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'É preciso mostrar para a sociedade a importância da evidência científica'

Cristiana Toscano, professora da UFG e doutora em epidemiologia - Secom UFG/Divulgação
Cristiana Toscano, professora da UFG e doutora em epidemiologia Imagem: Secom UFG/Divulgação

Janaina Garcia

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

05/06/2020 04h00

Um grupo seleto de candidatas a vacina para o tratamento da covid-19 compõe a pauta central de uma comissão internacional de especialistas que a OMS (Organização Mundial da Saúde) reúne pela primeira vez, nesta sexta-feira (5), por videoconferência. A reunião será coordenada pelo Grupo de Trabalho de Vacinas para a pandemia, da organização, e iniciará a revisão de evidências e o fornecimento de orientações sobre o uso acelerado dessas candidatas - atualmente, em número de 121, pelo mundo, dez delas em estudos pré-clínicos, ou seja, já prestes a serem testadas em seres humanos.

Com 15 pesquisadores selecionados diretamente pela OMS, o grupo internacional e estratégico conta com apenas um nome da América Latina, atual epicentro da pandemia. Trata-se da médica infectologista Cristiana Toscano, 48, professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da UFG (Universidade Federal de Goiás) e doutora em epidemiologia.

A acadêmica integra outros estudos da própria OMS e também da Organização Pan-americana de Saúde sobre doenças evitáveis por vacinas. Defensora enfática do SUS (Sistema Único de Saúde), dispõe ainda de uma coleção de experiências estrangeiras na área de saúde coletiva que a moldou como profissional: da especialização movida a "gasto de sola de sapato" na epidemiologia de campo, nos Estados Unidos, ao "acorda para a vida" com o que se deparou no Haiti.

"Nenhum país é isolado, nenhum estado é isolado - daí a importância de articulação, apoio e coordenação global", afirma, sobre os três meses que acompanhou um surto de pólio entre os haitianos.

E é justamente não isolada, mas conectada a outros pesquisadores em vacinação, que a epidemiologista brasileira saberá, possivelmente antes de qualquer outro latino-americano, quando que a aguardada vacina para a covid-19 ficará pronta. Das mais de 100 candidatas em estudos pré-clínicos, por sinal, uma delas tem alguns pontos em comum com a pesquisadora: é brasileira, de São Paulo e da USP (Universidade de São Paulo)- onde a médica cursou graduação e mestrado.

Se não há um prazo certo para a vacina, não há também, por outro lado, na visão de Cristiana, motivos para não se ter esperança face à atual crise.

"Busco me alinhar com o que é positivo - claro que criticando construtivamente as diversas situações, mas sempre caminhando com um olhar de esperança. Se a gente comparar o mundo de hoje e o de 100 anos atrás, historicamente, vai ver o quanto o mundo de agora está evoluído, mesmo que algumas mudanças sejam lentas", diz. "Talvez soe idealista, mas me motiva levantar todo dia e pensar que eu posso contribuir para isso, ao meu modo", conta.

Leia, a seguir, a entrevista concedida pela pesquisadora - que é também mãe de Pedro, 11, e Helena, 7 - a Ecoa.

Quais são as prioridades do grupo que a senhora vai integrar, e qual a pauta do primeiro encontro?

A comissão se reunirá a cada 15 dias, a princípio, de forma virtual, a fim de revisar todos os estudos de vacinas em andamento contra a covid-19. O objetivo é providenciar orientações para estratégias sobre o uso de vacinas, em fases de pré-licenciamento e pós-licenciamento, para tratar a doença.

Nesta primeira reunião, confirmada no último dia 29, devemos realizar o planejamento e a revisão dessa estrutura de trabalho. Começamos a receber todo o material que precisamos ler e preparar com as orientações, e segunda [2] demos início ao trabalho preparatório para a reunião da sexta.

O landscape analysis [análise de paisagem] publicado pela OMS no sábado passado [30] sobre as vacinas em desenvolvimento contra covid revelou que, atualmente, 121 estão em estudos pré-clínicos e dez em estudos clínicos. Dentre as que estão em estudos pré-clínicos, está uma vacina em desenvolvimento no Brasil, em São Paulo, pela USP [Universidade de São Paulo], em parceria com Instituto Butantan.

