Topo

Cafés deixam a concorrência de lado e criam coletivo para vencer a crise

Pequenas cafeterias sofreram o impacto da crise de Covid-19 e buscaram maneiras de se ajudar coletivamente - Getty Images/iStockphoto
Pequenas cafeterias sofreram o impacto da crise de Covid-19 e buscaram maneiras de se ajudar coletivamente Imagem: Getty Images/iStockphoto

Tatiana Azevedo

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

01/08/2020 04h00

Quando a pandemia chegou oficialmente em São Paulo, a jornalista especializada em café Giuliana Bastos estava fotografando cafeterias e torrefações para a segunda edição do São Paulo Coffee Fest, evento que organiza com Marcos Martins e que, em 2019, teve a participação de mais de 30 cafeterias da cidade com uma programação gratuita sobre cafés especiais. Ela acompanhou de perto a angústia e o medo dos empresários do setor, sem uma associação a quem recorrer e sem saber o que esperar desse mercado tão específico.

O termo "cafés especiais" se refere a grãos de alta qualidade, torrados de maneira que expressem sua qualidade sensorial, atingindo no mínimo 80 dos 100 pontos da escala de pontuação da Metodologia de Avaliação Sensorial da SCA (Specialty Coffee Association), segundo avaliação de atributos como fragrância e aroma, uniformidade, ausência de defeitos, doçura, sabor, acidez, corpo, finalização e harmonia, além de preocupações de ordem ambiental e social, como sistemas de produção e condições de trabalho.

"Embora haja associações de alimentação fora do lar, não há nenhuma dedicada a cafeterias e torrefações, e no começo da pandemia eu senti que as pessoas estavam cheias de dúvidas, carentes de um espaço de troca de informações, por isso criei um grupo de whatsapp, o SOS Cafeterias", conta Giuliana. A iniciativa teve muita adesão. Com pouco tempo de existência, percebeu-se seu potencial, e então o grupo de 24 cafés virou o Grão Coletivo, transformação com direito a identidade visual, perfil em redes sociais e site.

Assim que entenderam que a mobilização coletiva poderia trazer benefícios como a negociação do aluguel de máquinas de café, troca de informações jurídicas e contábeis e parcerias com empresas, dividiram-se em alguns grupos de trabalho. Segundo Giuliana, a maior dificuldade do início foi conseguir com que as pessoas se engajassem ao mesmo tempo em que lidavam com seus altos e baixos emocionais. "Pessoas de diferentes perfis, visões de mundo e necessidades precisaram enxergar o que têm em comum. O coronavírus trouxe todos para o mesmo terreno nebuloso de dúvidas e de enfrentamento de novas dificuldades em seus negócios", diz a jornalista.

Giuliana Bastos responsável pela criação do Grão Coletivo - Paulo Bau/Divulgação - Paulo Bau/Divulgação
Giuliana Bastos responsável pela criação do Grão Coletivo
Imagem: Paulo Bau/Divulgação

E logo o Coletivo estava em ação. Uma das primeiras necessidades que se identificou foi a negociação do aluguel das máquinas de espresso, um gasto fixo e incoerente para o momento, pois lojas fechadas não servem café. Listaram quais cafeterias alugavam com quais empresas, e iniciaram-se as negociações. Lucia Strotbek, da Onnie Coffee Farmers and Roasters, conduziu as conversas com a GranCoffee, de quem aluga três máquinas e com quem sempre teve um bom relacionamento. Depois de muito diálogo, Lucia conseguiu um acordo para ela e para outras 11 cafeterias e torrefações do Coletivo, negociando descontos e adiando pagamentos. "Conseguimos esse resultado logo no começo, e depois apareceram outras cafeterias que também trabalhavam com a GranCoffee e o acordo se estendeu para todos", explica Lucia.

Geórgia Franco de Souza, que há 18 anos está à frente do Lucca Cafés Especiais em Curitiba, PR, afirma que a criação do Grão Coletivo foi uma grande conquista para a união do setor. "A ajuda mútua nesse momento é imprescindível. Colaboramos com diversas ações e esperamos continuar colaborando e recebendo ajuda também." Por meio de divulgações que fizeram com seus parceiros, a Ultragaz propôs uma parceria em que oferece descontos especiais para os integrantes do grupo que contratarem sua solução de fornecimento de gás, além de disponibilizar testes do software de torra de grãos de café e treinamentos com um especialista. Também foi por um contato de Geórgia que se organizou e realizou uma compra colaborativa com descontos importantes para os integrantes do Coletivo na loja Flavors, referência em produtos para cafeterias.

