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"Criar cobra sem ter o soro é roleta russa", diz pesquisadora do Butantan

Naja que picou estudante em Brasília ganha ensaio fotográfico no zoológico Imagem: Ivan Mattos/Zoológico de Brasília

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

15/07/2020 11h32

"Como assim picado por uma naja?". Provavelmente você também se fez essa pergunta quando soube do acidente envolvendo o jovem de Brasília, Pedro Henrique Lehmkul, que chegou a ficar em coma induzido após sofrer picada de uma cobra naja. Até então, não se tinha conhecimento da espécie no Brasil, cujo gênero é originário de países da África e da Ásia.

O caso, que ganhou ainda mais destaque no noticiário por se tratar de uma suposta rede de tráfico de animais, não só reacendeu o alerta sobre os perigos da criação de serpentes venenosas em ambientes domésticos, como também chamou atenção para o trabalho de um dos maiores centros de pesquisas biomédicas do mundo, o Instituto Butantan.

Responsável por grande parte dos soros antiofídicos e vacinas produzidas no Brasil, o Instituto também realiza estudos clínicos, terapêuticos e epidemiológicos relacionados a acidentes causados por animais peçonhentos.

"Esse rapaz de Brasília teve muita, mas muita sorte, porque não era para ter esse soro aqui no Brasil. Como não temos soro para uma série de outras serpentes que a gente não sabe se estão por aí. E isso, além de ser um problema legal, de ser crime, também causa um problema para os órgãos de saúde. Mesmo apreendidos, esses animais podem causar algum acidente. E como fica o tratamento sem o soro?", diz Fan Hui Wen, médica epidemiologista e diretora do núcleo estratégico de venenos e antivenenos.

A sorte, a que ela se refere, é o fato do Instituto colaborar com pesquisas de fora e, por isso, ter dois animais para estudo no laboratório. "Para manter aqui dentro da instituição um animal desse tipo, era fundamental ter o soro. Afinal, se acontece um acidente com um pesquisador, como faríamos?", diz. Ou seja, o soro que foi enviado ao rapaz é o soro de segurança para os pesquisadores do Instituto.

O processo de produção é longo, cada lote leva de 6 a 8 meses para ficar pronto. "Nosso papel é de garantir medicamentos para a saúde pública. O Sistema Único de Saúde (SUS) assume a responsabilidade por esse tratamento, que é gratuito. Porém, ele tem um custo alto para a sociedade, porque não é um medicamento de produção rápida. Demora. Por isso é importante ter em mente os perigos que o contato com serpentes exóticas pode causar. Afinal, sem medicamento, elas podem matar."

Por ano, são registrados no país aproximadamente 28 mil casos de acidentes com serpentes, cujo tratamento hospitalar é feito com o soro antiveneno, disponível no SUS (Sistema Único de Saúde). Em média, o Butantan produz 50 mil frascos por mês de 13 tipos de soros.

A especialista, que trabalha há 30 anos no instituto Butantan, explica em entrevista a Ecoa como é a produção de soro, conta como foi o processo de envio da dose contra o envenenamento da naja ao hospital de Brasília e faz um alerta sobre a criação de cobras exóticas em cativeiro.

O que você diria para quem mantém esses animais peçonhentos em casa ou em cativeiro?

As cobras, durante toda a humanidade, estiveram muito próximas do ser humano, despertando sentimentos diversos e contraditórios. Há quem não possa ver uma na frente, enquanto outros têm verdadeira adoração. Então, acredito que esses animais exóticos exercem um fascínio em algumas pessoas, o que pode ser um dos fatores desse rapaz de Brasília e dos amigos dele. Mas, além da 'adoração', também tem o lado da responsabilidade, ou a falta dela. De quando se é jovem e pensar que não vai acontecer nada com você.

É uma falsa sensação de que não corre perigo.