A proposta do nosso grupo é avaliar as evidências geradas pelos estudos que estão em andamento e entendendo que todas essas candidatas a vacina requerem diversas etapas de pesquisa sendo feitas. Com base nisso, analisar as implicações sobre as lacunas de conhecimento e a indicação de pesquisas adicionais a serem feitas. À medida em que as vacinas avancem com evidências de segurança e imunogenicidade, teremos avanços nas diversas etapas dos testes necessários.

Com mais de uma centena de vacinas em testes, cabe a essa comissão analisar também aspectos bioéticos sobre o desenvolvimento dessas candidatas?

Não, porque nosso escopo de trabalho é essencialmente técnico, no sentido de garantir que as normas internacionais sejam cumpridas. Além do mais, as legislações e as regulações específicas podem variar de país a país, de modo que, por exemplo, há nações em que se pode remunerar um voluntário a participar dos testes, como nos Estados Unidos, e outras, como o Brasil, onde isso é vetado.

Como se deu o processo de entrada no grupo da OMS?

Foi por convite e por processo seletivo - eles entraram em contato, me pediram um currículo e isso passou por uma seleção. Uma semana depois, me ligaram para dizer que eu havia sido aprovada.

Claro: acredito que isso foi resultado de um histórico de articulações internacionais da instituição a que sou ligada e também às minhas próprias articulações, como pesquisadora.

Com base no entendimento de que sua escolha para o grupo da OMS pode fortalecer uma rede de colaboração científica, é possível dizer que esse convite ajuda a compensar a falta de apoio à pesquisa, constantemente relatada no Brasil?

Acredito que essa falta de apoio não seja uma prerrogativa do Brasil. Infelizmente, países têm altos e baixos dos investimentos em pesquisa, com cenários políticos mais e menos simpáticos a eles, como no nosso caso. Na condição de pesquisadores, tentamos avançar na geração de conhecimento e estabelecer parcerias e articulações necessárias para desenvolver conhecimentos importantes ao desenvolvimento da sociedade.

Certamente que enfrentamos dificuldades para financiar pesquisa no Brasil, muitas vezes, mas essa capacidade de trabalhar em rede e em grupo nos permite avançar na pesquisa até mesmo com financiamentos diferentes — provenientes, por exemplo, de doadores internacionais.

No Brasil, pela UFG, a senhora realiza pesquisas com diferentes financiamentos - entre os quais, os oriundos de instituições acadêmicas e filantrópicas como a Fundação Bill e Melinda Gates. Como vê a filantropia de bilionários brasileiros voltada à pesquisa?

É necessário dizer que existem filantropias importantes no Brasil também, mas acho que isso é algo que deve ser considerado cultural e historicamente também — a filantropia em países mais desenvolvidos, como alguns da Europa e América do Norte, é mais forte.

Não conheço muito as questões legais e econômicas para facilitar isso, mas entendo que existe uma estrutura que promove que essas ações sejam feitas ou facilitadas. A depender de como isso opera, acredito que é algo que poderia ser seguido em outros países, também, como o Brasil.

A fundação Bill e Melinda Gates, que já havia recebido uma doação bem generosa do [bilionário norte-americano] Warren Buffet [ao menos US$ 31 bilhões, em anos recentes], tem várias vacinas candidatas ao tratamento da covid em avaliação - porque elas são resultado de investimento e apoio de uma instituição para desenvolvimento de uma plataforma de vacinas também financiada pela fundação do casal Gates.

Não posso dizer que faltem doações aqui, mas que elas são mais frequentes lá fora. Também há um desenvolvimento econômico e uma quantidade de recursos maior lá também. E não quero minimizar a importância das doações já feitas aqui no Brasil, ainda mais em tempos de crise como este - mas, é claro, quando a sociedade vive uma crise global, se torna mais patente impor colaboração e articulação de mecanismos de fato para que ela possa se articular na prevenção, por exemplo, desenvolvendo vacinas e se preparando para novos eventos epidêmicos e de combate a eles. Portanto, certamente que haver essas doações faz toda uma diferença.

