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Califórnia abriga milhares de sem-teto em hotéis, mas ativistas querem mais

Stephen Shoopman deita na cama de hotel que faz parte do projeto Roomkey em Los Angeles - Michael Owen Baker/Divulgação
Stephen Shoopman deita na cama de hotel que faz parte do projeto Roomkey em Los Angeles Imagem: Michael Owen Baker/Divulgação

Fernanda Ezabella

Colaboração para Ecoa de Los Angeles (EUA)

09/05/2020 04h00

Davon Brown mora nas ruas de Los Angeles desde junho. No último final de semana, vestiu sua melhor roupa e tomou um quarto de um hotel cinco estrelas, o Ritz-Carlton. Disse que não pagaria a conta e que exigia que o prefeito liberasse centenas de hotéis vazios da cidade para abrigar a população sem-teto que corre o risco de ser infectada pelo novo coronavírus.

O prefeito Eric Garcetti ouviu e prometeu um quarto para Davon. Mas o rapaz de 29 anos acabou mesmo numa cela de prisão, após ser retirado do hotel por policiais. Liberado algumas horas depois, voltou para sua tenda num parque da cidade.

Los Angeles já levou 1.660 desabrigados para 22 hotéis da região, no sul da Califórnia. Porém, as vagas são para quem tem mais de 65 anos ou sofre com problemas de saúde, e não para jovens saudáveis como Davon, um ex-jogador de basquete universitário que já trabalhou como modelo numa campanha de perfume da Lady Gaga. Em 2019, ficou desempregado e acabou indo morar numa tenda no bairro Echo Park.

"As pessoas pararam de ajudar com comida por conta do distanciamento. Agora rezo para ter a próxima refeição", disse Davon a Ecoa. "Vamos realizar mais ações [como a do Ritz] se o prefeito não abrir mais hotéis em breve. Não vamos ser largados para morrer", disse ele, ao centro na foto acima.

Para conseguir entrar no quarto do hotel de luxo, cuja diária custa cerca de US$ 500 (R$ 2.800), Davon contou com a ajuda dos ativistas dos movimentos Street Watch L.A. e No Vacancy. Eles chegaram num grupo de cinco, disseram que eram músicos e pediram para ver uma acomodação antes de alugar. Ao entrarem no quarto, anunciaram o plano.

"Na verdade, não sou famoso. Sou sem-teto e moro em Echo Park", contou Davon ao funcionário do hotel, num dos vídeos transmitidos ao vivo no Instagram. Em algumas horas, a polícia chegou. Em frente ao hotel, manifestantes levantavam faixas pedindo ao prefeito a liberação dos milhares de quartos de hotéis da cidade, agora vazios ou fechados por conta da pandemia.

O condado de Los Angeles lançou o projeto Roomkey para levar a população em situação de rua para dentro de hotéis desocupados devido à Covid-19 - Michael Owen Baker/Divulgação - Michael Owen Baker/Divulgação
Imagem: Michael Owen Baker/Divulgação

O condado de Los Angeles tem 10 milhões de habitantes e uma população de rua de 60 mil pessoas. A dez quadras do Ritz, fica Skid Row, uma região com cerca de cinco mil desabrigados que moram em tendas nas calçadas ou em abrigos temporários.

Em comparação, São Paulo tem 12 milhões de habitantes e 24 mil sem-teto. Porém, a capital paulista tem 1.700 ocupações com 2 milhões de moradores, segundo o censo de 2010 do IBGE, um fenômeno que não existe nestas proporções nos EUA.

"No Brasil, você tem uma espécie de etapa intermediária que é morar numa favela ou fazer parte de um movimento social e viver numa ocupação. Na maioria dos casos, quando não sobrar mais nenhuma opção, a rua é a única saída", explicou Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). "Nos EUA, chegar numa situação de rua é uma das primeiras opções de quem não tem mais como pagar aluguel, por exemplo."

Onze mil quartos

A Califórnia, estado mais populoso dos EUA com 40 milhões de habitantes, trabalha para levar o maior número de desabrigados na faixa etária de risco da Covid-19 para quartos de hotéis o quanto antes. O governo criou o Projeto Roomkey ("chave do quarto" em inglês) no começo de abril, usando fundos emergenciais de uma agência federal para alugar os espaços por três meses. Diversos estados imitaram a iniciativa.