É, essa adoração pode dar essa percepção. Mas serpentes peçonhentas, exóticas, são muito perigosas. Esse rapaz de Brasília teve muita, mas muita sorte, porque esse soro não era pra ter aqui no Brasil. Como não temos soro para uma série de outras serpentes que a gente não sabe se estão por aí. E isso além de ser um problema legal, de ser crime, também causa um problema para os órgãos de saúde. Mesmo apreendidos, esses animais podem causar algum acidente. E como fica o tratamento, sem o soro? Então, o alerta não é só para essa moçada que gosta de cobra. É preciso entender que criar uma cobra venenosa para a qual a gente não tem o soro é brincar com a vida. Uma roleta russa.

Os soros produzidos aqui no Brasil combatem o envenenamento de quais espécies?

Primeiro a gente precisa ter um rápido entendimento do que é gênero e espécie. Tecnicamente a gente chama de gênero, mas vamos falar de um jeito mais fácil para as pessoas entenderem: é como se fosse uma família, com parentes mais próximos e outros mais distantes. Existem vários tipos de espécies dentro do mesmo gênero. As espécies são indivíduos, numa família, por exemplo, o irmão, primo, tio, sobrinho, em que todos têm características semelhantes, como a composição do veneno, que é usado para a produção do soro.

No Brasil, nós consideramos quatro gêneros de serpentes peçonhentas de importância médica: As jararacas, que é um grupo grande e tem um monte de "primos". A surucucu pico de jaca, que é uma serpente que praticamente só se encontra na Amazônia, um pouquinho também na Mata Atlântica, mas bem pouco. E as cascavéis e as corais-verdadeiras.

Com essa distribuição de gêneros de serpentes há uma abrangência geográfica que é conhecida. Sendo assim, os soros que são produzidos contém os componentes que neutralizam o veneno de serpentes que pertencem a esses gêneros.

Por isso esses soros não teriam efeito no envenenamento da Naja?

Exato. A Naja não pertence a nenhum dos gêneros de serpentes peçonhentas de importância médica no Brasil, não adiantaria nada dar um soro antiofídico brasileiro contra o veneno de uma serpente que vive na Ásia, entende? Porque é de outra "família", outra genética. Mais do que a questão da morfologia é a composição do veneno que desfere.

Como o Butantan entra nesse caso, do rapaz que sofreu a picada em Brasília?

O Butantan tem algumas serpentes com origem de outros lugares, países, por dois motivos. O primeiro é para colaborar com estudos e pesquisas de fora. A naja é um animal asiático, cujo veneno e comportamento em cativeiro vem sendo estudado por um grupo de pesquisadores brasileiros. Além disso, temos o Museu Biológico, com exposição de animais vivos, e faz parte da nossa função promover a divulgação científica. Sendo assim, nós temos aqui dois exemplares de naja, tanto para exibição quanto para pesquisa.

Para manter aqui dentro da instituição um animal desse tipo, era fundamental ter o soro. Afinal, se acontece um acidente com um pesquisador, como faríamos? Então fizemos uma importação na época. O soro veio da Tailândia, foram adquiridas algumas ampolas para a segurança do uso. O produto estava armazenado no hospital Vital Brasil, que fica no Instituto, quando recebemos a ligação de médicos de Brasília.

Como foi esse processo de envio do soro?

No primeiro momento, pensamos: como assim alguém foi picado por uma naja no Brasil? Mas com base nos sintomas apresentados pelo paciente, vimos que correspondia mesmo com as causas de um envenenamento por naja. Aí tomamos uma decisão coletiva, com os biólogos e pesquisadores do Instituto: vamos mandar esse soro deixando os pesquisadores descobertos ou vamos deixar o paciente de Brasília morrer? E claro, com uma vida em risco, a decisão foi óbvia: vamos mandar o soro. E assim foi feito.

E como saber a quantidade necessária nesses casos? Disseram que a família do jovem precisou importar um pouco mais...

