquele jeito", diz ao lembrar das cenas em que as cantoras Pabllo Vittar e Majur aparecem no documentário para cantar a faixa "AmarElo" no show que ocorreu no Theatro Municipal dia 27 de novembro do ano passado.

A exibição faz parte do projeto que eles vêm desenvolvendo por lá, o Visualizando Esperança, criado por profissionais da psicologia da unidade. A iniciativa tem o intuito de passar produções audiovisuais para os internos poderem debater e produzir conteúdos como resenhas de filmes. Atualmente é Rômulo quem escolhe os títulos.

"Eu movimento muito a questão da consciência e emancipação da cultura negra lá que é para [os internos] entenderem como é que eles foram parar lá dentro. Para eles entenderem o porquê que de dos 201 presos, 175 são negros. E esse é um número oficial recente que eu calculei e coloquei em uma planilha que fiz neste mês de dezembro. Então, é para trazer o questionamento também: por que a maioria da cadeia é constituída de pretos? Eles estão entendendo isso agora. Assistindo, eles falavam 'eu lembro de tal coisa que o senhor falou, desse negócio de Zumbi dos Palmares, que o senhor falou sobre a história do samba, sobre racismo estrutural...''.

A meta agora é conseguir realizar outras sessões para que todas as 201 pessoas privadas de liberdade do presídio possam assistir ao filme. E como "ideia boa tem que ser copiada", como diz Rômulo, outros profissionais que trabalham no sistema prisional em outras cidades do Maranhão já o procuraram para dizer que também começaram a passar o documentário em suas unidades.

Além disso, para janeiro de 2021 o psicólogo já tem planos de realizar o primeiro festival de cultura dentro do presídio para expor as criações artísticas dos internos e internas da Unidade Prisional de Ressocialização de Balsas.

"Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei"

Rômulo Mafra Cruz - Rômulo Mafra Cruz/Acervo Pessoal - Rômulo Mafra Cruz/Acervo Pessoal
Rômulo Mafra Cruz exibe o documentário "AmarElo" para internos no Maranhão
Imagem: Rômulo Mafra Cruz/Acervo Pessoal

Quando entrevistei Emicida, músico, empresário e idealizador do filme "AmarElo", na estreia do documentário, o questionei sobre o peso de ser um pensador, pergunta que ele respondeu dizendo que mais o interessava era saber o que as pessoas impactadas com seu trabalho fariam depois para construir um mundo mais justo.

"Fico super lisonjeado de ser uma referência, me deixa muito feliz, mas tô mais curioso é pra ver a consequência dessas pessoas que estão sendo inspiradas. Porque, mano, o tanto de gente que vai escrever, vai pintar, que vai cantar, construir, entrar na política, entendeu? Que vai construir esse mundo no qual a gente gostaria de viver, " disse em entrevista que pode ser lida na íntegra em Ecoa.

Contei para Rômulo sobre o que artista tinha falado na entrevista. Quis saber o que o psicólogo maranhense achava. "Se eu encontrasse o Emicida hoje, falaria que se o objetivo dele era tocar as pessoas, era fazer a gente refletir, se observar? Ele conseguiu. Eu acho que posso falar para ele que ele conseguiu o objetivo, fez com que todo mundo que assiste ao filme sinta uma necessidade de se entender melhor, de entender melhor como o país foi construído."

Depois da sessão com os internos, o psicólogo pôde ler as anotações que fizeram sobre o que viram. "Eles anotaram muito os nomes que apareciam. Era tipo: 'Quem é Lélia González? Quem é Abdias do Nascimento?', todas as pessoas que eles nunca ouviram falar e agora ficaram com vontade de conhecer", conta. A curiosidade dos internos, então, fez nascer a demanda para que mais livros de e sobre autores negros fossem incluídos no catálogo da biblioteca da unidade prisional.

O local anteriormente só possuía três obras sobre cultura e história negra. A biblioteca, aliás, está ali por causa de Rômulo. O psicólogo, ao ser chamado para trabalhar em Balsa, disse que só iria com uma condição: que tivesse livros por perto. "Eu construí a biblioteca na raça, em um espacinho que tinha lá sobrando. Na época, o município não tinha mesmo dinheiro para investir, então, dei meu jeito porque sem livro e sem uma biblioteca eu não faço meu trabalho." Nomeou o espaço de "Biblioteca Sabino Dantas Ribeiro", em homenagem ao finado avô, um mecânico que não desgrudava dos livros.

Após postar a foto dos internos assistindo a "AmarElo - É tudo pra ontem" mais de 100 livros sobre ou escritos por pessoas negras foram doados para a biblioteca da UPR Balsas. Mas Rômulo sabe que os números não dão conta de medir a importância da revolução que o filme causou na vida de alguns.

Olha, o resultado maior é a criação da consciência racial dessas pessoas. Depois que o filme acabou e a gente conversou sobre, alguns deles me falaram que a sensação era de estar despertando. 'Eu sinto que eu era sonâmbulo e agora estou acordando', eles me falaram. E eu disse para eles que com aquele documentário eles podiam entender mais sobre o que é narrativa. A gente nunca teve poder de narrativa, agora que temos eles podem entender de onde a gente vem para saber para onde a gente vai.
Rômulo Mafra Cruz, psicólogo

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