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Plano de resíduos aumentou coleta seletiva, mas não mudou padrão de consumo

Marlon Trottmann/Getty Images/iStockphoto
Imagem: Marlon Trottmann/Getty Images/iStockphoto

Janaina Garcia

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

02/08/2020 04h00

A ideia expressada em lei no dia 2 de agosto de 2010 até que era promissora, mas o fato é que o Plano Nacional de Resíduos sancionado pelo governo federal ainda não conseguiu, uma década depois, impactar de forma significativa um elemento considerado essencial ao volume de resíduo produzido no país e à forma como ele é descartado: a adoção de hábitos de consumo mais sustentáveis por parte do cidadão.

A avaliação foi feita por especialistas consultados por Ecoa sobre esses dez primeiros anos da lei 12.305, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no último ano de seu segundo mandato, mas com trechos regulamentados via decreto apenas no começo de 2020.

Para eles, embora ela tenha trazido resultados positivamente impactantes a uma coleta e manejo mais sustentável do resíduo, a lei ainda precisa avançar na questão dos aterros sanitários regionalizados e na logística reversa, instrumento por meio do qual o resíduo sólido produzido pelo setor industrial é reciclado e/ou custeado por ele próprio.

Consultor do governo federal à época em que a lei foi confeccionada, o advogado Wladimir Ribeiro cita um exemplo trivial de produto da indústria alimentícia para explicar a importância da logística reversa: a caixa de cereais.

"A embalagem desse produto é enorme, com uma tinta chamativa que dificilmente é reciclável e cerca de 30% do conteúdo dessa caixa, efetivamente, produto, cereal. Só que depois que usufrui disso, o consumidor descarta a caixa vazia - e o custo da destinação dessa embalagem fica nas costas do serviço público, ou seja, o próprio contribuinte acaba sustentando o custo ambiental dessas embalagens", explica. "Com a logística reversa, isso muda: a indústria recolhe ou paga alguém para recolher esse resíduo dela, o que poderá fazer com que ela diminua o tamanho dessa embalagem, a faça mais sustentável - e o consumidor dela vai pagar mais ou menos por isso, segundo seus hábitos de consumo. Isso é fundamental essa logística, ou sempre teremos ações de manejo paliativas, sem mexer em padrões de consumo que os façam mais sustentáveis", avaliou.

É por essa razão, continua o advogado e consultor, que na Europa embalagens feitas de vidro ainda são tão visadas pela indústria: o material é altamente reciclável, fator importante ao se colocar nos cálculos da operação o custo ambiental das embalagens.

Países europeus, em geral, gastam zero com reciclagem porque ela é paga por quem colocou esse resíduo no mercado; se o consumidor que usar embalagem mais sustentável pagar menos, isso induz ao consumo mais sustentável

Wladimir Ribeiro, advogado e consultor do governo federal à época da implantação da lei

O dispositivo da lei de 2010 que tratava da logística reversa só foi regulamentada em fevereiro deste ano pelo governo federal, por meio do decreto 10.240 - ainda assim, apenas a resíduos sólidos de composição eletroeletrônica e para implantação em duas fases: 400 pontos de recolhimento em 2020, com cidades acima de 80 mil habitantes, e 5 mil pontos distribuídos pelo país na fase final, em 2025.

"Apesar de existir muito ainda a avançar sobre a logística reversa, alguns setores e empresas têm se movimentado pelo cumprimento da medida - como os de pilhas de baterias e de eletroeletrônicos - de forma crescente até por perceberem vantagens competitivas e econômicas desse tipo de ação", acrescentou a administradora pública Fernanda Iwasaka, analista de conteúdos e metodologias do Instituto Akatu.

O Plano sancionado em 2010 ainda institui a responsabilidade compartilhada dos geradores de resíduos, sejam eles fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, o cidadão e titulares de serviços de manejo dos resíduos sólidos urbanos na logística reversa.

Lei trouxe avanços em coleta seletiva

Reciclagem, coleta seletiva - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Para a engenheira civil sanitarista Heliana Kátia Campos, coordenadora nacional da câmara de resíduos sólidos da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), no entanto, a lei - até por desdobramentos legais mais recentes -também trouxe avanços.

Ela cita pesquisa da Abes feita com dados do Snis (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), referente ao período 2009-2018, para mostrar que, por exemplo, a coleta seletiva realizada em cerca de 300 cidades, em 2009, avançou para mais de 1000 cidades em 2018, "embora longe de estar universalizada".

"Além disso, o Snis dava que, em 2013, foi atingido um total de 512 prefeituras operando aterros em todo o país; em 2018, eram 388 prefeituras - porque os municípios estão deixando de eles próprios operarem aterros pequenos e indo para a iniciativa privada ou consórcios, em aterros regionalizados, o que é uma tendência mundial", avalia. "Um exemplo é o aterro sanitário de Minas do Leão (RS), por exemplo, que recebe resíduos de 124 municípios gaúchos. Isso é bom, porque um aterro pequeno é insustentável -- 124 deles fecharam, nos últimos seis anos, porque os municípios pegam dinheiro com o governo federal, o implantam, mas não conseguem operar: o custo só vale a pena para atender a partir de 100 mil habitantes", mencionou.

