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Despoluição na pandemia pode mudar relação com mobilidade, diz especialista

A rua da Consolação, na esquina coma Avenida Paulista, na cidade de São Paulo - Lincoln K./Futura Press/Estadão Conteúdo
A rua da Consolação, na esquina coma Avenida Paulista, na cidade de São Paulo Imagem: Lincoln K./Futura Press/Estadão Conteúdo

Rodrigo Bertolotto

De Ecoa, em São Paulo

06/04/2020 04h00

Ao final da pandemia, que as pessoas voltem às ruas e os carros continuem nas garagens. Essa seria uma das boas lições que esse período de quarentena pode deixar de legado para as cidades, segundo André Luís Ferreira, diretor executivo do Instituto de Energia e Meio Ambiente.

"Aqui em São Paulo, o impacto maior foi nas regiões onde circulam normalmente mais carros do que ônibus ou caminhões. Em alguns pontos e horários, caiu pela metade a presença de poluentes no ar, chegando ao nível recomendado pela OMS [Organização Mundial de Saúde]", relata o diretor da entidade sem fins lucrativos.

Ele analisou os dados da Cetesb (Companhia Ambiental de São Paulo) e viu que a partir de 23 de março, o ar vem melhorando. A queda maior foi do monóxido de carbono e do dióxido de nitrogênio, subprodutos da queima de combustíveis dos carros. Já o material particulado, emitido pelo diesel de ônibus e caminhões, teve uma redução menor.

Uma cidade sobrecarregada de carros é ruim para a saúde pública. O automóvel facilita a vida individual, mas degrada a população e a cidade

A poluição gera principalmente problemas respiratórios, mas também cardiovasculares. Estudo publicado na revista científica "New England Journal of Medicine" avaliou o ar de 55 cidades norte-americanas e constatou que, a cada 10 microgramas/m3 de material poluente retirados da atmosfera, ganha-se 1,2 ano de expectativa de vida na população. Segundo pesquisa da publicação médica "The Lancet", nove milhões de pessoas morrem por ano em decorrência da poluição - metade delas na China e na Índia.

No caso de São Paulo, a sujeira vem do trânsito. Tanto é assim que Paulo Saldiva, médico que é considerado o maior especialista no Brasil do impacto da poluição na saúde, classifica as avenidas como "as novas chaminés". Estudo liderado por ele mostrou que quem mora na periferia sofre mais com a poluição porque fica mais tempo no trânsito - com cada hora no engarrafamento equivalendo a ter fumado cinco cigarros.

Por seu lado, um levantamento do Instituto de Energia e Meio Ambiente apontou que os carros são responsáveis por 70% dos gases do efeito estufa em São Paulo e que a pessoa usando ônibus polui quatro vezes menos do que a que usa o carro. Segundo a CET (Companhia de Engenharia de Trânsito), o município de São Paulo tem 8,6 milhões de veículos, incluindo carros, motos, ônibus e caminhões, uma proporção de 7,4 veículos por 10 habitantes.

"Temos que estimular o transporte público. E, se mudarmos a fonte de energia, trocando a combustão pela eletricidade, melhor ainda", preconiza Ferreira.

André Luís Ferreira, engenheiro e diretor do IEMA - Divulgação - Divulgação
André Luís Ferreira, engenheiro e diretor do IEMA
Imagem: Divulgação
Para ele, seria a hora de aproveitar os investimentos públicos para movimentar a economia para implementar essas mexidas nas metrópoles. "É uma disputa pelo uso de solo. O carro disputa espaço com as pessoas. Temos que racionalizar seu uso. Assim os pátios de estacionamento podem virar praças."

O isolamento social para combater o coronavírus, hoje implementado por metade do globo, derrubou as emissões de gases-estufa, como consequência da redução da mobilidade humana e da atividade industrial. A queda temporária das emissões pode representar um alívio para a crise climática, afinal, abril promete ser "o mês em que a Terra parou".

"A sociedade estava muito frenética e agora vai se recolher um pouco, vai ficar mais contemplativa. Vai haver uma valorização de coisas que estavam esquecidas, como o comportamento comunitário e o convívio familiar. Quando acontecer a recuperação econômica, as pessoas já vão ter repensado o papel do Estado e do espaço público", acredita o dirigente. Do isolamento pode surgir um sentimento coletivo.

As ruas ficaram vazias para que os hospitais não ficassem mais abarrotados de doentes, afinal, a principal forma de contágio é pela proximidade e transmissão pelas mucosas do rosto. Na China, alguns serviços de entrega de comida e medicamentos testaram nesses dias o uso de carros autônomos (sem motorista). Ferreira, porém, diz que essa não é prioridade no caso brasileiro. "Precisamos de menos carros agora e mais transporte público, mais calçadas boas e mais ciclovias", complementa.

Para ele, é preciso reformular as cidades para evitar que as pessoas atravessem quilômetros e quilômetros entre suas casas e seus trabalhos.

Temos que ter metrópoles multicentrais, com oferta de empregos em mais lugares. Assim os moradores se deslocam menos. Essa é uma cidade mais humana, onde as pessoas são mais importantes do que as máquinas.