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Produtores de conteúdo querem negros falando de temas além do racismo

O mineiro Samuel Emílio criou a série "Diário Antirracista" - Arquivo Pessoal
O mineiro Samuel Emílio criou a série "Diário Antirracista" Imagem: Arquivo Pessoal

Cléberson Santos

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

30/07/2020 04h00

O mineiro Samuel Emílio começou a produzir no mês passado uma série de vídeos em seu canal no Youtube chamado "Diário Antirracista", que alcançou cerca de 5 mil pessoas em seu primeiro dia de distribuição no WhatsApp.

Nunca se pesquisou tanto no Brasil sobre termos como "antirracismo" ou "racismo estrutural" como no começo de junho, segundo o Google Trends. Discussões sobre o tema ganharam espaço tanto nas redes sociais quanto no noticiário, e bancadas passaram a ser compostas por jornalistas negros em edições de programas como o Globonews Em Pauta e o Roda Viva - reflexo direto das manifestações pelo mundo após o assassinato de João Pedro, no Rio, e George Floyd, em Minneapolis.

Apesar de novos casos de violência terem vindo à tona, o assunto esfriou. "Não tem mais repercussão. A gente não teve uma mudança estrutural, uma legislação para criar protocolos de abordagem policial, para criar incentivos pros partidos apoiarem candidaturas negras, não teve nenhuma reserva de vagas no congresso. Pode ser que algumas pessoas até tenham se desenvolvido individualmente, mas enquanto sociedade a gente não avançou, a gente ficou no mesmo lugar, por enquanto", afirma Samuel.

O "Diário Antirracista", feito por ele, foi uma dessas propostas que visavam o aprendizado e o desenvolvimento individual. Motivado pelas várias mensagens que recebia em seu WhatsApp com dúvidas sobre questões raciais, ele publicou diariamente trinta vídeos que ensinavam alguns conceitos e demandas que estavam em pauta naquele momento.

"Após uns sete dias de manifestações por conta do assassinato do George Floyd, as pessoas aqui no Brasil começaram a discutir muito sobre racismo, e elas começaram a perceber que para serem racistas, a única coisa que elas precisavam fazer era fazer nada", conta.

Com o Diário, ele passou por temas como ações afirmativas, racismo estrutural e racismo reverso. Mas também contou com a participação de convidados para tocar em outros temas como branquitude, colorismo e comunidade asiática. Ele explica que esta foi uma forma de garantir a diversidade de vozes no projeto.

"A tendência das pessoas é escutar uma pessoa negra falando sobre isso e achar que ela representa todo o grupo de pessoas negras brasileiras. Minha primeira intenção [com os convidados] foi mostrar que existem visões de mundo diferentes. É mais poderoso quando eu trago uma mulher negra que já foi mãe para falar de violência obstétrica. Tem gente que acha que não pode falar porque não é o lugar de fala dela, mas não é isso que é o lugar de fala. Você pode falar sobre o que você quiser, só você reconhecer de onde que você está falando", explica Samuel.

Agora em julho, ele lançou, em parceria com o Instituto Marielle Franco, o site Eleições Antirracistas, que tem como objetivo pressionar o TSE pela aprovação da distribuição proporcional do fundo eleitoral e do tempo de propaganda para candidatos negros.

Ele estava esperançoso de que esse interesse pelo aprendizado conseguiria se converter em pressão política, mas sente que o esfriamento da pauta racial na imprensa afetou o engajamento. "Se continuasse no ritmo daquela primeira, segunda semana (das manifestações nos Estados Unidos), a gente teria umas 30 mil assinaturas já. É um sinal que a sociedade está deixando de falar do tema e voltando a negligenciar e a normalizar de novo, o que é uma pena". No dia 27, a campanha havia reunido 8,9 mil assinaturas.

ABC da Raça

O curso sobre temática racial ABC da Raça conseguiu aproveitar o momento em que o assunto estava em alta no noticiário para promover seu trabalho em prol da igualdade racial no meio corporativo. O projeto é uma adaptação de um treinamento oferecido a empresas e já estava sendo desenhado pelo Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), é o que explicam Heloise da Costa e Aline Nascimento, analistas de ações afirmativas do instituto.
"O nosso EAD estava sendo produzido desde janeiro. Estávamos ajustando comunicação e fazendo melhorias, pois já havíamos rodado uma versão para teste com nossos parceiros. As discussões sobre antirracismo, que tomaram maior vulto por causa do caso George Floyd, potencializaram o conhecimento do público sobre o nosso material", diz Aline Nascimento

O ABC da Raça reúne conteúdos com o objetivo de ensinar pessoas e empresas a se posicionarem e agirem de forma mais concreta. Este EAD é um dos braços da ID_BR, que trabalha também com consultorias, parcerias e eventos. O Instituto é responsável pelo Prêmio Sim à Igualdade Racial, que reconhece empresas, coletivos e pessoas engajadas na luta contra a desigualdade racial no país.
De acordo com as analistas, as empresas brasileiras têm começado a perceber que apenas postar hashtags de apoio não atenderá à demanda da sociedade por uma postura verdadeiramente antirracista.