Como a angústia não assombrava apenas os próprios negócios, logo surgiram iniciativas de solidariedade com o mundo lá fora, como a doação de café especial para a Agência Popular Solano Trindade, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo. "Propusemos no Grão Coletivo que, se cada produtor e torrefador doasse pelo menos um quilo de café, conseguiríamos uma boa quantidade para a comunidade. Colocamos nosso espaço à disposição para ser o ponto de coleta e tudo correu bem. O momento era delicado, estávamos começando a entender o isolamento, mas nos organizamos e conseguimos olhar o todo: um pequeno gesto unido a outro e mais outro podem fazer a diferença", conta Ana Oliveira, sócia d'OCabral Café, em Cerqueira César, que ajudou a recolher os grãos e fazer a entrega.

Para ela, "o Grão Coletivo foi uma iniciativa incrível. Ter um espaço dedicado a cuidar do pessoal do café trouxe uma sensação de conforto, e hoje o grupo é um grande canal que, além de apoiar, presta consultoria coletiva em todos os aspectos e dá suporte para todos acharem saídas e soluções para seus negócios".

Recomeço depois de um cafezinho

Antes da pandemia, a psicóloga e barista Viviane Pereira já queria fechar o seu Musette Café, que há quatro anos unia a cultura do ciclismo à dos cafés especiais. E foi o que aconteceu no início da quarentena. Para encerrar essa trajetória de forma positiva, Viviane desenvolveu uma ação com a colaboração de participantes do Grão Coletivo, que consistiu em oferecer bebidas à base de café aos profissionais de saúde, segurança e facilities do hoje já desativado Hospital de Campanha do Pacaembu. Durante dois meses, ela esteve lá todas as terças e quintas, do meio-dia às duas e meia, servindo cerca de 1020 bebidas para uma média de 120 pessoas.

"Esses profissionais são cruciais para o combate à pandemia e passam por horas exaustivas de trabalho, pela carga de responsabilidade e estresse desse momento. A parada para o "cafezinho" após o almoço pode ser o respiro para encarar a segunda parte do dia. Por isso resolvi oferecer esse conforto, em agradecimento ao serviço prestado à sociedade", ela explica. Colegas do Grão Coletivo tiveram importância fundamental: Leonardo Kuwahata, do Kento Cafés, doou mais de 15kg de café, Bruna Caselato, do Suplicy, doou copos descartáveis, e Bruno Lobo, da Espresso Art, emprestou uma máquina e um moedor de café. "E quem me colocou em contato com a Secretaria de Esporte, que cedeu o espaço para estacionar a carreta e forneceu energia elétrica, foi a Giuliana Bastos", conta Vivi.

Patrimônio nacional

O grupo reúne pessoas de mais de 11 estados do Brasil. Segundo Giuliana, algumas cafeterias não têm acesso à maturidade do mercado de São Paulo, então tudo o que se partilha no grupo é muito precioso. Aldo Bitencourt, ex-publicitário e proprietário do Kalena Café em Manaus, AM, diz que o grupo foi a melhor coisa que a pandemia trouxe.

"Nós somos tantos e não nos falávamos, não nos ajudávamos, muitos ainda acreditavam em concorrência. O grupo mostrou que dá para todo mundo crescer junto, ninguém sai perdendo, todo mundo ganha."
Aldo Bitencourt, ex-publicitário e proprietário do Kalena Café em Manaus, AM

Lidiane Santos, barista há 11 anos, concorda. Ela saiu do interior de Pernambuco e em 2017 abriu a Kaffe Torrefação e Treinamento, em Recife. Até a chegada do coronavírus, as vendas, treinamentos e consultorias eram presenciais, nada era online. "Em março e no começo de abril, a pandemia dava muito medo, porque não se sabia o que era. Foi quando começaram as trocas no grupo, as pessoas se engajando, compartilhando informação, buscando soluções, tanto para realidades individuais quanto coletivas", diz.

