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Presidente fala em cristofobia; afinal, o que é liberdade religiosa?

pessoa do Candomblé cultuando Iemanjá em Salvador - Joa_Souza/Getty Images
pessoa do Candomblé cultuando Iemanjá em Salvador Imagem: Joa_Souza/Getty Images

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

20/10/2020 04h00

"A liberdade é o bem maior da humanidade. Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia", disse o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em discurso na ONU (Organização das Nações Unidas) no final de setembro deste ano.

Para os especialistas ouvidos por Ecoa, no entanto, a declaração em defesa de uma única religião por parte de um chefe de Estado, além de ser excludente por abranger apenas uma crença e inverídica por dar a entender que são os cristãos os perseguidos no Brasil, também pode ser considerada inconstitucional. E tudo por causa de um conceito também presente na fala do presidente: a liberdade religiosa.

O que significa liberdade religiosa?

No Brasil, todo cidadão tem o direito de ser livre para professar a fé que desejar. E isso abarca a liberdade de poder frequentar qualquer celebração e manifestar tradições ligadas à crença, sem que haja discriminação por causa disso.

Hédio Silva Jr, doutor e mestre em Direito e advogado das Religiões Afro-Brasileiras, ressalta que é importante lembrar que a Carta Magna, na verdade, é mais abrangente: não fala apenas sobre a liberdade religiosa, o que excluiria da discussão parte da população considerada ateia ou agnóstica, ou seja, quem não acredita em Deus e os que afirmam não ser possível dizer se Deus existe ou não. "Na verdade, preferimos falar em liberdade de crença porque a Constituição protege tanto a crença quanto a descrença," explica o advogado.

Na Constituição de 1988, então, lê-se: "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias."

O Brasil é um país laico?

Na teoria, sim. A laicidade do Estado refere-se a não adoção de uma religião única, o Brasil não pode ter uma religião oficial. Da mesma forma que questões governamentais, então, também não podem ser atravessadas por um viés religioso. Pelo que foi estabelecido na Constituição Federal, nenhuma decisão do governo brasileiro pode ser baseada em crenças religiosas.

O que não quer dizer que ter religião é proibido no Brasil. No privado, cada um é livre para exercer seu direito a ter ou não uma fé. O problema está quando a religião aparece na esfera pública, quando deixam a crença pessoal interferir em posições governamentais. Portanto, o Brasil, ao se assumir como um país laico, também se afirma como um Estado neutro, não se posicionando a favor de uma ou outra religião, mas favor de todas, garantindo que religiosos ou não possam exercer o direito à liberdade de crença.

O conceito de laicidade foi criado e adotado por republicanos para justamente acabar com a interferência da Igreja em decisões públicas. No Brasil, o laicismo chega em 7 de janeiro de 1890, com o Decreto nº 119-A, que desfaz oficialmente a relação entre Estado e Igreja.

Mas na prática a história é outra. Apesar de ser considerado laico, não é difícil encontrar pelo país exemplos de como a religião ainda pesa em assuntos públicos. Desde os símbolos religiosos, especialmente os cristãos como crucifixos, estão espalhados por repartições públicas pelo país.

"Eu tenho dito que essa ideia de laicidade não é diferente da ideia da democracia racial. Porque falamos: 'somos todos filhos de Deus, somos todos iguais', e esse movimento não é diferente do mito da democracia racial, que nos ilude que 'não vejo cor, todos somos iguais'. Quer dizer, é uma prática negacionista, porque quando falamos que o Brasil é laico, negamos os problemas ligados às perseguições a religiões não hegemônicas", afirma o babalorixá Sidnei Nogueira, doutor em semiótica e autor do livro "Intolerância Religiosa".

Então, o Brasil não é cristão?

Durante a mesma fala na ONU, o presidente Jair Bolsonaro também afirmou que o Brasil "é um país cristão e conservador e tem na família sua base". Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em dezembro de 2019 e divulgada em janeiro deste ano mostra que os católicos correspondem a 50% da população, seguidos por evangélicos com 31%, os que não tem religião com 10%, espíritas são 3%, já aqueles que são da umbanda, do candomblé e de outras religiões afro-brasileira ficam na cada dos 2%.

