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Como Paulo Freire é visto pelos melhores educadores do Brasil

Patrono da educação, Paulo Freire foi homenageado pela escola de samba Águia de Ouro, campeã do Carnaval de SP - Reprodução
Patrono da educação, Paulo Freire foi homenageado pela escola de samba Águia de Ouro, campeã do Carnaval de SP Imagem: Reprodução

Paula Rodrigues

de Ecoa

27/02/2020 04h00

Nesta terça-feira (25), os membros da Águia de Ouro puderam comemorar pela primeira vez, nos 43 anos da escola de samba, o título de campeã do Carnaval de São Paulo. A agremiação da zona oeste da capital pisou no sambódromo do Anhembi na madrugada de domingo (23) para contar a história do desenvolvimento do conhecimento humano — desde a época pré-histórica até um possível futuro sustentável e tecnológico.

O desfile foi considerado o mais politizado deste ano. E muito porque, quando a quarta ala da escola entrou na avenida para falar da importância da Educação, logo foi possível avistar uma gigantesca alegoria com a representação do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997) vestindo roupas coloridas e segurando um livro em que era possível ler: "não se pode falar de educação sem amor."

A escolha de homenagear Freire no desfile da Águia de Ouro foi um reflexo dos ensinamentos deixados por ele que contribuem até hoje para a formação educacional mundial. Como foi o caso do professor de educação física Luiz Gustavo Rufino, 30.

Enquanto caminhava pela biblioteca da Universidade de Montreal, localizada no Canadá, onde cursou parte do doutorado em 2017, Luiz avistou um único autor brasileiro entre os títulos de obras escritas por estrangeiros. Lá estava, em letras pretas na capa vermelha chamativa da versão em inglês do livro "Pedagogia do Oprimido", o nome do educador pernambucano Paulo Freire.

Ao redor do mundo, "Pedagogia do Oprimido", obra escrita por Freire em 1968, é a terceira com mais menções em trabalhos acadêmicos. São quase 73 mil citações, segundo pesquisa realizada pela Escola de Economia e Ciência Política de Londres, em 2016. De acordo com o projeto Open Syllabus, o mesmo título é também o único brasileiro a configurar a lista de 100 livros mais pedidos por universidades estrangeiras.

No Brasil, porém, apesar de ser homenageado por escola de samba e de ser, desde 2012 o patrono da educação brasileira declarado pelo Congresso Nacional, a situação muda um pouco. Formalmente, os ensinamentos nunca estiveram presentes na grade curricular de escolas brasileiras. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular), em atividade para o ensino fundamental desde 2017 e para o ensino médio desde 2018, por exemplo, não cita em momento algum o nome do educador pernambucano.

Por isso, o nome de Paulo Freire não estava presente nas salas de aula do curso de geografia da USP (Universidade de São Paulo) quando Mariana Martins Lemes, 29, se graduou em 2013. Também não contou com os ensinamentos freireanos quando voltou para realizar mestrado de geografia humana de 2014 até 2017 na mesma universidade.

Em comum, Luiz e Mariana têm duas coisas: hoje são professores de escolas públicas — Luiz de educação física e Mariana de geografia —, e, em outubro do ano passado, foram eleitos, junto a mais oito profissionais ao redor do país, os dez melhores educadores de 2019 pela premiação Educador Nota 10, criada em 1998 pela Fundação Victor Civita. Todos receberam o reconhecimento por desenvolverem trabalhos inovadores que geram bons resultados nas escolas em que atuam.

Águia de ouro - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Carro alegórico que homenageava o educador Paulo Freite também trazia crianças segurando diplomas e vestindo becas
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Então, em meio à homenagem carnavalesca campeã da Águia de Ouro, aos elogios de um lado e críticas de membros do governo federal, incluindo o próprio presidente da república Jair Bolsonaro (sem partido), que no final de 2019 chamou o educador de "energúmeno", vale a pergunta:

O que pensam os colegas de profissão de Paulo Freire sobre os ensinamentos deixados por ele? Sete dos dez melhores educadores de 2019 compartilham aqui a visão de quem está todos os dias dentro de salas de aulas espalhadas pelo Brasil sobre os ensinamentos freirianos.