As reinvenções de todo dia

Cinthia Bracco, que abriu o Astronauta Café na Vila Mariana no finzinho de 2018, diz que o grande desafio para resistir à pandemia tem sido se reinventar diariamente. "O Astronauta nasceu com a missão de fazer as pessoas repensarem o consumo. Muitos clientes não querem que a gente trabalhe com os grandes aplicativos de entrega, por não valorizarem os entregadores, entre outras coisas. Então precisamos pensar uma solução para continuar chegando na casa dos nossos clientes. Quando um consumidor mostra que está pensando na maneira que consome, sentimos que nossa missão está sendo atingida."

Cinthia Bracco, proprietária do Astronauta Café, na Vila Mariana, zona sul de SP - Divulgação - Divulgação
Cinthia Bracco, proprietária do Astronauta Café, na Vila Mariana, zona sul de SP
Imagem: Divulgação

Apesar das dificuldades da situação, Cinthia comemora a criação do Grão Coletivo. "Tenho muita sorte de fazer parte, tem feito toda a diferença. É uma força muito grande para o café especial, não só para passar por esse período, mas como uma maneira de fortalecer a área como nunca foi feito antes. São mais de 300 pessoas unidas, cheias de ideias, um coletivo para mostrar ao mercado a importância do café especial na economia. E o coletivo tem mais relevância do que o indivíduo."

O início da reabertura dos negócios de alimentação em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro traz novas regras. Por isso, o grupo de Retomada do Grão Coletivo produziu, com a colaboração de especialistas, alguns manuais, tanto para a reabertura dos negócios quanto para a comunicação com o cliente e colaboradores. Ainda assim, sentiram que havia muitos materiais diferentes e informações conflitantes, e resolveram complementar o conteúdo com uma semana de webinars sobre a retomada. "Eu e a jornalista Luiza Estima convidamos as pessoas que foram mais ativas na produção do manual para palestrar, e abrimos para quem mais quisesse falar. Por exemplo, para o tema 'Como engajar a equipe', pensamos na Cinthia, do Astronauta, e na Camila Romano, do KOF, porque são duas empresárias que trabalham muito bem esse relacionamento", conta Giuliana.

A preocupação com funcionários e colaboradores tirou o sono de muita gente. Geórgia conta que seu negócio sempre teve um cuidado muito grande em selecionar e treinar o pessoal, e agora que sua equipe estava redondíssima aconteceu tudo isso. "Estamos procurando sair dessa sem deixar ninguém para trás", ela conta. "Além de formar nossos colaboradores para cumprirem o protocolo de reabertura, eles precisam se certificar de que o cliente também o cumpra."

Para Giuliana, o momento é de olhar para o outro, entendê-lo, e colaborar com ele. Todos perceberam que estão frágeis e estão em busca de apoio e caminhos. "Não estamos necessariamente no mesmo barco, mas tentamos sobreviver à mesma tempestade, e as pessoas no grupo se sensibilizaram para isso." E, apesar de todos os pesares, ainda encontram satisfação nas dificuldades. Aldo Bitencourt, por exemplo, diverte-se mesmo com todos os obstáculos, "Empreender no Brasil é custoso, tu ganha pouco, lucra pouco, trabalha muito, mas eu nasci para isso. E eu não trabalharia com café se não fosse café especial. O nosso mercado é o único possível, onde vejo qualidade, cuidado com o produto, com o produtor, com o fair trade. Isso para mim é o que importa", diz ele.

Para Ana, d'OCabral, quem já trabalha com pequenos produtores tem a ideia de coletivo na essência. "Dividir obstáculos e conquistas deveria ser uma prática normal. O Grão vem para estimular e incentivar as pessoas para o futuro. Somos incansáveis esperançosos, onde houver espaço para ajudar vamos ajudar. Quando olhamos para o lado e nos desafiamos a enxergar o que realmente importa, não existe resposta senão agir."

Isso, segundo Giuliana Bastos, é simples. "Em um sistema de competição profissional, focado em ascensão econômica, esquecemos o que é viver em comunidade, onde as pessoas podem se ajudar mesmo sendo concorrentes. Temos muito o que aprender com comunidades tradicionais, que se organizam de forma coletiva e colaborativa. Em uma comunidade você se fortalece, as demandas coletivas são mais fortes. Compartilhar um contato, uma experiência, ou simplesmente uma visão são coisas simples, mas que sempre podem ajudar alguém. É só estar aberto para ouvir."