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"Bolsonaro debocha da situação de milhares de brasileiros" sem saneamento

3.fev.2017 - Esgoto depositado sem tratamento no bairro da Levada, Maceió. Dez anos após sancionada a Lei do Saneamento Básico, uma em cada três casas do país ainda não têm esgoto ligado a rede - Beto Macário/UOL
3.fev.2017 - Esgoto depositado sem tratamento no bairro da Levada, Maceió. Dez anos após sancionada a Lei do Saneamento Básico, uma em cada três casas do país ainda não têm esgoto ligado a rede Imagem: Beto Macário/UOL

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

28/03/2020 04h00

"O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Pula em esgoto, mergulha, e não acontece nada com ele".

A fala do presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira (26) em tentativa de minimizar os impactos do coronavírus no país, denota ignorância e negligência com relação às orientações e aos dados divulgados pelo Ministério da Saúde de seu próprio governo. Mostra também desconhecimento sobre a realidade de milhares de brasileiros que vivem sem acesso a água tratada e sistema de esgoto, e as consequências de um descaso histórico com esta questão.

Nos últimos cinco anos, o SUS (Sistema Único de Saúde) gastou mais de R$ 1 bilhão para tratar doenças provocadas pela falta de saneamento básico, segundo levantamento feito pelo Ministério da Saúde a pedido da Folha de S. Paulo.

São quase 100 milhões os brasileiros que, segundo o Instituto Trata Brasil, não têm acesso à coleta de esgoto, um dos fatores cruciais para a proliferação de doenças como diarreia, leptospirose e hepatites. A diarreia, por exemplo, é a segunda causa de morte em crianças menores de cinco anos no mundo. Além disso, há infecções diretamente relacionadas à água, como a dengue, chikungunya e febre amarela. Ao todo, são 27 as doenças provocadas pela falta de saneamento.

Em conversa com Ecoa, o especialista Alceu Galvão, mestre em engenharia hidráulica e saneamento básico e doutor em saúde pública pela Universidade de São Paulo (USP), considera um deboche a fala de Bolsonaro e explica o porquê das críticas recebidas pelo presidente.

Ecoa: O presidente Jair Bolsonaro disse que "brasileiro pula no esgoto e não acontece nada". Como você avalia essa fala?

Alceu Galvão: A declaração foi extremamente infeliz. Bolsonaro debocha da situação de milhares de brasileiros que enfrentam problemas de saúde relacionados à falta de acesso ao serviço de saneamento básico. A declaração vai na contramão das próprias estáticas do SUS, que mostram de internações a óbitos por doenças gastrointestinais.

Qual é a relação da pandemia do coronavírus à falta de saneamento básico?

O principal elemento de prevenção a essa doença é justamente a higiene pessoal. E, para isso, é necessário o quê? Água limpa, água tratada, no sentido de que a pessoa possa lavar as mãos, lavar o rosto, evitando assim que possa haver uma eventual contaminação. E veja que o nosso grande problema hoje em relação ao saneamento e ao coronavírus é que uma boa parte da população, que é a população mais vulnerável, ou não tem acesso aos serviços de tratamento de água e coleta de esgoto, ou está localizada nas pontas, em que não há o abastecimento contínuo. Isso se reflete claramente nos assentamentos precários, favelas e comunidades, em que moradias irregulares não contam com os serviços de água e esgoto. Há uma ligação direta entre essa ausência de saneamento básico e a vulnerabilidade dessas pessoas que estão ali, vivendo nesses locais.

Como você avalia o posicionamento de Bolsonaro com relação à pandemia?

O posicionamento do governo com relação ao coronavírus, e até mesmo essa fala sobre esgoto e saneamento básico, tem demonstrado ser claramente uma estratégia política de mudar o foco das discussões. Não é falta de conhecimento. Entra no campo da má fé, de tentar cruzar informações e dar dados falsos para confundir a população.

Quais são os maiores problemas que a falta de saneamento básico pode causar?

Temos a questão da saúde pública, a vida é essencial. Mas também temos a questão econômica. Sem saneamento básico, você não consegue atrair, por exemplo, novos empreendimentos, ter turismo. E turismo é um gerador de renda, de empregos. E hoje também há outro problema que são os eventos climáticos extremos. Então, na medida em que contaminamos nossos mananciais, os rios, as nossas grandes represas, teremos uma dificuldade maior de tratar essa água e distribuir para a população em geral. Outra questão é a valorização das propriedades — propriedades que têm saneamento tem um valor de renda muito maior do que aquelas que não têm. Ou seja, o saneamento básico é fundamental na vida e na economia das pessoas.

E em relação às doenças infecciosas?

Estamos convivendo há muito tempo com a questão da dengue e do chikungunya. Um dos principais pontos para que o mosquito possa se proliferar acontece na ausência de um abastecimento contínuo. Por quê? Porque as pessoas são obrigadas a estocar água em casa. Geralmente essa reserva é inadequada, e ajuda na proliferação do mosquito. O evento mais crítico de doença associada à falta de saneamento básico em nosso dia a dia é a transmitida pelo mosquito Aedes aegypti.

Como reverter a falta de saneamento básico no país?

No caso dos assentamentos precários, o que se falta são definições de políticas públicas concretas, porque há o problema da titularidade do imóvel, ou seja, em geral assentamentos que foram invadidos não se tem a posse do terreno. Então, os serviços de saneamento acabam não chegando, devido à falta de uma formalização legal.

É fundamental que nós tenhamos políticas públicas diretamente relacionadas aos assentamentos precários. Sem isso, o problema de falta de coleta de esgoto, tratamento de água, só vai se potencializando na medida em que há um aumento dessas moradias no local.