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Afeto e capacitação são desafio de projetos para mulheres trans na prisão

Duda Salabert (dir.) com participantes da ONG Transvest, de Belo Horizonte (MG) - Divulgação
Duda Salabert (dir.) com participantes da ONG Transvest, de Belo Horizonte (MG) Imagem: Divulgação

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

19/03/2020 04h00

Imagine como teria de ser a sua vida para que você se sentisse mais feliz dentro de uma prisão brasileira? Esse é o sentimento de muitas travestis e transexuais, mesmo depois de colocar na balança a privação de direitos básicos e o clima opressor do sistema carcerário.

"Dependendo da unidade em que estão, muitas se sentem mais livres em expressar sua identidade de gênero, com cabelo comprido, roupa, unha pintada. Isso não quer dizer que ficar presa é bom, quer dizer que a nossa sociedade é tão cruel com as travestis e transexuais que o contexto de encarceramento dá uma liberdade maior do que viver fora dele", explica Gustavo Passos, membro da Rede Internacional de Trabalho com Pessoas LGBTI+ em Privação de Liberdade.

Dentro das prisões, as mulheres trans têm três refeições diárias, onde dormir e contam com a companhia de parceiros. Em liberdade, muitas não conseguem emprego ou moradia e, com frequência, a prostituição acaba sendo a única alternativa que encontram para ter renda. Vale ainda lembrar que o Brasil é o país onde se registra recorde de assassinatos de pessoas trans, segundo levantamento da rede "Transgender Europe".

A violência à qual elas estão sujeitas nas ruas do país também é internalizada e manifestada no sistema prisional.

Uma vez que o Estado nos coloca em espaços prisionais masculinos, superlotados, estamos sujeitas a inúmeras violências. Primeiro a física, como agressões e estupros por parte de outros detentos e de agentes carcerários. A segunda é a moral, já que transexuais não têm sua identidade de gênero respeitada. A terceira é estética. Embora exista no Brasil uma resolução que permita o uso de hormônios, na prática, isso não acontece e causa um dano psicológico imenso para a população trans.

Duda Salabert, ativista transexual e fundadora da ONG Transvest, que trabalha com educação para a comunidade trans de Belo Horizonte.

Sem romantizar o cotidiano prisional, a relação das mulheres trans com o cárcere é dicotômica. E um fator é especialmente relevante neste contexto. Ali, elas encontram algo escasso em suas vidas: afeto.

Em um ambiente estruturalmente masculino, travestis e mulheres trans heterossexuais têm em relacionamentos com os colegas presos uma forma de sobrevivência. Não do dia a dia na prisão, mas de si mesmas.

"Muitas acabam se envolvendo com homens que estão lá, presos, e chegam a casar. Isso tem um impacto muito grande na saúde mental dessa população. Significa que, mesmo abandonadas pela família, elas conseguiram criar um laço afetivo. O que poderia não acontecer fora do sistema penitenciário", diz Gustavo Passos.

Isso ajuda a explicar porque, mesmo após decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em 2019, autorizando presas transexuais a cumprir pena em penitenciárias femininas, muitas prefiram permanecer em cadeias masculinas.

Oficinas de afeto

A situação de abandono vivida por travestis e transexuais é refletida nas filas intermináveis de visitas em frente às prisões - repletas de mães, irmãs e esposas. Dos presos. Somente 40% delas tem visita cadastrada nos registros das instituições, segundo o relatório "LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento", do governo federal. E isso não significa que os cadastros virem, de fato, visitas.

Se você não conta com o 'jumbo', está ferrada. É preciso se virar lá dentro. Tudo vira moeda de troca: de escova de dente a cigarros, de esmalte a tinta de cabelo.

Jumbos são kits de sobrevivência com alimentos, roupas, calçados, itens de higiene e outros produtos que internos recebem de familiares. A fala acima, de uma jovem de 27 anos, que passou um ano e meio detida na penitenciária feminina do Butantã, zona oeste de SP, deu o tom de uma roda de conversa sobre afeto e sexualidade no cárcere, promovida pelo coletivo Libertas, em São Paulo, e fortalece a reflexão sobre a necessidade de se criar elos dentro e fora do sistema penitenciário.

Foi pensando nas dificuldades enfrentadas pela população LGBT que Juliana Zaroni deu início ao Beleza no Cárcere, curso profissionalizante de maquiagem. O projeto surgiu como uma forma de elevar a autoestima de travestis e transexuais na prisão, mas também de capacitá-las para o mercado de trabalho.

A iniciativa, feita com a ajuda de maquiadores profissionais voluntários e doações de itens de maquiagem, começou no ano passado na penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos, em parceria com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). A ideia de Juliana agora é aumentar o alcance para outros presídios e oferecer o projeto também para quem saiu da prisão.

Assim como o Beleza no Cárcere, o projeto Diversidade à Mesa também partiu de uma iniciativa da sociedade civil. O chef Léo Bahiens procurou a Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania de São Paulo (CRSC) e propôs um curso profissionalizante voltado para a comunidade LGBT com o objetivo de formar auxiliares de cozinha. O Diversidade à Mesa já teve três edições, e em maio começa a sua primeira turma com egressos.

Uma das que passou pelo projeto foi Stephany Nogueira, 53. "Todos os projetos de que pude participar dentro do presídio tiveram uma importância única na minha vida. Todos me trouxeram amizades verdadeiras. E quando falo isso, foi porque continuaram além dos muros do sistema. Sou amiga de muitos voluntários. Hoje encontro com eles, saio, vou tomar café. Essas pessoas significaram demais para mim. Lá dentro, foram eles que fizeram com que eu me sentisse valorizada", diz ela, que cumpriu pena de 8 anos e meio por associação ao tráfico de drogas.

Vida dura lá fora

Stephany Nogueira conseguiu emprego após participar do projeto Programa Operação Trabalho, da Prefeitura de São Paulo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Stephany Nogueira, 53, trabalhou em salões de beleza antes da transição
Imagem: Arquivo Pessoal

Apesar da importância dessas ações, Gustavo Barros reconhece que não existe garantia de que travestis e mulheres trans capacitadas dentro de presídios consigam emprego em liberdade.

Stephany havia trabalhado por 30 anos em salões de beleza, antes da transição, e sentiu na pele o preconceito do mercado de trabalho com mulheres trans.

É difícil para qualquer egressa conseguir trabalho. Para transexuais, então, essa dificuldade dobra. No presídio, fiz diversos cursos e oficinas. Mas, mesmo assim, não consegui emprego nessas áreas.

Stephany Nogueira, 53

Para assegurar perspectivas mais concretas para a população trans egressa do sistema penitenciário, o especialista sugere que gestões estaduais deveriam priorizar maneiras de incluir essas pessoas no mercado de trabalho por meio de convênios e parcerias com grandes empresas, por exemplo.

Uma dessas iniciativas é o POT (Programa Operação Trabalho), da Prefeitura de São Paulo, que ajuda a população de baixa renda e pessoas em situações de vulnerabilidade a ingressar no mercado de trabalho. Foi por meio deste projeto que Stephany, enfim, conseguiu uma vaga, no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), da Sé, centro de São Paulo.

"Hoje, trabalho seis horas por dia, ganho menos que um salário mínimo, mas consigo sobreviver fora das ruas. Isso, no final, é o que conta como mais importante", afirma.