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O que são ações afirmativas? Entenda a importância da política de reparação

Manifestação em maio de 2012 pelas cotas raciais nas universidades, em São Paulo - Anderson Barbosa/Folhapress
Manifestação em maio de 2012 pelas cotas raciais nas universidades, em São Paulo Imagem: Anderson Barbosa/Folhapress

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

25/06/2020 04h00

Antes de ir para os Estados Unidos, o ministro da educação, Abraham Weintraub, deu sua última cartada: publicou uma portaria que derruba outra portaria que estipulava a inclusão de negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de mestrado e doutorado — sancionada pelo governo de Dilma Rousseff (PT), em 2016.

Apesar da decisão de Weintraub já ter sido invalidada pelo MEC (Ministério da Educação), a medida acendeu um alerta sobre o risco que a Lei nº 12.711, mais conhecida como Lei de Cotas, criada em 2012 e que destina 50% das vagas em curso superior para cotistas. Os outros 50% continuam disponíveis para concorrência às vagas sem cotas. Ou seja, uma pessoa negra ou pobre não vai "roubar a vaga" de uma pessoa branca, já que, na prática, cotistas e não cotistas não chegam a concorrer entre si.

Para entender melhor como e porquê essa política de ações afirmativas foi implantada no Brasil, nós separamos aqui algumas perguntas e respostas.

O que são ações afirmativas?

Em termos menos técnicos, ações afirmativas são uma forma de reparar desigualdades sociais e raciais no Brasil. É uma política pública que se apresenta como a porta de entrada para o país começar a conceder oportunidades iguais para pessoas empobrecidas, negros, indígenas e pessoas com deficiência.

Segundo o MEC (Ministério da Educação) a Lei de Cotas "garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos."

Representam uma forma de compensação ou reparação à discriminação sofrida no passado, evitando que o passado se reproduza interminavelmente no presente e se projete para o futuro.

Trecho do livro "Uma História do Negro no Brasil", de Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

Mas cotas raciais não segregam a população?

Muito se debate sobre qual seria o modelo ideal para a execução do programa de cotas. O próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em 2018, equivocadamente afirmou que ações afirmativas eram uma "maneira de dividir a sociedade. Não devemos ter classes especiais por questão de cor de pele, por questão de opção sexual, por região, seja lá o que for. Nós somos todos iguais perante a lei. Somos um só povo."

Fato é que não somos todos iguais. Como já mostramos aqui em Ecoa, o Brasil de hoje possui um racismo deixado de herança por um período extremamente cruel da história que foi a escravidão. Quase 5 milhões de pessoas foram trazidas a força para trabalhar por aqui durante três séculos. Com o final desse regime escravocrata, não foram criadas políticas para inserir o negro em diversos âmbitos da sociedade. Para se ter uma ideia da desvantagem em que negros estão se comparados aos brancos na área da educação, o Censo do Ensino Superior realizado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) apontou que em 2011, um ano antes da implantação nacional do sistema de cotas, quase sete milhões de matrículas foram realizadas. Desse total, só 11% eram de alunos negros.

No livro "Uma História do Negro no Brasil (2006), de Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho, os dois historiadores da UFBA (Universidade Federal da Bahia) levantam o debate sobre a política de ações afirmativas ser ou não de alguma forma segregacionista. Eles resumem assim:

Acreditamos, porém, que essas disputas já existem e em geral têm sido vencidas por aqueles que têm a pele mais clara. Trata-se de reverter — e não inverter — este quadro. Não se trata de uma coisa contra o branco, até porque o branco pobre é também contemplado em muitas propostas de cotas. A ideia é, simplesmente, de oferecer oportunidade para todos. Essa é a obrigação dos governos, e deve ser o objetivo das sociedades.

Trecho do livro "Uma História do Negro no Brasil", de Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

Quais os resultados atingidos com elas?

Após a implementação do sistema de cotas, algumas universidades brasileiras passaram a monitorar os resultados alcançados por elas. A UNB (Universidade Federal de Brasília) por exemplo, em 2014, soltou um relatório com o diagnóstico dos 10 anos desde a adoção de políticas de ações afirmativas. Vale lembrar que esta foi a primeira instituição federal no país a aprovar o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial, responsável por destinar 20% das vagas do vestibular de 2004 para negros e mais 20% para alunos da rede pública. Outros 5% das vagas foram destinados para deficientes físicos.