Luiz Gustavo Ruffino, 30, professor de educação física

Educador nota 10 - Luiz - Fundação Victor Civita/Divulgação - Fundação Victor Civita/Divulgação
O professor de educação física Luiz Gustavo Rufino, 30, é um dos melhores educadores de 2019
Imagem: Fundação Victor Civita/Divulgação
Por que está entre os melhores educadores: Com o projeto "Ressignificando as visões sobre o corpo", desenvolveu uma metodologia de ensino utilizando práticas de circo, atletismo e ginástica que visa fazer com que o aluno repense sobre a imagem que construiu do próprio corpo e do corpo do outro.

"Paulo Freire é um dos maiores pensadores da história da educação mundial. Não apenas seu trabalho é reconhecido mundialmente, sendo um dos escritores mais lidos no campo educativo, como também é motivo de orgulho por todos aqueles que honram o nosso país. Esse reconhecimento veio de sua capacidade ímpar de escrever e dialogar de forma didática, simples e muito humana.

Paulo Freire, entre outras coisas, faz parte de um movimento importante no mundo da educação no que se refere à valorização e reconhecimento dos alunos. Se vivo estivesse, ele possivelmente não iria impor e adoção de seu pensamento, justamente por acreditar em uma educação voltada para a prática da liberdade e que valoriza o protagonismo dos professores.

Contudo, nos últimos tempos tem crescido um tipo de narrativa que conclama o pensamento de Paulo Freire como sinônimo de todos os males que aflige a educação brasileira, mas Paulo Freire está menos presente na educação brasileira do que se imagina. Ninguém é obrigado a seguir Paulo Freire ou repetir seus ensinamentos como um mantra.

Ele próprio nunca quis isso. No entanto, os ataques atuais não são fundamentados, sendo baseados na superficialidade de achismos e preconceitos que só fere a própria educação brasileira."

Mariana Martins Lemes, 29, professora de geografia

Educador nota 10 - Mariana - Fundação Victor Civita/Divulgação - Fundação Victor Civita/Divulgação
Mariana Martins Lemes, 29, professora de geografia da escola estadual Professor Jácomo Stávale, em São Paulo (SP)
Imagem: Fundação Victor Civita/Divulgação
Por que está entre os melhores educadores: Criou o projeto "Agricultura no Brasil", em que a partir da pergunta: "Qual modelo agrário deveria receber mais incentivos do governo federal brasileiro nos próximos anos: o agronegócio ou a agricultura sustentável?", os estudantes passaram a pesquisar e apresentar os próprios pontos de vistas e questionamentos sobre o tema.

"Paulo Freire foi um pensador que considerou criticamente as bases da instituição escolar, escancarando suas fragilidades, mas sempre reconhecendo seu potencial transformador para a sociedade brasileira. É uma questão aparentemente simples, mas fundamental: a educação, quando é efetiva, liberta. Essa, para mim, é a principal contribuição de Paulo Freire para a prática docente.

Infelizmente, porém, muitos profissionais nas escolas têm um conhecimento ainda superficial do autor, e não sabem como repensar a sua prática a partir de seus ensinamentos. Assim, fica parecendo que Paulo Freire está presente na prática dos professores brasileiros, mas não é bem assim. Há ainda muito mais da educação bancária sendo praticada diariamente nas escolas.

Para mim, o cenário atual parece formado de ecos do que foi dito durante o regime militar. As críticas, inclusive, são muito parecidas. Se hoje se fala em ideologia esquerdista nas escolas, antes se falava em método comunizante.

Há diferenças importantes, é claro, mas penso que o objetivo continua o mesmo: impedir que os alunos mais desfavorecidos tenham acesso a uma educação de qualidade.

A abordagem de Paulo Freire tem como objetivo principal libertar o estudante, garantindo-lhe autonomia para pensar criticamente a sua realidade e transformar o mundo. E isso sempre assusta governos com tendências totalitárias."

Joice Maria Lamb, 47, coordenadora pedagógica

Educador nota dez - Joice - Divulgação - Divulgação
Após 28 anos como educadora em escolas gaúchas, a coordenadora pedagógica Joice Lamb, 47 foi eleita a melhor educadora de 2019
Imagem: Divulgação
Por que está entre os melhores educadores: Desenvolveu o projeto "#aprenderecompartilhar - Escola Inovadora", em que passou a envolver todos que trabalham na escola, os alunos, os pais das crianças e a comunidade para decidir de forma democrática quais os melhores caminhos para facilitar o processo de aprendizado dos estudantes.