Compostagem de orgânicos estagnou

Por outro lado, um instrumento da Política Nacional de Resíduos Sólidos que estagnou entre 2009 e 2018, apontou a pesquisa, diz respeito à compostagem de resíduos orgânicos: permaneceu em 70 municípios no começo e no fim do período.

"Nosso trabalho é para que o município fique com o reciclável e o lixo orgânico, este, para compostagem, e mande para o aterro só o que é rejeito: sai mais barato, à medida que, ao pagar para transportar e aterrar lixo orgânico, algo que é caro e pode danificar estradas, grande parte desse volume é água", pondera. Sobre o produto final da compostagem, Kátia observa que ele pode ser usado nas áreas verdes da cidade para melhorar a qualidade do solo. Belo Horizonte e Brasília, segundo a coordenadora da Abes, têm modelos relevantes de compostagem orgânica a partir de grandes geradores.

Um ponto que nem o advogado que foi consultor da lei, tampouco a engenheira acreditam ter avançado com mais ênfase nesses dez anos foi a institucionalização da coleta e tratamento de resíduos, no âmbito dos municípios, inclusive sem uma tarifa específica capaz de nutrir o serviço.

A obrigatoriedade dessa cobrança só foi regulamentada com o novo Marco Nacional do Saneamento, sancionado pelo governo federal no último dia 15, o qual estipulou prazo de até um ano, a partir da sanção da lei, para que serviços de coleta e destinação final de resíduos sejam tarifados. "Essa tarifa tem que ser instituída em até 12 meses, ou isso vai configurar renúncia ilícita de receita pública. Como há uma falta de sustentação econômica e financeira para o serviço, esse foi um avanço", definiu Ribeiro.

"Sou uma fervorosa defensora de que seja cobrado pelo serviço conforme a geração e a capacidade de pagar; gerou mais, paga mais, não é assim com água e energia elétrica? É para um serviço que todo mundo usa, afinal", reforçou a coordenadora da Abes.

Indagada sobre a forma como gestores municipais têm lidado com a questão nos últimos dez anos, Kátia é direta: "Não acredito que a lei os tenha sensibilizado; acho que o Ministério Público Estadual tem funcionado muito mais que a lei, no sentido de cobrar o que precisa ser feito para melhorar a gestão dos resíduos", respondeu.

A coletiva seletiva, que tem evoluído muito com os catadores e cooperativas, por exemplo, praticamente triplicou desde que a lei foi sancionada — não é uma 'açãozinha social', um favorzinho que prefeituras fazem ao contratá-los, como já ouvi tantas vezes; esse é um aspecto em que a política felizmente acertou e que tende a crescer ainda mais

Heliana Kátia Campos, coordenadora nacional da câmara de resíduos sólidos da Abes

Mirar educação ambiental

Sustentabilidade, embalagens - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

A analista de conteúdos e metodologias do Instituto Akatu resumiu: os municípios têm sido os maiores responsáveis no setor político pela implementação da lei.

"O número de municípios com plano de gestão de resíduos cresceu de 30% para 49%, de 2013 a 2017; além disso, o dos que operam algum programa de coleta seletiva, de 2010 a 2018, passou de 443 para 1227, um avanço considerável", destacou.

Iwasaka expressou preocupação sobre a presença de lixões, ainda, no país, em desacordo com o que prevê o plano nacional, mas relacionada a diferenças regionais e socioeconômicas que não podem ser negligenciadas, defende.

"Este ano foi anunciado um convênio entre representantes dos municípios e o Ministério do Meio Ambiente pelo repasse de R$ 64 mi relacionado ao programa de lixões zero - situação muito preocupante sob os pontos de vista ambiental e de saúde pública e cuja meta de erradicação foi adiada várias vezes."

Paralelamente, gargalos deixados ainda pela lei, ela pontua, podem ser verificados tanto em relação à responsabilidade compartilhada pelo resíduo - a lei envolve todos os atores envolvidos na cadeia produtiva: de consumidores a fábricas e importadores -, em um país de dimensões continentais como o Brasil, quanto em relação à educação ambiental ao consumidor sobre o resíduo que ele, próprio, ajuda a produzir.

"O brasileiro ainda tem uma cultura, especialmente em relação a eletrodomésticos e eletroeletrônicos, de estender a vida útil desses produtos - seja pelo uso por mais tempo, ou porque há uma cultura de doação do que não serve mais. Apesar de isso ter um lado bom, estender e prolongar a vida útil do produto pode gerar mais consumo de energia que um produto novo, ou mesmo mandar mais emissões de resíduos e poluentes para o meio ambiente. Isso está além do descarte em si", explicou a analista do Akatu.

Mesmo sobre o descarte de resíduos, ela observa, a conscientização do cidadão comum segue longe de uma uniformidade.

"Em muitas casas ainda se joga no lixo comum uma lâmpada queimada ou uma pilha, por exemplo, o que nos faz crer que uma questão muito chave é que precisamos que tudo funcione bem em sintonia: infraestrutura para escoar ações, mas também conscientização para o consumidor demandar (ele tem esse poder) as condições necessárias para que ele consiga fazer sua parte. Não é só dos fabricantes e do poder público essa responsabilidade, afinal."