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Abolicionistas penais defendem reparação às vítimas da guerra às drogas

Homem durante passeata para legalização da maconha  - MIKE HUTCHINGS/Reuters
Homem durante passeata para legalização da maconha Imagem: MIKE HUTCHINGS/Reuters

Matheus Pichonelli

Colaboração para Ecoa, de Campinas (SP)

27/08/2020 04h00

Não basta legalizar a produção e consumo de drogas, como a maconha, no Brasil.

Em vez de copiar processos como os de alguns estados norte-americanos, é preciso pensar em um modelo próprio de regulação das substâncias que coloque em discussão três grandes etapas posteriores à descriminalização e, consequentemente, ao fim da guerra às drogas: reconstituição histórica, medidas reparatórias e condições para que as populações negras, vítimas principais desta guerra, tenham condições de disputar o mercado lícito.

É o que afirmam dois abolicionistas penais ouvidos pelo Ecoa durante uma videoconferência realizada na quinta-feira (20).

"É fundamental que a gente estabeleça mecanismos para verificar os impactos da guerra às drogas ao longo dos anos para poder, inclusive, responsabilizar o Estado. Isso vai estabelecer um marco temporal em que o Estado reconhece a sua participação e vai investir recursos para superar esse quadro a ponto de não ser repetido", defende o historiador e especialista em Gestão Estratégica de Políticas Públicas Dudu Ribeiro, que conversou com a reportagem ao lado da socióloga Nathália Oliveira, ex-presidente do Conselho Municipal de Políticas Sobre Drogas e Álcool de São Paulo (COMUDA) e uma das principais vozes do ativismo anti-proibicionista no país.

Ambos atuam hoje na Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, primeira ONG de advocacy que propõe mudanças na abordagem atual de encarceramento e violência contra populações negras no Brasil.

A preocupação com o momento de superação da guerra às drogas é não repetir erros do passado, como aconteceu ao fim da Abolição da Escravatura, em 1888.

Segundo eles, não se pode pensar em um processo de legalização que diga "a partir daqui está legalizado e o que aconteceu antes está tudo certo". Eles defendem uma discussão profunda sobre reparação às vítimas dessa guerra seletiva e a introdução de políticas afirmativas de crédito que permitam a inclusão de pessoas negras neste mercado, não apenas como empregadas dos empreendimentos brancos.

Trata-se, afinal, da superação de um trauma coletivo histórico. "Quando a gente pensa no pós-abolição, várias pessoas brancas, da elite, eram a favor do fim da escravidão por interesses econômicos. No dia seguinte parte dessas pessoas não estava ao lado dos sujeitos negros que receberam a sua abolição para a construção de políticas reparatórias e inclusão desses sujeitos enquanto cidadãos. A mesma coisa na ditadura. O Brasil tem uma dificuldade muito grande em rever o seu passado e produzir processos de reparação", diz Nathália Oliveira, de sua casa, em São Paulo.

Os processos inconclusos, segundo ela, deixam mazelas no tecido social que podem durar duas, três gerações seguidas ou até mais. É o caso também da guerra às drogas.

Segundo Dudu Ribeiro, as etapas de superação idealizadas pelo movimento visam a impedir que aconteçam por aqui as distorções já observadas em estados norte-americanos onde é vetada a participação no mercado lícito de pessoas criminalizadas anteriormente pela política de drogas. Lá, afirma ele, a mudança na lei não significou mudanças na criminalidade e na política de encarceramento em massa. "A população negra não consegue entrar no mercado lícito. A gente vai precisar, nesta etapa de oportunidades, reduzir as disparidades. Vamos precisar desde créditos para agricultura familiar até processos de incentivo a empreendimentos comunitários", afirma o historiador, que atua em Salvador.

