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Mentoras negras orientam jovens negras a crescerem no mercado profissional

Julia Teodoro, da FBC, e Viviane Duarte, fundadora do Plano de Menina, na Semana de Equidade Racial - Reprodução
Julia Teodoro, da FBC, e Viviane Duarte, fundadora do Plano de Menina, na Semana de Equidade Racial Imagem: Reprodução

Cléberson Santos

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

12/12/2020 04h00

O último dia de conversas da Semana de Equidade Racial - que reuniu nomes importantes e influentes como Joice Berth, Silvio Almeida e Eliane Dias - focou nas formas de potencializar os talentos negros dentro das empresas. Apesar de as políticas de diversidade existentes promoverem mais contratações, a manutenção e o crescimento desses profissionais ainda é uma dificuldade no meio corporativo.

Um dos caminhos apontados para enfrentar esse problema é a mentoria, em que profissionais experientes prestam apoio a novos talentos, para que esses possam reforçar suas habilidades e construir networking dentro da empresa.

Um dos painéis de encerramento do evento, promovido pela agência Wunderman Thompson em parceria com Ecoa, foi justamente uma conversa entre uma mentora e uma mentorada.

Viviane Duarte é fundadora do Plano de Menina, projeto que desde 2016 capacita meninas de origem periférica e as conectam com vagas de trabalho. O projeto conseguiu empregar 200 meninas em 2020, mesmo com a pandemia.

"Como profissional com poder de fala, com poder de decisão, a gente tem que pensar o que fazer com os nossos privilégios. O desafio é gigante e a gente tende a pensar mais no nosso umbigo do que olhar para o lado, pensar se posso ser mentor de um talento negro e fazer ele hackear o sistema também", afirma Viviane, que atualmente também ocupa o cargo de CEO do Buzzfeed Brasil.

O Plano de Menina foi responsável por ajudar Julia Teodoro, 19, a entrar no mercado publicitário. Ela conheceu o projeto há três anos, foi contratada por ele e hoje trabalha como Creative Content na agência FBC.

De acordo com Julia, o projeto foi muito necessário para que ela entendesse o que é empoderamento e como se conectar com outras mulheres que também "furaram a bolha" para chegar aos cargos que ocupam:

"É muito mais potente que dizer que qualquer um consegue. Eu sou uma pessoa muito mais segura, trabalho num lugar em que eu cobro que eu seja valorizada, que eu entendo o que posso fazer, do porquê eu estou ali e onde busco levar o que aprendi, mesmo tendo 19 anos", afirma.

O "qualquer um consegue", citado por Julia, é uma das bases do discurso meritocrático e que passa longe da proposta do Plano de Menina. Por meio do seu projeto, Viviane prefere trabalhar as capacidades emocionais das suas alunas e a compreensão da existência da desigualdade de oportunidades.

"Uma menina que mora na região de Perdizes tem experiências de vida totalmente diferente de uma que mora no Paraisópolis. A gente trabalha [a ideia de] que essa diferença não a desqualifica e que, apesar das desigualdades, ela tem uma série de resiliências e aprendizados para o dia dia do trabalho".

Julia segue o raciocínio da sua mentora, afirmando que situações de comparação de experiência, como não ter visto filme específico ou lido determinado livro, são comuns no meio criativo: "fica uma coisa meio chata nesses ambientes. As pessoas têm um compilado de vivências e de experiências, só que muitas vezes as experiências das pessoas negras são descartadas".

Ela também conta como certas características possuem conotações diferentes em uma menina branca ou em uma negra. Julia lembra que, quando criança, sempre foi organizada, cheia de ideias, mas que isso não era visto como qualidades de uma líder, mas sim de uma menina "mandona".

"Eu fui achando que esse meu jeito de querer fazer as coisas era um problema. Quando eu comecei a entender que tinha que baixar um pouco a bola e que essas características poderiam me levar a ser uma líder, vi aquilo como uma oportunidade", afirma Julia, que reforça que quer usar essa liderança para "puxar" mais meninas negras:

"Eu posso estar ocupando um espaço, mas não quero ser a única, eu quero que seja um espaço preenchido por pessoas negras, quero trazê-las para perto de mim".

Contudo, Viviane observou um detalhe que impede que outros profissionais em cargos como o dela não se sintam confortáveis em mentorar novos talentos: o medo do pupilo ser maior que o mestre.

"Isso tem a ver com ego, com vaidade, muitas vezes até com caráter. O poder precisa estar atrelado a um propósito, à ética. O mundo pede por pessoas com propósito, que saibam engajar seu time. Nosso papel como líder não é oprimir e sugar essas pessoas, mas sim construir um futuro de liderança melhor, para a sociedade e para o mundo corporativo".

O peso de ser o único

Para quem chegou a altos cargos antes do avanço das políticas de diversidade, há o peso de ser o "negro único". Este conceito não trata apenas da falta de pessoas similares nessas posições, mas sim de ser visto como um "representante" de toda a população negra e não como um indivíduo.

"Eu preciso ser a referência, não posso vacilar. A estrutura acha que não posso estar naquele lugar e, [se eu errar], não vai ver como um erro meu, e, sim, como o erro da mulher negra", observou Aline Arantes, analista de projetos do Instituto Coca-Cola.

Ela abriu a programação de ontem (11) junto com Silvio Jorge, diretor comercial da Johnson & Johnson, e Glauco Paiva, gerente executivo de relações externas da Shell. Para Glauco, o maior perigo do "negro único" é normalizar dificuldades que não deveriam ser comuns na trajetória profissional de ninguém.

"Não é normal ter que pegar três conduções para chegar ao trabalho, ou existir crianças estudando com livros achados no lixo. A gente tem que trabalhar para mudar essa realidade".

Eles debateram também sobre os desafios encontradas pelos negros que alcançam cargos de liderança. Para Silvio, primeiro é preciso "tentar reverter a engrenagem do racismo estrutural" e depois vem o desafio de manter a autoestima dentro dessa posição:

"Desde pequeno a gente recebe a mensagem de que a gente não pode, isso faz com que a gente vá dormir pensando em desistir", afirma. Aline compartilhou da opinião, afirmando que é exaustivo ter que convencer os outros da sua capacidade.

"Eu preciso fazer com que a pessoa acredite em me dar uma posição. Olhando na perspectiva de quem está começando, a pessoa olha para cima e não vê pessoas iguais a ela, só vê negros na segurança ou na cozinha. Como que eu quebro essa barreira? Dando oportunidades.", diz Aline.

A Semana de Equidade Racial encerrou sua programação com uma entrevista com Ezinne Okoro, diretora global de inclusão da Wunderman Thompson. Além de parabenizar a filial brasileira da agência em seus esforços pela promoção da diversidade, ela reforçou o quanto é urgente que as empresas apoiem seus funcionários negros:

"Se você [empresa] está pensando em iniciar um programa [de aceleração de lideranças], garanta que seja autêntico, continue investindo neles. Invista em mentores, para que esses profissionais possam compartilhar seus objetivos e desafios. Patrocine esses talentos, para que quando as oportunidades surjam, você possa facilmente lembrá-los", disse Ezinne.