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Ex-presidiários fazem máscaras contra Covid para penitenciária em SP

Elton de Souza, estampador e rapper: "Ninguém aprende a ser melhor morrendo" - Arquivo Pessoal
Elton de Souza, estampador e rapper: "Ninguém aprende a ser melhor morrendo" Imagem: Arquivo Pessoal

Janaina Garcia

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

24/04/2020 04h00

Faltavam poucos dias para a Páscoa deste ano quando o papa Francisco, em uma missa na Capela da Casa Santa Marta, no Vaticano, abriu a celebração pedindo que se rezasse por "um grave problema que existe em várias partes do mundo": a superlotação nos cárceres. Em tempos de pandemia do coronavírus, alertou o sumo pontífice, as prisões abarrotadas poderiam resultar em uma grave calamidade. Daí a necessidade de se rezar "pelos responsáveis, por aqueles que devem tomar as decisões nisso, a fim de que encontrem um caminho justo e criativo para resolver o problema".

A superlotação de presídios em todo o mundo parece uma questão longe de ser resolvida — são pelo menos 11 milhões de detentos pelo globo, segundo números de 2018 do World Prison Brief, um levantamento mundial realizado pelo ICPR (Institute for Crime & Justice Research) e pela Birkbeck University of London. Só no Brasil, segundo dados de 2019 do governo federal, são quase 800 mil detentos - mais de um terço, sequer julgados.

Atenta ao problema, uma ONG (organização não-governamental) de São Paulo optou por um caminho que considerou justo e criativo para minimizar o risco de infecção pelo coronavírus na prisão. Ela resolveu doar kits com material de higiene e máscaras de tecido confeccionadas por egressos do sistema prisional a uma unidade penitenciária do estado, o CPP (Centro de Proteção Penitenciária) de Hortolândia, no interior.

O material contempla tanto os agentes penitenciários, sobretudo porque são os que têm maior contato com o mundo externo, como custodiados que integram o grupo de risco.

A reportagem de Ecoa conversou com integrantes da ONG, conhecida como Projeto Sê-los, que, desde fevereiro passado, trabalha com um grupo multidisciplinar de profissionais — entre os quais, advogados, jornalista, fonoaudióloga e psicóloga, por exemplo —, que busca criar um espaço de ressocialização para futuros egressos do sistema prisional, fazendo o que o grupo considera como uma ponte entre a sociedade e o presídio em Hortolândia.

Como a organização realizava encontros semanais na unidade prisional entre os apenados participantes e os voluntários — com exercícios de desenvolvimento pessoal, oficinas e palestras —, em meio à pandemia, essas atividades tiveram de ser suspensas.

Funcionário com máscaras produzidas em estamparia de ex-detento, doadas para prisões na pandemia da Covid-19 - Divulgação - Divulgação
Funcionário da Estamparia Social com máscaras doadas para prisões na pandemia da Covid-19
Imagem: Divulgação
"Paramos antes as aulas e interrompemos o projeto para evitar riscos de contaminação, mas entendemos que algo podia ser feito: arrecadamos valores por uma plataforma online e para montar kits com duas máscaras de algodão, álcool gel, álcool líquido e sabonete em barra -- para os agentes e para o presídio. Como são 200 agentes penitenciários, calculamos 400 máscaras, mas, como arrecadamos quase R$ 6 mil, decidimos mandar material também a presos de grupos de risco", conta o advogado Luiz Guilherme Rahal Pretti, um dos fundadores da ONG.

De acordo com ele, a confecção das máscaras foi delegada à Estamparia Social, microempresa de impacto social formada justamente por egressos do sistema prisional. A unidade fica na zona oeste da capital e tem em todos os seus quadros, dos costureiros ao fundador, pessoas que passaram por unidades prisionais de São Paulo.

"Como as máscaras seriam para custodiados e agentes, pensamos que faria todo o sentido entrar em contato falar com a Estamparia, porque eles já haviam feito camisetas ao projeto. Confeccionaram e nos venderam 1.230 máscaras de tecido que foram acopladas a esses kits com produtos de higiene que entregamos em Hortolândia", completa Pretti.

Microempresa capacita ex-detentos

O criador da Estamparia é Robson Mateus Sanchez Arruda, 28, que conta tê-la iniciado há três anos focado em impactar a realidade de egressos do sistema penal — sobretudo por meio de cursos de capacitação aplicados também a ex-detentos que foram a centros de acolhida do município.

A ideia era tornar esse público apto a atuar no ramo têxtil, especialmente com estamparia, modelagem e empreendedorismo, a fim de que buscasse se reposicionar no mercado. Dos que ele já ajudou na capacitação, quatro, atualmente, trabalham na microempresa; em tempos melhores de vendas, esse número pode chegar a nove.

"Eu sou egresso de prisão: fui flagrado com alguns gramas de maconha indo para a praia, anos atrás, e acabei ficando um tempo preso por tráfico. Quando eu saí, já conhecia um pouco das técnicas de estamparia — mesmo formado em cinema, trabalhei com algumas marcas e sempre tive interesse nesse ramo", conta. "Quando eu deixei a penitenciária, saí focado em montar minha estamparia, mas isso só fazia sentido, na minha cabeça, contratando gente que viveu a mesma realidade que a minha."