Então, é possível dizer que a maioria demográfica é, sim, composta por cristãos. Mas o país em si, por ser um Estado laico, não pode se considerar cristão. Inclusive, para o advogado Hédio Silva Jr, inclusive, a falas como a do presidente podem ser consideradas inconstitucionais.

"A própria Constituição Federal tutela a rica geografia de identidades culturais, étnicas e religiosas que formam a sociedade brasileira. O presidente da república demonstra um desapreço pela Constituição ao tentar impor aos brasileiros uma única religião. Isso não deve ser um assunto de interesse do Estado. O Estado tem que cuidar dos serviços essenciais da população. Então, quando o presidente da república tenta impor aos brasileiros essa atitude totalitária, isso configura crime de responsabilidade", explica.

Existe cristofobia no Brasil?

Não é possível considerar que exista. É claro que existe um histórico de perseguição contra cristãos pelo mundo. A ONG Portas Abertas tem monitorado perseguições contra cristãos ao redor do mundo e todo ano produz uma lista com os países mais afetados pela cristofobia.

Na análise do secretário geral da organização, o preconceito contra cristãos vem crescendo vertiginosamente em alguns países, não no Brasil. Segundo dados da Portas Abertas, em 2018, eram 245 milhões de cristãos perseguidos no mundo, seja pela família, a comunidade, por religiões extremistas e governos. em 2020, o número subiu para 260 milhões.

Os cinco países mais perigosos para adeptos da fé cristã em 2020 são Coreia do Norte, Afeganistão, Somália, Líbia e Paquistão. O Brasil nunca configurou a lista, que é feita há 25 anos. Para Marco Cruz, secretário geral da Portas Abertas, qualquer especulação sobre uma mudança de cenário nesse sentido no país será precipitada.

"Não existe, portanto, no Brasil a perseguição sistemática, que proíbe a prática da fé cristã e as retaliações sociais, jurídicas e legais às quais os cristãos perseguidos estão vulneráveis em outras regiões do mundo", afirma.

Quais religiões são mais atacadas no país?

Ao contrário do que afirmou o presidente, os números mostram que não é o cristianismo que precisa de apelo à comunidade internacional hoje no Brasil. Segundo dados do próprio governo gerados pelo balanço anual do Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a grande maioria dos casos de discriminação religiosa denunciados no canal Disque 100 foram contra religiões afrobrasileiras, como candomblé e umbanda.

No livro "Intolerância Religiosa", Sidnei Nogueira define o conceito que dá nome ao livro como "um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças, rituais e práticas religiosas consideradas não hegemônicas. Práticas estas que, somadas à falta de habilidade ou à vontade em reconhecer e respeitar diferentes crenças de terceiros, podem ser consideradas crimes de ódio que ferem a liberdade e a dignidade humanas."

A perseguição, preconceito e violência contra pessoas e Comunidades de Terreiros causadas por essa intolerância e racismo são históricas. Mesmo com a liberdade de crença garantida por lei, até 1976 os terreiros de Candomblé só podiam realizar a celebrações religiosas com autorização do governo. Foram diversas as violações promovidos pelo Estado a terreiros, tendo como base o Código Penal de 1890 e o de 1942, que criminalizam religiões de matriz africana.

Para exemplificar, em entrevista a Ecoa, Sidnei relembra um dos resultados do racismo religioso contra religiões afro brasileiras durante o século 20 que ganhou um novo desfecho no final de agosto deste ano: após mais de 100 anos, 521 objetos apreendidos em batidas policiais em terreiros — que foram classificados como acervo da "Magia Negra" e estavam até então no Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro —, agora foram transferidos para o Museu da República.

A violação do princípio da liberdade religiosa produz guerras, mata pessoas, exclui grupos, espalha ódio, separa, condena sem tribunal a alteridade e mantém os 'intolerantes' no poder. Trata-se do poder de um discurso que, em verdade, acredita que todos devem ter as mesmas crenças. Talvez para facilitar o controle?

Trecho do livro "Intolerância Religiosa", de Sidnei Nogueira