A análise da primeira década na universidade mostra que entre alunos cotistas e não cotistas o desempenho acadêmico era bem parecido. Porém, a conclusão de acadêmicos é a de que a inclusão desse sistema foi uma "medida justa e necessária para diminuir a desigualdade étnica e racial no ensino superior brasileiro".

Em um panorama geral, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apresentou um dado positivo no ano passado, consequência da criação do sistema de cotas: pela primeira vez na história o número de negros matriculados no ensino superior era maior que o de brancos. Em 2018, 50,3% dos estudantes de universidades brasileiras eram pretos ou pardos. Apesar de ainda serem a minoria em cursos mais concorridos, o feito foi amplamente comemorado por ter refletido um retrato mais fiel da cara da população brasileira, em que a maioria — quase 56% —- se autodeclara como negra.

Como as ações afirmativas ajudaram a mudar a cara da universidade?

Com esse dado que aponta uma divisão mais igualitária entre brancos e negros quando o assunto é acesso ao ensino superior, as universidades brasileiras vêm visivelmente se transformando. Apesar de, individualmente, as instituições ainda apresentarem uma face mais branca do corpo de alunos, as ações afirmativas começam a abrir mais portas de universidades para negros e indígenas — mesmo que ainda seja necessário discutir cada vez mais sobre como promover a permanência dessas pessoas até o final dos respectivos cursos. O sociólogo Antonio Guimarães levanta outro ponto importante: a percepção de alunos brancos nas instituições de ensino também passa por uma transformação ao terem mais colegas de classe negros ou indígenas.

"Veja bem: havia toda uma juventude branca, bem educada, que nunca havia convivido com colegas negros em suas escolas - nem no fundamental, nem no ensino médio. Seu contato com o mundo negro era intermediado pelo serviço doméstico em suas residências, pela música e pelo futebol. Pois bem, brancos e negros passaram a ser colegas de universidade. Essa moçada hoje quer ler também os autores negros brasileiros e estrangeiros, quer saber mais sobre a colonização europeia e a escravidão no Brasil, mais sobre as lutas negras, a resistência escrava, a violência policial."

Em qual contexto social começamos a pensar em ações afirmativas?

Por muitos anos durante o pós-abolição, o país conviveu com a farsa de que todos somos iguais. De que a intimidade com que brancos e negros se relacionavam servia como fundamento para dizer que temos um projeto de democracia mais profundo e igualitário. Só depois de algum tempo, a partir dos anos 1990, movimentos negros começam a discutir quais medidas o governo precisava tomar para ir contra as desigualdades raciais, proporcionando algum tipo de reparação histórica para a população negra.

"O racismo passa a ser entendido como estrutural no Brasil, a democracia racial apenas um mito - tal como denunciado já no final dos 1960 por Abdias [do Nascimento], Florestan [Fernandes] e [Octavio] Ianni. Mas o que foi realmente decisivo para fragilizar a posição do governo brasileiro foi a conjuntura internacional favorável ao multiculturalismo e a Conferência de Durban", conta o professor do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo e especialista em estudos afro-brasileiros e formação de classes sociais, Antonio Guimarães.

Citada pelo sociólogo, a Conferência de Durban, ou Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, foi promovida pela ONU (Organização das Nações Unidas), em 2001. Após esse episódio, o governo de Fernando Henrique Cardoso reconhece que o Brasil ainda é um país racista e se compromete a começar a pensar em implantar ações afirmativas para tentar reparar a situação.

Qual a importância das ações afirmativas para a democracia?

De certa forma, as ações afirmativas são os primeiros passos para começarmos a falar sobre reparação histórica para povos que estão há séculos em situação de vulnerabilidade e desvantagem em relação à população branca, como negros e indígenas. Quanto mais se aumenta as oportunidades para que negros e indígenas possam ingressar no ensino superior, mais próximo o país fica de atingir uma democracia real.

Temos que aperfeiçoar o sistema de cotas, é certo, entender melhor os pardos. Mas estamos no bom caminho: a nossa lei de cotas beneficia principalmente os mais pobres, não os mais negros. É preciso que ela seja melhor conhecida pelos brasileiros. mas, antes de tudo, é preciso salvar as universidades públicas brasileiras do desmanche anunciado pelo ex-ministro da educação.

Antonio Guimarães, sociólogo especialista em estudos afro-brasileiros e formação de classes sociais