Não precisaram de mais soro. O que enviamos foi suficiente. O que houve foi todo um folclore em torno disso, que alguém ouviu falar que a quantidade era pouca... Mas não foi. O fato é que em 48h do soro administrado, o quadro do paciente já apresentava uma mudança. Todo o processo de envio foi muito rápido, desde o primeiro contato do hospital de Brasília, à tarde, até a chegada do soro, no mesmo dia.

É claro que cada caso é um caso. É por isso que o soro é administrado por profissionais de saúde. A cobra nunca vai te contar o quanto de veneno ela injetou. E quanto mais veneno, mais intenso o quadro. O que sabemos é que quanto mais rápido o uso do soro, maior a chance do paciente sair sem sequelas, sem nenhuma lesão mais persistente.

Existe um tempo mínimo, recomendado, para o uso do soro?

Para nossas cobras brasileiras a gente estipula que de 6 a 12h é o tempo ideal. Aqueles com mais de 12h, 24h, tendem a ter um risco maior de complicações, sequelas ou mesmo óbito. Mas isso não quer dizer que todos que demoram para receber o soro terão alguma complicação. Tudo depende, como eu disse, da quantidade de veneno que a serpente inocula. Você pode ter serpentes adultas que inoculam muito ou pouco veneno, ou até mesmo nada. E também pode ter serpentes pequenas, filhotes, que causam quadros tão graves quanto uma serpente adulta.

No caso da duas najas, que estão no Butantan para fins de pesquisa, como elas chegaram ao Instituto?

Esses animais foram doados. A gente também recebe cobras de apreensão, o que provavelmente acontecerá nesse caso do estudante de Brasília, que supostamente mantinha uma criação de serpentes. O Ibama, quando faz uma apreensão, entra em contato conosco para ver a disponibilidade de receber o animal. Afinal, situação de picada ou não, o bicho não tem culpa. Em algum lugar eles têm que morar.

E voltando à produção, quanto tempo demora para ter o soro disponível?

É um processo bastante complexo e demorado. Por isso a administração deste medicamento deve ser feita de forma responsável. A grosso modo: o veneno é extraído da cobra e um pouco diluído. A gente dá uma enfraquecida nele, digamos assim, para partir para a imunização em cavalos, que geram os anticorpos. E a produção de anticorpo não acontece de uma hora para a outra. Leva uma semana. Quando isso acontece, retiramos a parte que interessa, onde estão esses anticorpos, que é o plasma. E esse plasma é purificado na fábrica, uma purificação industrial, portanto.

Ao longo de todo esse processo são feitos vários testes de controle de qualidade para garantir que o produto funcione e possa ser indicado ao paciente. Todo esse processo, para a produção de um lote de soro, demora de 6 a 8 meses. Desde o começo, da retirada do veneno até a entrega do produto ao Ministério da Saúde

E qual é o soro antiofídico mais produzido no Brasil?

Contra jararacas. Ele é chamado, tecnicamente, de antibotrópico. As jararacas estão presentes em todo o território brasileiro, por isso uma frequência maior de acidentes com esse gênero, seja no norte, nordeste, sul, centro oeste e sudeste.

Foi do veneno da jararaca brasileira que se produziu um dos remédios mais comuns para hipertensão. Existem muitos estudos ligados a isso?

Sim. Esse medicamento anti-hipertensivo foi produzido a partir de um dos efeitos do veneno da jararaca, que causa queda da pressão sanguínea. Existem vários grupos de pesquisa que estudam o veneno sem ter a finalidade só para a produção de soro. Alguns desses venenos podem causar efeitos que nos ajudam a pensar na possibilidade de medicamentos. Por exemplo, o veneno da cascavel causa uma sensação de dormência, de anestesia local, então tem grupos de pesquisas que estudam a possibilidade de uma dessas toxinas, presente no veneno, ser utilizada para tratar a dor.

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