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País mais digital do mundo, Estônia 'hackeia' soluções para pandemia

Apesar de hub tecnológico, Tallinn, capital da Estônia, tem um dos centros medievais mais bem preservados da Europa - Fernanda Ezabella
Apesar de hub tecnológico, Tallinn, capital da Estônia, tem um dos centros medievais mais bem preservados da Europa Imagem: Fernanda Ezabella

Fernanda Ezabella

Colaboração para Ecoa, de Los Angeles

11/04/2020 04h00

Dois dias antes do fechamento das escolas por conta do coronavírus, a Estônia resolveu se organizar da melhor forma que sabe: fazendo um hackathon virtual de 48 horas. Afinal, o pequeno país báltico de 1,3 milhão de habitantes é conhecido como uma das sociedades digitais mais avançadas do mundo, além de ser terra de unicórnios como Skype, Bolt e TransferWise.

Para quem não é familiar com o termo, "hackathons" são eventos que reúnem pessoas de formações diferentes para pensar soluções para problemas em comum, usando tecnologia para criar serviços, sites, aplicativos, aparelhos. A palavra é uma mistura de "hackear" (do verbo em inglês "to hack", aqui no sentido positivo de explorar soluções, escrever programas) com "maratonas". Em geral, são eventos de duração curta, porém intensa, como 48 horas sem parar.

O primeiro Hack the Crisis, criado pela agência de inovação e tecnologia do governo da Estônia, inspirou mais de 50 eventos similares pela Europa e até mesmo Brasil, com resultados que já começam a ajudar diferentes países. Na quinta-feira (8/4), uma versão global com 100 mil participantes foi lançada para abordar desafios levantados pelas Nações Unidas, Comissão Europeia e governos locais.

Não precisam ser soluções de alta tecnologia. Pode ser algo não tecnológico, pode ser um movimento, algo social. Queremos resolver problemas para os humanos, certo?

Marko Russiver, designer, ativista estoniano e organizador do Hack the Crisis em fala no TED

O hackathon foi organizado em apenas seis horas pela comunidade de startups da Estônia, após um empurrão da agência governamental Accelerate Estonia e ajuda da Garage48, firma local especializada em eventos do tipo.

No final de semana de 13 a 15 de março, quando a população ainda tentava entender o estado de emergência declarado pelo governo, cerca de 1.300 pessoas se reuniram online para pensar em maneiras de resolver problemas causados pela pandemia. Até 9/4, 24 pessoas haviam morrido de Covid-19 no país, enquanto outras 1.200 foram infectadas.

Em 48 horas, mais de 80 ideias foram desenvolvidas por 30 times formados. As cinco melhores soluções ganharam um prêmio de 5 mil euros cada para serem executadas, por meio de um fundo da Accelerate Estonia.

Emprego e dúvidas sobre Covid-19

Uma das ideias vencedoras foi a plataforma gratuita Share Force One, que conecta empresas com funcionários ociosos por conta da crise com empresas em busca de força de trabalho temporária também por conta da crise. O site foi lançado no mesmo mês e conta com apoio do Fundo de Seguro-Desemprego da Estônia.

Marko Russiver, designer, ativista estoniano e organizador do Hack the Crisis - Divulgação - Divulgação
Marko Russiver, designer, ativista estoniano e organizador do Hack the Crisis
Imagem: Divulgação
Como exemplo, Russiver citou hoteis cujos empregados estão sem trabalho e que agora podem fazer parceria com companhias de delivery que viram sua demanda explodir.

Outro aplicativo que surgiu no Hack the Crisis e também já em uso em sites do governo foi o Coronabot, um "chatbot", ou assistente virtual, que responde perguntas sobre o coronavírus. A ideia não foi uma das cinco vencedoras, mas o governo pediu para que fosse desenvolvida.

"O 'chatbot' entende até gírias e é ótimo para responder dúvidas da garotada", disse Russiver. "Assim as linhas telefônicas ficam livres para a população mais velha que não está acostumada a 'chatbots'. Todo mundo fica informado, sem pânico."

Educação a distância de qualidade

Um projeto que tentou alavancar força no Hack the Crisis, mas acabou vingando dias depois nas redes sociais, foi o da educadora estoniana Maria Rahamägi, da startup educativa Edumus.

Rahamägi ajudou a montar uma plataforma para coleta e distribuição de aparelhos móveis para estudantes que não tinham acesso e estão agora fechados em casa com aulas virtuais. Em três semanas, 1.000 aparelhos foram doados.

"Durante o hackathon, encontrei muitos desafios e acabei desencorajada", disse Rahamägi. "Mas descobri que estava três dias à frente de todo mundo. Logo o problema [da falta de aparelhos] se tornou muito evidente, e grupos no Facebook começaram a surgir para facilitar a troca", continuou, elogiando empresas locais que doaram e o apoio que teve do ministério da Educação.