Rachel Gerstein, dona de hotel que está no projeto Roomkey, fala com o gerente Ashwaque Zubair e o recepcionista Luis Meza - Michael Owen Baker/Divulgação - Michael Owen Baker/Divulgação
Rachel Gerstein, dona de hotel que está no projeto Roomkey, fala com o gerente Ashwaque Zubair e o recepcionista Luis Meza
Imagem: Michael Owen Baker/Divulgação

No total, já foram assegurados 11 mil quartos de hotéis e 1.100 trailers, sem contar uma parceria com a franquia Motel 6, que tem 47 hotéis em 19 condados do estado. A taxa de ocupação está em 4 mil por enquanto. O processo é demorado porque os condados são responsáveis por identificar os indivíduos que se enquadram no perfil do projeto, fazer a transferência e organizar os serviços de alimentação, saúde e segurança dos hotéis.

A Califórnia foi um dos primeiros estados do país a pedir para a população ficar em casa para evitar aumento das infecções por coronavírus. Especialistas acreditam que a rapidez nas medidas tomadas pelas autoridades ajudaram a evitar situações como a de Nova York, que registrava 19 mil mortes em 6/5. A Califórnia tinha 2.254 mortos.

Com o projeto Roomkey, Los Angeles traçou a meta de conseguir 15 mil quartos. Em sua conta no Instagram, a Autoridade de Serviços para Desabrigados de Los Angeles (Lasha, na sigla em inglês) posta vídeos com frequência dos trabalhos nos 22 hotéis e seus novos 1.660 hóspedes.

"Os hotéis variam em luxo, alguns são quartos de motéis simples, outros tem acomodações mais generosas", disse por telefone o diretor de comunicações da Lasha, Ahmad Chapman.

O preço das diárias varia de US$ 75 a US$ 100, sem contar refeições. Cada hotel precisa ter dois enfermeiros (que tiram temperatura de todos os hóspedes duas vezes ao dia), ao menos um segurança, voluntários para entrega de refeições no quarto e retirada de lixo, além de assistentes sociais. Para sair e voltar, há um controle rígido: apenas para necessidades essenciais.

Meio milhão de reais em vaquinhas

Ativistas de movimentos urbanos da Califórnia exigem mais quartos para abranger toda a população sem-teto. Eles também pedem cancelamento dos aluguéis e fim dos despejos. Alguns grupos chegaram a invadir casas abandonadas, privadas e estatais, em Oakland e Los Angeles.

Em Oakland, cidade a 20 km de San Francisco, um coletivo resolveu não esperar pelo governo e levantou US$ 34 mil (R$ 194 mil) em doações no site de vaquinhas GoFundMe, em menos de três semanas. Em maio, o East Oakland Collective usou o dinheiro para alugar 15 quartos para 18 famílias. Há ajuda com refeições e visita de agentes de saúde. O objetivo é atingir US$ 50 mil e 30 quartos.

"As pessoas nos acampamentos [de sem-teto] estão começando a ficar doentes. Nós precisamos desses hotéis para não morrer", disse Mama Dolores, 75 anos, que foi abrigada pela iniciativa e deu um depoimento num post do coletivo do Instagram.

Tenho pneumonia crônica por morar na rua há quatro anos. Ter uma cama, um chuveiro, ir ao banheiro como um ser humano quando preciso, ter água o tempo todo, uma cozinha para cozinhar e armazenar alimentos, essas são as coisas que mudaram para mim aqui.

Mama Dolores, 75 anos

Venessa, 25 anos, e seu filho de 10 meses são outros beneficiários do projeto, além de Patricia, 48, e sua filha de 15. "Muito melhor do que morar em nosso carro. É mais quentinho aqui", disse Patricia em outro post.

Duane Pierfax senta em cama de hotel no projeto Roomkey, em Los Angeles - Michael Owen Baker/Divulgação - Michael Owen Baker/Divulgação
Duane Pierfax senta em cama de hotel no projeto Roomkey, em Los Angeles
Imagem: Michael Owen Baker/Divulgação

Em Nova York, a prefeitura afirma já ter hospedado em hotéis 2.500 pessoas que estavam em albergues e precisavam de isolamento físico por serem idosos ou estarem doentes. Para um coletivo local formado por seis grupos ativistas, é muito pouco. Eles também fizeram uma vaquinha e já arrecadaram US$ 65 mil (R$ 371 mil) em um mês.

No final de abril, levaram 26 pessoas para quartos alugados por um período de quatro a cinco semanas. O coletivo pressiona o prefeito Bill de Blasio para liberar 30 mil dos 100 mil quartos da cidade, que agora estão praticamente vazios.

"Milhares estão dormindo nas ruas e nos metrôs sem ter onde tomar banho e fazer distanciamento seguro, enquanto centenas de milhares de apartamentos e quartos de hotel ficam vazios", diz o manifesto do coletivo. "Isso é absolutamente errado e inaceitável."