Ele lembra que, atualmente, existem mais medidas restritivas do que facilitadoras do acesso no Brasil à terapia por cannabis, por exemplo. "Temos hoje o remédio que está validado pela Anvisa que é longe do acesso da maioria das pessoas do Brasil porque é caro. Ainda não temos condição do autocultivo, para pessoas produzirem seu próprio remédio. E não temos uma política que pense a disseminação e a distribuição das possibilidades terapêuticas da cannabis pelo SUS, que de fato faria com que ela virasse uma política pública e não apenas um privilégio. Isso sem falar de outras substâncias que já tiveram as suas propriedades medicinais exploradas, como a própria cocaína, o MDMA e o LCD. Nós estamos ainda mais longe de pensar nos caminhos regulatórios para essas substâncias também."

Guerra contra quem?

Até que essa legalização aconteça, é preciso desativar uma guerra em curso no Brasil. E essa guerra não é contra todo mundo.

Lucas Morais da Trindade, preso preventivamente há mais de um ano por portar 10 gramas de maconha - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Lucas Morais da Trindade, preso preventivamente há mais de um ano por portar 10 gramas de maconha, foi vítima da covid-19 em um presídio de Minas Gerais
Imagem: Arquivo pessoal

"O modelo de acesso a substâncias ilícitas para a população negra tem a morte, a guerra, o encarceramento e o massacre, mas para a população branca tem o lucro", afirma Dudu. "A gente consegue observar a participação de grandes corporações no processo de circulação das substâncias psicoativas. Não foi à toa que, alguns anos atrás, o HSBC pagou um acordo bilionário nos EUA para se safar de uma investigação criminal depois de passar longas décadas lavando o dinheiro do tráfico de drogas no México, assim como as toneladas de cocaína achadas no navio registrado em nome da JP Morgan, um dos maiores bancos do mundo. Então existe um tipo de circulação que não vê a guerra. Ele não se movimenta a partir das armas, a partir das mortes. Ele se movimenta a partir da linguagem econômica e financeira."

Os estudiosos lembram que, de acordo com uma pesquisa de 2015 do Instituto Igarapé, em 75% dos casos de apreensão em flagrante de maconha no Rio de Janeiro, a quantidade não chegava a 50g. Para cocaína, 11g foi o máximo apreendido em 50% das ocorrências, enquanto metade das apreensões de crack era de 5,8g. "Isso nos faz pensar que essa guerra não é necessariamente por causa das drogas. Não importa se vendeu-se maconha, explosivo ou Pinho Sol. Existe uma criminalização antecipada. Em determinados territórios, a pessoa é criminalizada antes da droga chegar. O processo de regulamentação deve levar isso em consideração para combater as condições estruturais da aplicação da Justiça no Brasil. Não quer dizer que se a gente legalizar todas as substâncias não vão aparecer novos instrumentos de criminalização das pessoas e dos territórios. Porque o Rafael Braga foi preso com Pinho Sol. Não foi preso com explosivo", diz o historiador.

Essa situação de desigualdades ficou ainda mais evidente durante a pandemia. Isso apesar de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça visando a redução da população carcerária durante o período. "Mesmo com essa orientação, os magistrados não a seguem. Inclusive porque eles são parte fundamental desse modelo de guerra às drogas. Tivemos não só no Rio de Janeiro, como aqui mesmo, na Bahia, um crescimento da mortalidade das pessoas na cena urbana. As operações policiais continuaram mesmo no cenário de pandemia. A ideia do 'fica em casa', para muitos de nós, é também arriscada, porque a política de segurança pública vai até nossas casas", diz ele.

Por conta disso, a Iniciativa Negra lançou o site "Drogas na quarentena" para divulgar informações para redução de danos no uso de substâncias psicoativas que poderia ser influenciado pelo cenário de isolamento social.

"Hoje, em Salvador, vivemos uma situação de crescimento de 28% em relação ao mesmo período do ano passado em relação a homicídios. Isso tem a ver com o modelo de combate às drogas, mas não necessariamente os conflitos são gerados pelas substâncias. Muitos são gerados pela opção do Estado de fazer a guerra."