A senhora tem experiência internacional aprofundada na área de imunizações. Uma das frentes em que atuou estudou o planejamento e a preparação nacional e regional para a pandemia de influenza. O que destaca dessas experiências, e que tipo de lição extrai delas para a crise atual?

Algo muito importante foi a experiência de campo, porque nós, epidemiologistas, trabalhamos investigando surtos, vamos a campo, implementamos atividades de vigilância, detectamos emergências de saúde... É um trabalho de muita sola de sapato, tanto que, no CDC [Centers for Disease Control and Prevention, em Atlanta, nos EUA, pelo qual ela é especialista em epidemiologia de campo], a logomarca é um sapatinho com a sola furada (risos).

Já participei de atividades em mais de 50 países e estive em todos os países da América Latina - e nessas experiências, algumas são capazes de nos fazer repensar nosso papel enquanto sociedade.

Destaco a experiência no Haiti, que me marcou muito: eu estava em início de carreira e passei três meses lá com um grupo de epidemiologistas internacionais, em 2001, investigando um surto de pólio. Trata-se de um país que a gente vê historicamente assolado por alguma desgraça, seja na saúde ou em emergências climáticas, e quando se está em um lugar assim se constata como que condições de vida tão difíceis, com uma estrutura de saúde tão precária, contrastam com a de países desenvolvidos e mesmo os em desenvolvimento. É como um 'wake up call', um 'se liga', um chacoalhão para a gente se ver como sociedade.

Nenhum país é isolado, nenhum estado é isolado - daí a importância de articulação, apoio e coordenação global. Nenhum de nós está sozinho no mundo, logo, é não olhar para si mesmo enquanto nação isolada e não carente desse tipo de articulação

Cristiana Toscano, professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da UFG

A exemplo do que faz o governo Trump, nos EUA, o governo brasileiro tem desqualificado ou colocado em xeque orientações da OMS. A senhora se sente de algum modo pressionada, como integrante dos trabalhos desse grupo?

Nós, pesquisadores, não representamos o posicionamento político do país. Não tenho o menor receio cobranças ou pressões nesse sentido: estou lá enquanto membro de um grupo técnico de especialistas e em um trabalho no sentido de se buscar a melhor evidência técnica. Por sorte, grupos assim não entram em questões políticas. E tem que ser assim mesmo: navegando a despeito de eventuais questões políticas em contrário.

Hoje ainda temos moradores de periferias, sobretudo negros e pobres, morrendo diante da dificuldade de acessarem vacinas a doenças que deveriam estar erradicadas. A senhora acredita que uma eventual vacina para a covid-19 irá reverter esse quadro?

Acredito que o acesso a vacinas - não apenas a elas, como aos serviços de saúde, como um todo — melhorou muito na última década. Muito mesmo. E digo com orgulho que o programa nacional de imunização brasileiro está entre os melhores do mundo, e não é de agora.

Sistemas de saúde que tentam oferecer saúde universal, como o SUS, têm tentado se segurar e estão na contramão das tendências mundiais, uma vez que são muito caros e difíceis de manter.

O SUS é um patrimônio do nosso país, e precisamos fazer de tudo para garantir que ele continue e consiga se manter, porque é algo que consegue, de fato, melhorar muito e permitir acesso à saúde da população, e especialmente em questões de vacinação, nas quais o conheço de perto

Cristiana Toscano, professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da UFG

Ele rompe barreiras, chega aos rincões de difícil acesso, à Amazônia, a fronteiras, a quilombolas, a populações indígenas e outros grupos mais vulneráveis. Isso tem sido a prioridade do SUS - e o Brasil, nos últimos 15 anos, introduziu novas vacinas e permitiu acesso, com custo bastante elevado [de produção] a algumas delas. E quando comparamos o Brasil com o resto do mundo, nesse aspecto, vemos que fomos capazes de implementar com recursos próprios um calendário vacinal. Isso é muito positivo e é importante a gente não perder de vista.