"Tem empresas que dizem que não têm pessoas negras [entre os funcionários], porque não existem profissionais negros em muitas áreas ou com formação, o que é uma falácia. Um lado positivo é que há empresas aprendendo também a se posicionar de forma sincera. Afirmam, muitas vezes, que não haviam olhado para a questão racial e entendem que é melhor começar tarde do que nunca. E este é um bom passo para a mudança", observa Aline.

Porém, assim como Samuel Emilio, as duas profissionais do ID_BR também ficam preocupadas com a sensação de que todo esse interesse pelo antirracismo tenha sido apenas pontual.

"Hoje em dia, falamos sobre tudo intensamente, mas, muitas vezes, de forma rasa e na onda do momento. A pauta racial é urgente e precisa de debates, ações e políticas efetivas e contínuas. Nós trabalhamos para que igualdade racial não seja um recorte ou um assunto que suma, mas seja encarado como prioridade e ação contínua".

Mercado editorial

A busca por conteúdos sobre o antirracismo desde o mês passado não ficou centrada apenas no ambiente online, mas impactou também na venda de livros. "Pequeno Manual Antirracista", da filósofa Djamila Ribeiro, chegou a ser o segundo mais vendido no site da Amazon no Brasil.

Djamila Ribeiro - Lucas Lima/UOL Estilo - Lucas Lima/UOL Estilo
A filósofa e escritora Djamila Ribeiro
Imagem: Lucas Lima/UOL Estilo

No ranking de livros de não ficção mais vendidos da Revista Veja, o livro de Djamila também ocupa as primeiras posições, junto com outras cinco obras que também abordam o tema, como o "Racismo Estrutural", do advogado Silvio Almeida.

Para a escritora e pesquisadora na USP Bianca Gonçalves, a busca por livros escritos por autores negros vai muito além de uma necessidade pontual de entender as manifestações. Bianca aponta que isso também é um reflexo da "sede" que a população negra, cuja atual geração enfim conseguiu ter maior acesso às universidades, tem em conhecer sua própria história.

"Por outro lado, pessoas não negras também estão sendo provocadas a repensar seus privilégios e comportamentos, e isso se deve muito à internet, que contribui para colocar em cena questões que a mídia tradicional, como a televisão, não costuma tocar. Temas como apropriação cultural e abolicionismo penal, sempre presentes nas redes sociais, dificilmente ganhariam espaço em programas de canais abertos", observa.

Um detalhe sobre a venda de livros é que, se por um lado há uma procura grande entre as publicações de não ficção, não aparece nenhum autor negro nos rankings da "Veja" de ficção, autoajuda ou infanto-juvenil. O "Amoras", livro infantil do rapper Emicida, entrou na lista de mais vendidos da Amazon após sua entrevista ao Roda Viva.

Bianca, que estuda justamente a literatura de autoria negra, observa que ainda há resistência no mercado editorial em ter negros escrevendo sobre outras coisas que não o racismo.

"Embora estejamos conquistando lugar merecido em grandes editoras, o caminho a se percorrer é longo. Graças a muita luta de acadêmicos, pesquisadores independentes, escritores, etc., finalmente olharam para um público que está consumindo cada vez mais. É um processo de disputa narrativa contínuo".

Este sentimento da "pauta única" também é observado por Samuel dentro do ambiente da produção de conteúdo online: "é como se a gente só pudesse falar de determinados temas, é uma pena. Eu quero começar a usar minhas redes sociais pra falar de outras coisas. Eu gosto de várias outras coisas. Eu gosto de ser negro? Eu adoro ser negro, mas eu não gosto só disso, não".

E o que vem depois?

Tanto para Samuel quanto para as analistas do ID_BR, o interesse por esse aprendizado é um fato inédito por aqui, principalmente por parte da população branca. Na visão de Aline, o caminho para impedir que o assunto esfrie continua sendo a informação e, a partir daí, racializar todas as práticas da sociedade, com participação ativa da população branca.

Aline Nascimento, analista de ações afirmativas do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Aline Nascimento, analista de ações afirmativas do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR)
Imagem: Arquivo Pessoal

"Se as pessoas que detém o privilégio racial e o poder representativo e econômico continuarem neste movimento, é possível que ele se estenda. Os movimentos negros já fazem isso há anos, incansavelmente, e agora está na hora de suas vozes ecoarem para que ações efetivas sejam implementadas", afirma ela.

Samuel reforça a análise e acrescenta os caminhos que podem ser feitos pelas pessoas que realmente estejam interessadas em se engajar na luta antirracista:

"Elas precisam criar coletivos para falar de branquitude, precisam estudar, doar dinheiro, votar em pessoas negras. Se elas querem que isso seja perene, elas vão precisar se organizar. Ninguém faz transformação sozinho. E a gente precisa criar mais espaços diversos, entre negros e brancos, para que as pessoas começarem a falar disso juntas também. Se a gente conseguir dar esses dois passos seria fantástico".