Projeto promove literatura para crianças e jovens do Morro do Alemão (RJ)
Ao transformar a sala de aula em um ambiente de leitura participativa, com cada aluno tendo em mãos um exemplar do texto que era lido e em seguida discutido, a então professora de literatura Suzana Vargas validou a percepção de que assim conquistava mais a atenção dos alunos e passou a usar a prática como método de ensino, no início dos anos 1990. Em 1993, ela transformou a experiência em um projeto, batizado de Rodas de Leitura, e apresentou para o recém inaugurado Centro Cultural do Banco do Brasil, o CCBB, do Rio de Janeiro. Aceito, a proposta acordada era de realizar os encontros por três meses.
O sucesso foi tanto que o Rodas de Leitura que essa parceria durou 13 anos e recebeu nomes como Dias Gomes, Luis Fernando Veríssimo, Regina Navarro Lins, entre outros.
De lá para cá, a ideia se expandiu: promoveu inúmeros eventos literários e oficinas de leitura e escrita levando Suzana a criar a Estação das Letras, que anos depois se torna um instituto, com o objetivo de democratizar a leitura e levar a literatura para além dos muros da academia. Em mais um passo nesse objetivo, o Rodas de Leitura chega ao Morro do Alemão, comunidade no Rio de Janeiro, em parceria com a Associação Nagai que já atua na região, beneficiando cerca de 120 famílias.
"Levar o projeto para o Alemão já seria especial mas neste momento, especificamente, é ainda mais ao considerarmos que, por causa da pandemia, as crianças e adolescentes estão longe da escola. É levar aprendizado por meio da leitura e atividades lúdicas, mesmo que virtualmente, em um momento de incerteza", afirma a idealizadora da iniciativa. São três dias de encontro online, sendo que no último o autor participa virtualmente da leitura e recebe perguntas e comentários sobre a obra.
O escritor indígena Daniel Munduruku é o segundo autor que se juntará com crianças, de 9 a 12 anos, para debater o livro "Meu Vô Apolinário", lido pelo grupo em julho.
Daniel é de Belém, Pará, e é filho do povo Indígena Munduruku. Nasceu em 1964, ano do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil. Essa "coincidência" moldou completamente vivência de Daniel: em 1967 os militares criaram a Funai, que seria uma tutora responsável pelos indígenas, subentendo à população que eles não tinham capacidades próprias e não poderiam ter autonomia.
"Isso quer dizer que nossa história, nossa identidade, seria apagada. Que nós deveríamos nos submeter à escola; à medicina do branco, e talvez assim nos tornaríamos pessoas 'civilizadas'. E eles foram muito eficientes nessa estratégia, ajudando a construir a imagem - que ainda existe - de que o indígena é selvagem", explica Daniel, que já atuou como professor e é pós-doutor em Literatura.
Ele e tantas outras crianças indígenas que cresceram nesse período viviam durante o ano letivo na cidade, afastados da convivência, da língua e dos rituais de suas comunidades. Nas férias, podiam voltar para a aldeia - mas muitos nem queriam. Ao vivenciar a violência moral e o bullying nas salas de aula, uma ojeriza à própria identidade ia sendo calcificada.
O escritor fala sobre seu processo nesse contexto e como a perspectiva do avó, as histórias e a convivência que tiveram, o levou a aceitação, ainda que o mundo dos brancos persista em moldar as narrativas raciais. Com anos dedicados à educação, Daniel vê nela a ferramenta de mudança do imaginário preconceituoso aos indígenas, apoiada em políticas públicas governamentais. "Em 2008, houve alguns passos nesse sentido [com a lei 11.685 que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e culturas afrobrasileira e indígena], mas é muito recente e os pequenos avanços têm sido inviabilizados pelo atual governo".
A turma de leitores encontrará com Daniel Munduruku na próxima segunda-feira (10) e a transmissão será aberta ao público, ao vivo, pela fanpage do Instituto Estação das Letras, às 15 h.
O projeto continua ainda em setembro com jovens de 13 a 21 anos que irão ler o livro de contos "Olhos D'Água", de Conceição Evaristo, uma das referências ao combate à vulnerabilidade social. E o encontro com a autora acontecerá em setembro e também será transmitido pela página do Instituto, no dia 15.
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