Da senzala ao cárcere

Atualmente, segundo a Iniciativa Negra, 156.749 pessoas estão encarceradas por crimes relacionados a drogas no Brasil.

Discutir a política de drogas é discutir a seletividade do sistema de Justiça. Essa seletividade tem o racismo como ponto central. De acordo com um levantamento de 2017 feito pela Agência Pública, 71% das pessoas negras condenadas por tráfico no Brasil tinham, em média, 145 gramas de maconha. Já para 64% dos brancos condenados, foi preciso carregar uma quantidade oito vezes superior da droga, 1,14 quilo, em média, para receberem a mesma pena.

A população carcerária no Brasil praticamente triplicou nos últimos 20 anos, saltando de 232,7 mil presos em 2000 para mais de 770 mil no primeiro semestre de 2019. Esse crescimento foi impulsionado por alterações na Lei de Drogas, em vigor desde 2006.

Hoje, segundo Nathália Oliveira, cerca de 70% das condenações acontecem com base apenas na palavra dos agentes policiais que estavam na operação, sem a devida apuração do Ministério Público. "Isso pode gerar várias distorções e desproporcionalidades. A gente tem diversas condutas que podem ser lidas como tráfico. Isso é a mudança dessa lei. Tem situações de pessoas que são presas em território de periferia só com uma quantidade de dinheiro trocado, sem nem droga nem nada. E, muitas vezes, uma coisa que pega na condenação desse sujeito é que, se ele foi preso em uma região periférica, automaticamente já dizem que ele estava associado ao tal crime organizado. É como se essa lei trouxesse a costura para uma prática que já acontecia", diz a especialista, para quem o sistema cria uma situação de poucas possibilidades para o cidadão deixar a ilicitude depois que ele vai preso.

Segundo os ativistas, acabar com o paradigma da guerra às drogas tem um pressuposto anterior. "Primeiro é preciso criar esse processo de humanização e entender que não é normal a maneira como alguns territórios, principalmente urbanos, são tratados de maneira diferenciada no Brasil para que a gente consiga chegar a uma demanda de pacificação na sociedade a partir da guerra às drogas. Isso envolve repensar segurança pública, o sistema de Justiça, o acesso à defesa. Esses temas são conectados", diz Nathália.

"É importante, para quem faz advocacy, acompanhar as leis correlatas, os programas de governo, de modo a criar uma configuração, um contexto de pressão que gere essa necessidade de fazer a pacificação e a posterior regulamentação das drogas. A guerra às drogas é hoje um grande ator para a manutenção dessas estruturas de desigualdade."

Funcionários trabalham em estufa com plantação de maconha, em Carpinteria, na Califórnia - Jae C. Hong/AP - Jae C. Hong/AP
Funcionários trabalham em estufa com plantação de maconha, em Carpinteria, na Califórnia
Imagem: Jae C. Hong/AP

Até o fim do século 19, lembra ela, os sujeitos negros eram tratados como mercadoria, sem direito, portanto, à cidadania. O discurso era o de deter esses inimigos. "Qualquer resistência era vista como ameaça. Então era autorizado direcionar a sua política, suas leis, contra os sujeitos negros. A intencionalidade de um século e início de outro, com várias políticas eugenistas, da medicina, inclusive, embasaram várias coisas que a gente tem até hoje. Quando se diz que a lei é racista, ela pode não ser em sua declaração, mas o conjunto do pensamento que embasou este arcabouço foi e tinha essa intenção declarada", afirma Nathália.

A socióloga lembra que a guerra às drogas resultante desses processos históricos atinge hoje o elo mais frágil da cadeia de produção e consumo. "Não é na favela que você tem o solo para plantar, seja maconha ou cocaína, não é na favela que estão os laboratórios de refinamento. Toda essa outra estrutura da cadeia produtiva está invisibilizada. Então é uma guerra altamente desproporcional e muito cruel."

