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Bom pra todo mundo

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Marca de cosméticos sustentáveis no Alemão triplica vendas na pandemia

Claudio Marques e Felipe Garcia criaram a Kurandé no Complexo do Alemão, no Rio - Arquivo Pessoal
Claudio Marques e Felipe Garcia criaram a Kurandé no Complexo do Alemão, no Rio Imagem: Arquivo Pessoal

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

10/08/2020 04h00

Óleo de cozinha que vira sabão. Ervas e plantas medicinais para fazer garrafadas que prometem curar quase todo e qualquer tipo de enfermidade. A prática e o conhecimento de duas avós foi o que bastou para que Claudio Marques, morador do Complexo do Alemão, no Rio, largasse a vida de "bico em restaurante", trabalhando dia sim, dia não como garçom, para se tornar dono do próprio negócio aos 25 anos.

Cursando História da Arte na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Claudio conheceu Felipe Garcia, estudante de Biologia, com quem criou a Kurandé. Juntos, os sócios produzem fórmulas sustentáveis para sabonetes, cremes e outros cosméticos a partir do conhecimento fitoterápico e do resgate de práticas de autocuidado ancestrais, em sua maioria de cultura africana e indígena.

"A gente sempre conversava sobre nossas vivências e infância. Um dia, Felipe me contou que sua bisavó era curandeira e parteira, por isso sempre teve contato com plantas e chás. Enquanto ele falava, me lembrei da minha avó. Ela também fazia xaropes caseiros e vivia na cozinha separando óleo de cozinha para fazer sabão. Foi nesse momento que pensamos em unir esses dois saberes", relembra Claudio.

Felipe, que já pesquisava sobre fitoterapia - estudo de plantas medicinais - na faculdade, passou a ser responsável pela parte técnica e pela elaboração de processos químicos, enquanto Claudio ficou com a escolha de insumos. "Recorri tanto à minha avó, quanto ao meu Axé. Sou iniciado no candomblé e fui perguntar para os mais velhos, minha avó e mãe de santo, quais eram as ervas boas para o corpo, cabeça e mente. E aí, a partir da experiência acadêmica do Felipe, criamos a primeira linha de produtos: três sabonetes e um creme corporal à base de ervas e plantas medicinais".

Kurandé - Divulgação  - Divulgação
Nascida em uma cozinha do Complexo do Alemão, a Kurandé passou a fazer parte do circuito de feiras e eventos do Rio e de SP
Imagem: Divulgação

O empreendimento, que começou de forma despretensiosa em uma cozinha, com apenas amigos e vizinhos clientes, passou a marcar presença em feiras e eventos e viu crescer o número de encomendas. O que era para ser um dinheiro para complementar o bico de garçom virou a principal fonte de renda dos rapazes. Hoje, a Kurandé conta com um espaço para retirada e entrega de fornecedores no centro do Rio.

"No começo, a gente teve muito problema com o serviço de correios, que não atende a nossa região, e também com uma boa parte dos fornecedores. Então, tivemos que alugar um box e criar um CEP fora da favela para poder continuar e dar conta da demanda", explica Claudio.

Laranja, capim limão e... nada de sabonete quadrado!

Desde que foi criada, em 2019, a Kurandé se preocupa em democratizar o uso de produtos sustentáveis. Além de não utilizar plástico em suas embalagens, a marca age diretamente na cadeia de produção e de consumo, priorizando plantas, ervas e outros insumos da flora brasileira e latinoamericana. O resultado é a comercialização de produtos artesanais e a preços mais acessíveis. Sabonetes, cremes e xampus vão de R$ 12 a R$ 42,90. Kits completos, com uma gama variável de produtos, saem a partir de R$ 155.

"O que acontece é que, às vezes, dentro da sociedade, o debate da sustentabilidade é visto quase como um status social. Existe um mercado de produtos com preços lá em cima. E por quê? Algumas marcas de cosméticos naturais, por exemplo, usam óleo essencial de uma erva que você só encontra lá fora, numa região superfria, distante. Isso aumenta o custo de produção e o preço final. Então, o que a gente faz é focar em uma sustentabilidade que seja real: por que vou usar óleo essencial de uma erva supercara se posso ter o mesmo efeito com uma erva brasileira e ainda resgatar o conhecimento de quem já fez esse uso?", questiona Claudio.

