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Sociólogo lança ensaio sobre 40 anos de vivências e estudos na periferia

Tiarajú D"Andrea, professor do Instituto das Cidades da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos) - Arquivo Pessoal
Tiarajú D'Andrea, professor do Instituto das Cidades da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos) Imagem: Arquivo Pessoal

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

08/11/2020 04h00

As canelas sujas de barro dos jogos nos campos de várzea, o perambular pela cidade, a vivência nas rodas de samba e a forte influência do grupo Racionais Mc's. Essas são as lembranças e experiências que formam Tiaraju Pablo D'Andrea, que aos 40 anos de idade lança o livro "40 Ideias de Periferia", com análises sobre os espaços e sujeitos periféricos das últimas quatro décadas.

D'Andrea é pós-doutor em Filosofia, doutor em Sociologia da Cultura, professor do Instituto das Cidades na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos). É correto dizer que as periferias têm lhe sido material de estudo por toda vida até agora, mas muito antes de sua mente e corpo ocuparem as cadeiras da academia, ele se marcou com as essências, diversidades e dificuldades da periferia vivendo-as na prática.

Nascido e criado na Vila União, bairro periférico do distrito de Itaquera na zona leste de São Paulo, Tiaraju viveu dilemas de habitação nas franjas da cidade que explora em sua obra e acompanhou sua mãe por movimentos sociais pela região.

"Nasci em uma família muito pobre, moramos em favela, meus pais foram separados, fui criado pela minha mãe. Sempre tivemos necessidades materiais. Moramos em diversas casas, na casa dos outros, foi uma coisa que me gerou uma dezena de traumas. Fui um moleque comum de uma quebrada de São Paulo, jogando muita bola e sem videogame", lembra Tiaraju.

Experiência e teoria, periferia como missão

Sua entrada na universidade em 2000 o levou para um novo mundo, mas que também delimitava os espaços da periferia e o fez querer se debruçar ainda mais sobre o tema.

"Na USP eu vivi um choque cultural, universidade muito longe, uma série de idas e vindas, materiais e simbólicas. A maioria eram pessoas oriundas da burguesia paulistana, os periféricos eram poucos. Me perguntei sobre algumas questões sobre desigualdade de renda, concentração de renda e do conhecimento. Para continuar na vida acadêmica resolvi que deveria mapear a periferia e percebi que muitas das teorias tinham lacunas pela falta da experiência", lembra Tiaraju.

Apesar de atribuir importância à experiência vivida, Tiaraju é categórico em afirmar que a teoria é necessária. "Viver na pele te ajuda a compreender, te dão vantagens cognitivas, mas teorizar sobre aquilo que você vive é importante. É conhecer a origem da sua dor", comenta.

Em "40 Ideias de Periferia", obra lançada pela Dandara Editora, o autor traz um ensaio sem floreios e acessível sobre suas experiências e constatações sobre o território, o livro de 67 páginas enxutas é dividido em 40 tópicos e traz uma breve historiografia da periferia paulistana. O seu público-alvo, de acordo com Tiaraju, é justamente para quem assim como ele, também está vivendo na periferia.

"É um livro para ler no busão, para ajudar a melhorar as condições de vida nesses territórios. A maior motivação desse livro foi a pandemia. É um livro de intervenção", defende.

Genocídios de pólvora a vírus

Bem antes de conhecer os pensadores e autores que o guiaram pelas estreitas trilhas da vida acadêmica, Tiaraju conheceu o som pesaroso do grupo Racionais Mc's, que estourava nos altos falantes dos carros, bares e casas em todas as periferias paulistanas e grudaram seus refrões como cola na cabeça de quase todo moleque de quebrada dos anos 1990 a 2000.

As músicas registravam uma periferia, vivida por Tiaraju e tantos outros, do começo dos anos 90, marcada por violência, mortes e abusos - uma vivência que compartilhava a conversa animada do armazém e a coletividade entre os moradores aos rastros de sangue na terra vermelha e os corpos estraçalhados de bala pela manhã, em bairros que ainda passavam pelos últimos resquícios de "semi-rurais" para se tornarem periferias urbanas.

"Nessa década fui marcado com a violência, que aprofundou a sensação de território violento. O fenômeno Racionais Mc's fez a gente se entender como morador da periferia", comenta.