Segundo ela, na medida em que o Estado brasileiro, sabendo disso e faz a opção por manter a segurança pública nos moldes atuais, gerando como resultado 50 mil mortes por ano, ele se torna também um investidor dessa guerra.

Para Dudu, o ambiente para rediscutir esse paradigma só vai se ampliar no cenário político quando o racismo institucional no Brasil for devidamente combatido. "Vamos precisar caminhar mais juntos da sociedade brasileira no sentido da reumanização dos corpos desumanizados nos processos de guerra. As pessoas continuam convivendo com 50 mil pessoas assassinadas por ano já há mais de uma década no Brasil e mais de 700 mil pessoas presas. Esse é um cenário plenamente desumanizador. A gente precisa fazer este processo junto à sociedade brasileira de reumanização, de construção deste sentido de humanidade, para elas também conseguirem cada vez mais perceber a necessidade de superação desses mecanismos de guerra."

Milícias e armamentos

Na história da guerra às drogas, o controle transnacional ganha corpo no período da Guerra Fria, uma época marcada pela alta produção de armamentos. O final da Guerra Fria, segundo Dudu, impõe um desafio aos produtores de armamento: como dar vazão a essa produção? A resposta aconteceu por meio do incentivo de conflitos armados na América Latina e nos territórios africanos. "O processo de guerra às drogas cai como uma luva para esse processo de escoamento da produção de armamento", diz o historiador.

Hoje, segundo ele, existe "um conjunto gigantesco" de decretos e portarias publicadas pelo governo brasileiro que facilitam a compra de armamento e dificultam o rastreamento das munições. "Temos também um processo de monopólio da venda de armamentos para as polícias no Brasil. Tanto a empresa que vende os armamentos quanto a empresa que vende os cartuchos se movimentam no mercado como um monopólio. O que nos conecta com esse movimento de armamento com a política de guerra às drogas é que a indústria armamentista é uma das grandes lobistas de manutenção do processo de guerra. É a partir deste processo que ela vende armas tanto para as polícias quanto para as seguranças privadas e essas perspectivas de armamento individual vai sendo escoada para o mercado ilícito. A questão é que o armamento lícito, mesmo permitido e menos controlado, não é barato. As pessoas ricas vão conseguir comprar armamento regulamentado e as pessoas que não têm acesso e queiram se armar vão ter que continuar comprando no mercado ilícito. Essa é uma questão: quem está se armando. Quem está comprando no mercado lícito não é o conjunto da população brasileira, que não tem condições de pagar R$ 6 mil, R$ 7 mil em uma arma. E pagar todos os tributos decorrentes desta aquisição."

Segundo ele, a morte da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, no Rio, é representativa dessa questão do controle dos cartuchos. "Depois que se descobriu qual era o cartucho e tentou-se fazer o rastreamento, chegou num montante de mais de um milhão de balas em uma única venda. É um conjunto de instrumentos que permitam a atualização do processo genocida no Brasil. Para nós, da iniciativa negra, a guerra às drogas é o arcabouço mais bem acabado de um processo que é histórico. Não apenas da produção de mortes, mas de sequestros, de estigmatização, porque isso tem a ver com a disputa de possibilidades de acesso à cidadania desde o pós-abolição", afirma.

Ele lembra que, no período pós-abolição, a aprovação de um código penal aconteceu dez anos antes da aprovação de um código civil, justamente para impedir o acesso à cidadania da população negra egressas da escravidão. "Ao longo do século 20 a gente vai ter várias etapas, desde a declaração do (médico) Rodrigues Doria, em 1915, que diz que a maconha é uma vingança dos negros contra os brancos, e por isso tem que ser proibida, até a declaração de guerra às drogas do presidente (dos EUA Richard) Nixon, que criou a guerra às drogas pensando em controlar negros e os brancos que iam para as ruas contra a Guerra do Vietnã. Temos etapas que conseguem dar uma visualização de como a guerra às drogas tem relação com processos anteriores de subalternização, de violência, de controle."