A Estônia é líder em educação na Europa e oferece dezenas de ferramentas online gratuitas para aprendizado à distância durante a pandemia. Em conjunto com outros países nórdicos, criou um site para divulgar as melhores plataformas de ensino, em inglês.

O país no mar Báltico passou a investir em programas digitais após independência da União Soviética nos anos 1990. Hoje, 99% dos serviços públicos são acessados online, como registro de empresas, recém-nascidos, pagamento de taxas e até pedidos de histórico médico e receitas médicas. O estoniano também vota online em suas eleições.

No Brasil, ajuda a microempreendedores

Os organizadores do Hack the Crisis montaram um modelo que passou a ser replicado em mais de 40 países, incluindo Brasil. Na Itália, por exemplo, um voluntário da Cruz Vermelha criou um serviço telefônico para conectar pessoas idosas solitárias.

Raphael Fassoni, brasileiro que criou uma rede para conectar empresas do Brasil e da Estônia do setor público e privado em parcerias digitais - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Raphael Fassoni, brasileiro que criou uma rede para conectar empresas do Brasil e da Estônia do setor público e privado em parcerias digitais
Imagem: Arquivo Pessoal
No Brasil, uma versão conectada ao hackathon estoniano, chamada MegaHack Covid-19, aconteceu no final de março com cerca de 2.500 participantes online. O foco era ajudar pequenas empresas, micro empreendedores e startups a sobreviver à crise econômica gerada pela pandemia.

"A expectativa é gerar umas 300 ideias. Acredito que metade pode ter a chance de sair do laboratório, da fase incubadora, e ser testada de fato", disse Raphael Fassoni, brasileiro que mora na Estônia e criou uma rede chamada Estônia Hub para conectar empresas dos dois países do setor público e privado em parcerias digitais.

As melhores soluções serão anunciadas em 11/4. Uma das ideias que têm atraído atenção é a criação de um comércio digital municipal, onde qualquer cidadão possa incluir sua loja ou produtos. "Seria uma plataforma replicável para qualquer município", explicou Fassoni, acrescentando que a Associação Comercial e Industrial de Marília (SP) está apoiando a implementação na cidade e outros municípios demonstraram interesse.

Ao contrário do evento europeu, não haverá prêmio em dinheiro. "Teremos uma segunda fase quando vamos precisar de incentivo financeiro. Veremos quais ideias são praticáveis e vamos buscar apoio."

Hackaton global

O Brasil também vai ajudar na versão global do hackathon que começou na quinta-feira (9) e termina neste domingo (12), reunindo 100 mil pessoas ao redor do planeta. O Global Hack surgiu da comunidade do Hack the Crisis e vai distribuir mais de 140 mil euros para as melhores ideias em cada uma das 11 categorias, como saúde mental, trabalho e meio-ambiente.

Fassoni vai atuar como um dos mentores para projetos de negócios. Ele também trouxe a bordo o grupo de voluntários Hackathon Brasil, que ajudará na organização da categoria educação.

Cartaz da maratona Global Hack  - Divulgação - Divulgação
Cartaz da maratona Global Hack que ocorre nesse fim de semana
Imagem: Divulgação
A iniciativa conta com mentores e parceiros de campos variados, do Vale do Silício, ONU e Comissão Europeia, além de dezenas de especialistas do mundo todo, incluindo alguns nomes curiosos como a astronauta italiana Samantha Cristoforetti, a maratonista egípcia Manal Rostom e o enxadrista russo Garry Kasparov.

Russiver acredita que o evento será um marco tecnológico e que muitos países estarão de olho para testar e ampliar as melhores soluções. "Alguns dos hackathons mais produtivos que vimos foram aqueles em que o governo estava envolvido, como o nosso", disse. "Realmente acredito que será onde os próximos Googles e Amazons da vida serão inventados."

Até mesmo a presidente da Estônia, Kersti Kaljulaid, fez um chamado a todos para participar da iniciativa global, seja compartilhando ideias ou apenas "aproveitando a atmosfera de hackear a crise". "É uma atmosfera muito Estônia", brincou a líder num vídeo online.

Para Kaljulaid, a colaboração entre governo e startups é o DNA da sociedade digital do país.

Achar um problema, imediatamente achar uma solução, hackeá-la e seguir em frente. Sim, nós podemos resolver a crise e usar tecnologia para isto. Estamos fisicamente longe, mas mentalmente próximos e focados no que realmente interessa: como vamos resolver essa crise.

Kersti Kaljulaid, presidente da Estônia