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Por que você não deve falar "coronavoucher" e estigmatizar mais as pessoas

Vendedor ambulante usa máscara de proteção durante tarde na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em meados de março de 2020 - Carl de Souza/AFP
Vendedor ambulante usa máscara de proteção durante tarde na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em meados de março de 2020 Imagem: Carl de Souza/AFP

Matheus Pichonelli

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

03/04/2020 04h00

Se você já entrou no embalo da turma das redes sociais e vem usando a palavra "coronavoucher" para se referir ao programa de renda básica emergencial, saiba que há motivos para fazê-lo repensar essa atitude.

"Um vale é um papel que te dá acesso a uma coisa específica. Como um vale transporte, um vale alimentação. O auxílio, que prefiro chamar de renda básica, é um fluxo que as pessoas vão receber mensalmente e usar no que quiserem. Não é vale, é renda", explicou a economista Monica de Bolle em entrevista a Ecoa. O auxílio do governo federal é a principal estratégia emergencial adotadas para os trabalhadores informais afetados pela pandemia da Convid-19. Segundo o Ministério da Cidadania, os beneficiários do Bolsa Família serão os primeiros a receber o recurso de até R$ 600 por pessoa (R$ 1.200 por família).

A economista, que iniciou uma campanha no Twitter para evitar a popularização do termo "coronavoucher", sobretudo nos veículos de comunicação, contou ter participado das discussões no Congresso sobre o projeto, um tema ao qual se dedica há anos, e ficou indignada quando ouviu a expressão pela primeira vez. Por três razões, explicou. "Primeiro, é uma deturpação completa de conceitos econômicos. O conceito econômico é a renda. O Bolsa Família é um programa de transferência de renda com condicionantes. A renda básica é igual, mas sem condicionantes. Essa deturpação completa de termos econômicos acaba desinformando", disse.

Tem gente morrendo. É de mau gosto. Os termos importam. Quem trabalha com as palavras sabe disso.

Monica de Bolle, sobre o segundo motivo de sua indignação

A outra razão, disse ela, é que o nome é uma tentativa de transformar o projeto em algo perecível, "uma coisa menor do que de fato é", algo que ela vem apontando nas redes sociais.

Para a antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, o termo é problemático não só porque confunde conceitos, mas porque estigmatiza seus beneficiários. "Parece uma coisa que você marca como uma anormalidade naquele grupo. Um grupo que precisou ser demarcado pela doença", disse em entrevista a Ecoa.

"Essa ideia de anormalidade expulsa qualquer possibilidade de inclusão dessas pessoas. Essas pessoas vão estar marcadas por uma lógica higienista do coronavírus. Foram separadas da sociedade por precisarem de um tipo de ajuda. São os 'estranhos', os 'não normais', os 'que não deram conta'", explicou a antropóloga e consultora na área de desenvolvimento de políticas públicas para pessoas com deficiências e doenças raras.

Eu lidei a vida inteira com a questão do estigma, então acho esse termo muito complicado. Porque deforma esses sujeitos.

Ela cita como exemplo positivo o Bolsa Família, um termo, segundo ela, que não demarca ninguém, ainda que tenha virado alvo de críticas e agressões por opositores ao programa. "É a assistência a uma família. E seus beneficiários já são marcados por preconceitos, são chamados de "vagabundos", etc. Agora imagina alguém que foi marcado por uma doença. O Bolsa Família foi pensado não para salvar as gerações presentes, mas as gerações futuras. Para exigir que as crianças estivessem na escola, que fossem acompanhadas de médico. Ou seja: garantir que a próxima geração tivesse condições melhores de vida."

O sociólogo Maurício Botrel de Vasconcelos, especialista em sociologia econômica e das organizações, aponta a existência de um elemento político claro na ideia de "voucher".

Essa denominação aparece em diversas propostas de uma direita privatista que se pretende moderninha. Em Minas Gerais, por exemplo, fala-se em voucher para crianças pobres estudarem em escolas particulares, o que nada mais é que uma tentativa de lutar contra a noção de escola pública universal. Com isso a direita também consegue fugir de termos como 'bolsa alguma coisa' ou, como deveria ser, a ideia de 'renda básica emergencial', o que poderia ser atrelada à pauta histórica da renda básica universal. Em suma, trata-se de uma armadilha semântica.

Maurício Botrel de Vasconcelos, sociólogo

Nas redes sociais, a discussão prossegue. "'Coronavaucher' é a novilíngua dos bolsonaristas para expressar sua rejeição aos pobres. (O certo é) Renda Básica Emergencial", tuitou a professora da Faculdade de Direito da UnB Débora Diniz.

O Twitter também foi a plataforma encontrara por Silvio Luiz de Almeida, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da USP e professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, para expôr o que chama de uma "indignidade".

Para o professor-doutor, "a 'voucherização' serve apenas para minar a ideia-força do Estado como organizador em última instância de uma sociedade dividida e conflituosa. O medo maior dos mercadores da vida: que a Renda Básica Emergencial se torne Renda Básica Permanente; que a saúde e a educação não possam mais ser mercantilizadas; que a solidariedade social se torne uma força incontornável da vida política."

A economista Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional, em Washington - Divulgação - Divulgação
A economista Monica de Bolle defende a renda básica universal como um conceito liberal
Imagem: Divulgação

Segundo a economista Monica de Bolle, as críticas em torno do projeto, que chegam a apontar a adoção de um "modelo socialista" no país, é resultado de um outro problema: a indigência intelectual de quem não tem conhecimento necessário e confunde os conceitos econômicos. "O conceito de renda básica universal é super liberal. Você está tirando o governo do caminho. O governo dá a elas a escolha de ter uma vida melhor. Dar escolhas é um princípio do liberalismo."

Como mostrou uma reportagem recente da Folha de S.Paulo, a perspectiva de colapso econômico global em razão do coronavírus fez com que propostas de distribuição de renda, como uma renda básica universal, antes consideradas folclóricas, passassem a ser discutidas a sério em meio à crise.

De Bolle reforça essa perspectiva. "Nosso objetivo é que, na saída da crise, se torne um programa permanente, e possa substituir outros programas de transferência de renda que temos hoje. Eu insisti que fosse chamado por outro nome. As pessoas não estão recebendo renda básica por causa da doença. A renda se tornou absolutamente fundamental para garantir a subsistência das pessoas. O Brasil é um país com uma parcela grande de pessoas vulneráveis. Faz sentido que tenha um programa deste tipo."

A economista lembra que essa discussão existe desde antes da pandemia, e o programa já foi testado, em etapas diferentes, em países escandinavos e na Nova Zelândia. "A ironia é que um dos proponentes dessa ideia, não com esse nome, foi Milton Friedman [economista idealizador do livre-mercado], que em 1967 propôs o que chamou de imposto de renda negativo. A ideia era exatamente a mesma."

Até então, medidas do tipo eram testadas de forma experimental. Hoje, são analisadas até mesmo pelos Estados Unidos, que estudam um valor de US$ 2 mil mensais (R$ 10 mil) por pessoa como forma de estimular a economia e conter a crise.