Robson Mateus Sanchez Arruda produz máscaras para ex-detentos como ele - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Robson Arruda criou a Estamparia Social após sair da prisão
Imagem: Arquivo Pessoal

A microempresa teve incentivos advindos de editais de uma empresa de seguros e da organização Brazil Foundation, que reúne líderes e organizações sociais em busca de igualdade e justiça social. Foi graças a eles, explica Arruda, que a capacitação social dos ex-detentos foi possível. Outro apoio importante na empreitada veio de projetos sociais da FEA-USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo) e da FGV (Fundação Getúlio Vargas), que incubaram parte da gestão da microempresa.

Dos 180 alunos que ele ajudou a capacitar, afirma Arruda, 48 foram para o mercado de trabalho. "Pós-corona, porém, cerca de 60% deles já foram demitidos. É muito difícil essa situação. Eu sou branco, classe média, me formei em uma universidade, então entendo que o caminho para mim foi mais fácil. Os egressos estão muitas vezes em situação de extrema vulnerabilidade, nos centros de acolhimento: são adictos e estão com os vínculos familiares rompidos — primeiro passo nosso, com as incubadoras, antes de ensiná-los nos cursos", relata.

Segundo o microempresário, as máscaras ao projeto Sê-los foram feitas com doação da mão de obra. "Cobramos só o material; a mão de obra, doamos."

'Não é morrendo que se aprende a ser melhor'

Um dos costureiros que atuam na microempresa é Elton de Souza, 34, o "Braga" — "é meu nome artístico", pondera ele, que também canta rap.

Morador de uma comunidade no Rio Pequeno, na região do Butantã (zona oeste da capital), Braga trabalha na finalização das máscaras e é funcionário de um projeto de reinserção de presos no mercado denominado "Responsa", pelo qual atua, de forma terceirizada, como guardião de bikes e patinetes de empresas de aluguel na cidade.

Ante o crescimento dos casos de Covid-19 em São Paulo e a iminência da quarentena, o serviço foi interrompido no começo de março. O projeto, no entanto, por ora mantém o repasse do salário e das cestas básicas, conta ele.

Braga é pai de quatro filhos: o mais velho, de 8 anos, uma menina de 6, uma menina de um ano e seis meses e um bebê de apenas quatro meses. Ele relata ter conhecido Arruda no regime semiaberto em Hortolândia, última etapa até a sonhada liberdade. Condenado por tráfico, cumpriu quatro anos e 11 meses de detenção; metade da pena, em Presidente Prudente, destino inviável para a mulher e o restante da família.

"Quando eu fui preso, minha mulher estava grávida de sete meses. E eu sabia que, quando eu saísse, seria uma dificuldade imensa me recolocar no mercado de trabalho. Eu teria sempre um carimbo de 'ex-detento' me fechando portas, porque é assim que as pessoas, em geral, olham para sujeitos como nós", afirma.

Na prisão, aprendeu a lidar com crochê e a fazer tapetes e bonés. "Eu sonhava com meus filhos, com minha esposa, pensava se eles estavam bem, como estavam se virando... Eu chegava a sonhar, com frequência, quando dormia, que o portão do presídio se abria, e o vento da rua batia no meu rosto. Tem que ser forte para acabar não 'chapando' — e fora que, quando me mandaram para Prudente, eu ficava muito tempo sem notícias da minha família, dos meus irmãos. Me sentia esquecido, muitas vezes."

Quando finalmente deixou a prisão, a ajuda de Arruda para se capacitar e atuar na área têxtil, admite, foi fundamental para a própria reconstrução.

Vi muito amigo meu que deixou a prisão, não conseguiu se reinserir aqui do lado de fora, voltou para o crime, foi preso de novo e acabou morrendo de tuberculose. Não é fácil a vida lá dentro; a gente fica exposto a doenças e ao julgamento de quem acha que temos que apodrecer ali - mas não é morrendo que se aprende a ser melhor, não é?

Elton de Souza, estampador e rapper

Como se sente em produzir máscaras para presidiários que, diferentemente dele, ainda sonham com a liberdade?

"Eu me sinto gratificado em produzir algo como uma máscara dessas para uma pessoa em situação de rua ou para um bacana que pode comprar - o que a gente precisa, ainda mais agora, é proteger o próximo e sem olhar a quem. Mas é claro que é muito mais tocante, para mim, mandar a doação do meu trabalho a todo um exército de excluídos que estão carentes também de um voto de confiança."

Braga não conviveu como pai, assassinado em 1998 em meio a uma disputa do tráfico. "Quando eu nasci, meu pai estava preso", fala. Também perdeu a mãe, dependente química.

"Meu exemplo sempre foi minha avó. Eu errei muito nessa vida, mas me dispus a consertá-la e a levar adiante o amor e o carinho que ela me ensinou. Ela morreu cinco dias antes de eu deixar a prisão, mas acredito que continuar o legado dela é essencial", desabafa.

Braga mora com a mulher e os quatro filhos em um barraco de madeirite com dois cômodos. Em casa, faz todos usarem as máscaras de tecido que ajuda a confeccionar. Mas ele reconhece: a tarefa no bairro é quase inglória.

"O povo diz que esse é um bagulho que só pega rico. Eu digo: 'Parça, abre o olho: se até nos Estados Unidos, que são um país rico, tem pobre morrendo [o país já contabiliza mais de 45 mil mortes por Covid-19], por que não vai morrer gente nossa? Ninguém é imune".

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do publicado na versão original da reportagem, as máscaras para o CPP (Centro de Proteção Penitenciária) de Hortolândia não foram doadas pela microempresa Estamparia Social, mas pela ONG Sê-lo, que as comprou, após uma vaquinha virtual, da microempresa. A informação sobre a suposta doação havia sido divulgada pelo fundador da Estamparia. O texto foi corrigido e complementado.