É fato que há ainda muitos que têm dificuldade de acesso à vacina - de forma que o trabalho principal, na maioria dos países mais pobres, tem sido desenvolvido pela Aliança Global para Vacinas, cujo apoio nos últimos 15 anos tem permitido acesso e também apoiado financiamento à introdução de vacinas nos países mais pobres do mundo.
Do ponto de vista de vacinas, portanto, é louvável ver que melhorias de acesso no Brasil e no mundo têm acontecido fruto dessa colaboração e apoio de ações internacionais.

Mas qual a perspectiva de acesso universal no caso de vacina para uma pandemia?

Desenvolver vacinas é um processo difícil, trabalhoso, mas a gente parte agora de dois aspectos positivos que ajudam no combate à covid: primeiro, a existência de plataformas que já que estavam em desenvolvimento para o combate ao Sars e ao Mers [vírus da mesma família e que causaram epidemias em 2002, na China, e em 2012, no Oriente Médio, respectivamente]; segundo, essas alianças internacionais de colaboração que permitem um processo mais rápido.

Nesse sentido, é possível que a tão aguardada vacina contra o coronavírus fique pronta ainda este ano?

O processo de produção de vacinas envolve a fase 1, de estudos pré-clínicos, com testes laboratoriais em animais; a fase 2, de estudos clínicos (em humanos), a fase 3, de testes em um grande número de pessoas, mas lembrando que, em cada fase, há processos demorados que não podem ser encurtados. Na fase 3, por exemplo, em que muitos indivíduos são testados, é preciso necessariamente comparar a ação em quem recebeu a vacina e em quem recebeu placebo e acompanhar, ao longo do tempo. E sob regulações e regras bastante rigorosas a serem cumpridas. A cada etapa, você tem a opção de [a tentativa] dar certo ou não.

Qualquer coisa que dissermos em termos de tempo, seria a consideração de uma situação ótima, na qual as moléculas candidatas tenham sido aprovadas em todas as etapas sem maiores intercorrências - nisso, seriam necessários de dez a 12 meses, sendo muito otimista. E o vírus está isolado há apenas cinco meses, cabe lembrar.

O que dá para encurtar, como no caso da vacina contra do H1N1, são os processos regulatórios e de registro, para que isso seja feito de maneira mais expedita. De toda forma, todas as etapas desde a produção à distribuição em larga escala têm a segurança como premissa básica.

A mensagem principal é: estamos todos em busca de um tratamento e de uma vacina, mas temos de trabalhar nos valendo das evidências e dos estudos científicos.

Da mesma forma que sobre as vacinas, há um número enorme de pesquisadores trabalhando com testes de medicamentos, vários, com evidências contundentes de que podem ajudar. A questão é confiar na ciência. E aí nosso papel e o dos comunicadores, penso, é comunicar para a sociedade de maneira clara a importância das evidências científicas

Cristiana Toscano, professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da UFG

O que e quem a inspiram em seu trabalho?

Como diz o ditado, "uma andorinha não faz verão" - e também a ciência requer conhecimentos e esforços cooperativos. Consegue-se avançar muito mais na pesquisa, com qualidade e capacidade de se pensar junto, considerando vários grupos.

Se a gente comparar o mundo de hoje e o de 100 anos atrás, no nosso tempo de vida, não temos a oportunidade de vivenciar essas experiências de maneira a percebê-las de forma marcante. Mas se acompanharmos historicamente, comparando o presente e o passado, vamos ver o quanto o mundo de agora está evoluído, mesmo que algumas mudanças sejam lentas.

Vivemos em um mundo em muitos aspectos - e, enquanto humanidade, temos que fazer o melhor para tentar tornar este espaço ainda melhor. Talvez soe idealista, mas me motiva levantar todo dia e pensar que eu posso contribuir para isso, ao meu modo.

Meus pais também me inspiram. Minha mãe [Patrícia Toscano, 83] é enfermeira aposentada da saúde pública; meu pai [Vicente Toscano, 90], cientista químico. Acredito que sou uma combinação deles - que estão isolados, em São Paulo, sem contato físico comigo desde janeiro, uma vez que também são crentes na ciência. Nada que uma chamada de vídeo feita pela minha mãe, mesmo com a idade dela, não amenize. Ela também precisou se reinventar na pandemia.