Em sua obra, carregada de referências ao grupo de rap, Tiaraju compara as mortes causadas pelo cotidiano violento da época à sensação de impotência vivida hoje pelas mortes causadas por Covid-19, que também deixam os maiores rastros de sangue nas regiões periféricas de São Paulo, que tiveram números elevados de morte em comparação às regiões centrais.

"Estamos parecidos com a década de 90, altos índices de pobreza e genocídio em curso. Hoje, genocídio é operado por um vírus ou por uma omissão do Estado. Temos uma sensação de desesperança muito grande, as pessoas estão sem referências", analisa o autor.

Assim como a onda de violência gerou números alarmantes de mortes, com um homicídio por hora no final da década de 90, o vírus também se mostrou com maior letalidade nos extremos da cidade, mas ao mesmo tempo, de acordo com o autor, criou uma espécie de "niilismo" no morador da periferia, que longe de conseguir fazer isolamento social e quarentena, sentiu que "tudo dá em nada e que só morre o pobre" — ele esmiúça o pensamento parafraseando a faixa "Fórmula mágica da Paz", de Racionais Mc's.

Tiaraju também pontua em sua obra que diversas condições fazem com que as mortes precoces nas periferias sejam uma realidade, pela situação socioeconômica, violência, depressão, alcoolismo e até a onda de suicídios entre jovens mais pobres.

Perda da crença nas instituições e atuação do PCC

Cronologicamente, o autor apresenta o quanto a influência e atuação da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), o crescimento evangélico, dos coletivos culturais e de ONGs com programas assistencialistas, trouxeram uma solução alternativa [que não a do Estado] de pacificação aos territórios periféricos e consigo uma descrença generalizada na política e instituições como um todo em grande parte dos moradores na periferia.

"A periferia não acredita em política, eleição, e nem que o vírus exista. Isso é disseminado pelos atuais governantes, esses governos conservadores estão ancorando essa desesperança", defende.

Para o pesquisador precisamos encarar que estamos vivendo um dos piores momentos do Brasil. "Não há como fugir dessa análise, com um otimismo falso, que estamos todos empoderados, porque concretamente estamos na beira do abismo, se é que já não estamos nele", revela.

Apesar das análises contundentes em sua obra, Tiaraju ressalta que não é possível definir a periferia e que esse é um erro. "A periferia é uma conjunção de culturas, heranças europeias, indígenas, africanas, nordestinas. Tudo isso em uma mesma rua, eu chamaria de cultura periférica. É uma sociabilidade diferente, isso que diferencia a periferia de outros espaços", explica.

Periferia reacionária?

Com o aumento das linhas de crédito às classes populares ocorridas ao longo do tempo e proporcionalmente maiores nos governos Lula (2003 - 2010), Tiaraju lembra que a periferia foi definida como consumista. Pouco tempo depois, o funk ostentação viria com forte apelo cultural, tomando o lugar que antes pertencia ao rap nesses espaços, principalmente na capital paulista.

Anos depois, seria a vez do governo do PT (Partido do Trabalhador), também perder a sua preferência nos extremos da cidade e Bolsonaro vencer na maioria das periferias paulistanas, o que de acordo com Tiaraju rendeu uma nova catalogação à periferia, que a definiu como "reacionária", mas apesar do resultado das urnas, o pesquisador rebate que essas definições sejam corretas. "Eu não gosto de catalogação que a periferia agora é conservadora. São territórios cheios de camadas, nunca podemos perder de vista isso", explica

O autor também defende que a onda empreendedora criou um novo entendimento sobre trabalho às populações periféricas, mas que no entanto também é preciso olhar esse movimento com cuidado. "Temos a dualidade, a precariedade e a potência. Há coisas boas, mas que não podem esconder a precariedade das situações", explica.

Para Tiaraju é preciso socializar o conhecimento e torná-lo acessível a todos e defende que essa é uma das missões do seu livro. "É um livro para os mais pobres e essa é minha missão como um Intelectual público, oriundo da classe trabalhadora".

Para saber mais sobre a obra "40 Ideias de Periferia" e como comprar a versão PDF, acesse o site da editora Dandara.