Kurandé 2 - Divulgação - Divulgação
Para a produção de sabonetes, cremes e xampus são usadas plantas, ervas e outros insumos da flora brasileira
Imagem: Divulgação

A Kurandé usa e abusa de laranja, capim limão, cravo, óleo de coco de babaçu, manteiga de murumuru e manteiga de cupuaçu. "Temos uma flora riquíssima. Valorizar o que é daqui é uma forma de valorizar o ensinamento de nossos ancestrais também."

Com o boom das máscaras faciais, o empreendedor explica o sucesso da "Despertar de Hórus", um dos produtos mais vendidas da marca. Ela é feita com argila branca, urucum, linhaça marrom, camomila entre outros insumos.

"Muita gente atribui essa questão do 'skincare' a algo muito do ocidente. Com a Despertar de Hórus, por exemplo, a gente buscou trazer essa reflexão de que se trata de uma prática muito antiga, feita desde África, por diversas tribos. Tribos da Namíbia vestiam o rosto todo e o cabelo com uma argila superpotente, rica em ferro, que tornava a pele mais saudável e resistente ao sol, entende? Esse resgate é importante porque mostra o por quê de nossas escolhas e ingredientes", explica.

Sustentabilidade dentro da favela

A memória afetiva da avó preparando sabão não só inspirou o lado sustentável da marca, com ajudou a definir o "estilo" dos sabonetes. "Uma coisa que ficou na minha cabeça é que sabão quadrado é para lavar roupa. Minha avó fazia justamente assim para não confundir com o redondo, de tomar banho. Mesmo assim eu confundia algumas vezes. Quando comecei a Kurandé, pensei: tudo, menos sabão quadrado!", brinca.

Máscara facial sólida, da Kurandé, feita com argila branca, erucum e camomila - Divulgação  - Divulgação
Máscara facial sólida, da Kurandé, feita com argila branca, urucum e camomila
Imagem: Divulgação

Para Claudio, assim como a reutilização do óleo de cozinha, outras práticas de sustentabilidade já acontecem há muito tempo dentro das favelas, mas não são validadas pelo mercado como tal. Quando uma mãe faz a customização de uma calça do filho mais velho para dar ao mais novo. Ou quando garrafas pet são utilizadas como vaso, o uso de potes de manteiga, copos de requeijão... "A reutilização, que hoje chamam de movimento upcycling, ou slow fashion... Tudo isso já acontece aqui, só não tinha esses nomes ".

Com a Kurandé, os empreendedores querem dar visibilidade ao debate sobre sustentabilidade se tornando protagonistas da ação. "O que falta ainda, na comunidade, é entender essa sustentabilidade como uma escolha e oportunidade, não apenas como necessidade: 'Não tenho dinheiro para comprar uma roupa nova, vou dar um jeito nessa daqui'. Isso é feito por necessidade. Mas existe o outro lado, de repensar o consumo, e isso se mostra no nosso direito de escolha", afirma.

Do Complexo do Alemão para o mundo

Mesmo com a pandemia de Covid-19, a Kurandé triplicou o número de vendas. O sucesso, no entanto, não veio de maneira fácil. "No primeiro mês, com eventos e lojas fechados, nossa principal fonte de renda ficou ameaçada. Estávamos com a agenda lotada, com diversas feiras tanto no Rio quanto em São Paulo. A única saída foi investir na digitalização do negócio. Repensamos toda a divulgação, ampliamos nossa plataforma virtual de vendas e impulsionamos nossas redes sociais".

O resultado ultrapassou as expectativas. Em julho, a Kurandé vendeu muito mais pela internet do que em qualquer mês com participação em eventos. Agora, Claudio e Felipe se preparam para abrir a primeira loja física no Complexo do Alemão. O espaço vai se chamar Casa Kurandé e, além da comercialização de produtos, oferecerá práticas de autocuidado com terapias holísticas, massoterapia, acupuntura e yoga.

"Gostamos muito de falar que a nossa audácia enquanto homens favelados é de fazer com que a 'gambiarra' se torne um debate frequente na sociedade. Existe uma visão do senso comum de que na favela tudo é improvisado, nada é bem feito, planejado. E estamos aqui para quebrar esse estereótipo. Quando perguntam: 'Mas vocês fazem tudo isso dentro da favela?'. Sim, por quê não? É claro que não podemos romantizar e sabemos de todos os problemas estruturais por parte do Estado, que só entra aqui com o braço armado, mas a gente acredita e vê muita força na comunidade, como um lugar que gera potência e muitas soluções".

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