"A essência do que Paulo Freire diz é extremamente simples, mas ao mesmo tempo muito complexa. Simples porque fala de olhar para si mesmo, de partir o conhecimento a partir do seu entorno e ter um olhar sincero e crítico para isso. e complexo porque até hoje pouquíssimas escolas conseguiram compreender isso é transformar essas ideias numa proposta pedagógica consistente.

É muito difícil realmente respeitar o ser e o conhecimento pré existente nos estudantes.

A nossa proposta do #aprenderecompartilhar bebe na fonte de Paulo Freire. E fazemos isso com muitos humildade e respeito, sabendo que não conseguimos alcançar nem a metade de tudo o que discutia em seus livros, mas entendendo que o pouco que conseguimos colocar em prática é muito importante.

Não há como tirar Paulo Freire da escola e do lugar de valor que ele ocupa. Aqueles que gritam, o fazem para o vento ou para os seus.

Quem entende realmente de educação nunca poderia pensar nisso. Estamos amargando um retrocesso perigoso para a educação. Mas, eu estarei sempre na luta, carregando o Freire nas mãos, nas palavras, nas ações, na memória e no coração."

Rodrigo Seixas, 33, professor de sociologia

Educador nota 10 - Rodrigo - Fundação Victor Civita/Divulgação - Fundação Victor Civita/Divulgação
Rodrigo Seixas, 33, é professor de sociologia da escola Professora Antonieta Salinas De Castro, em Barra Mansa (RJ)
Imagem: Fundação Victor Civita/Divulgação
Por que está entre os melhores educadores: Desenvolveu o projeto "Um Passeio pelos Tempos Líquidos", em que os alunos relacionam os ensinamentos do sociólogo polonês Zygmunt Baumann sobre a fragilidade dos relacionamentos atuais à situações reais vivenciadas por eles.

"A educação só tem sentido se for, de fato, libertadora. A prática pedagógica do professor, ela tem que ser, sobretudo, uma prática emancipatória, na qual leva o educando a questionar os porquês do mundo.

Não se pode haver uma distância entre a educação e a realidade social. A escola está inserida no mundo, e por isso ela tem o dever de oportunizar uma reflexão deste mundo, não se abster dele. E isso, Paulo Freire nos ensinou. A prática da própria escola, deve ser uma prática que oportunize a reflexão e, consequentemente, a transformação.

A todo momento em que um professor traz para sala de aula práticas de metodologia ativa, que entrega ao aluno o protagonismo do processo de aprendizagem, que o auxilia na compreensão de mundo, que traz a sala de aula não apenas como espaço de memorização, mas de reflexão... A cada momento desses, o professor traz Paulo Freire para sala de aula.

Aqueles que condenam os princípios de Freire e querem o extirpar da educação brasileira, assim o fazem por dois motivos possíveis: ou por ignorância (no sentido de não compreender o educador e suas contribuições) ou por interesse."

Arabelle Calciolari, 36, professora de língua inglesa

Educador nota dez - Arabelle - Fundação Victor Civita/Divulgação - Fundação Victor Civita/Divulgação
Arabelle Calciolari, 36, é professora de língua inglesa há 16 anos em escolas públicas de Jundiaí (SP)
Imagem: Fundação Victor Civita/Divulgação
Por que está entre os melhores educadores: Ensina sobre cultura e história estrangeira por meio de canções dos Beatles, com o projeto "Os Beatles - seu tempo e sua história".

"Os projetos que eu faço acabam indo ao encontro das ideias de Paulo Freire porque a minha luta diária é para que os meus alunos de escola pública tenham as mesmas oportunidades que os alunos de escolas particulares.

Se o governo prestasse atenção realmente no que está acontecendo na educação, eles veriam que o problema não é o Paulo Freire. O problema é o não Paulo Freire. É o não aplicar os ensinamentos dele na prática.

O problema é que se fala de Paulo Freire, muitos acham lindo que Paulo Freire falou e fez, mas na hora de dar aula, vão para uma metodologia totalmente tradicional.

Eu acho que eu tô tentando ao máximo possível ter uma escuta atenta com meus alunos, de ouvi-los, de pensar no que eles precisam, na necessidade dele. Eu acho que é preciso ter mais os ensinamentos de Freire nas escolas: com aquele respeito, aquele olhar para o aluno, ver a necessidade deles, trabalhar conforme o interesse e necessidade de cada um."

Juliana Rohsner, 36, diretora

Educador nota dez - Juliana - Fundação Victor Civita/Divulgação - Fundação Victor Civita/Divulgação
Juliana Rohsner, 36, é diretora da EEMF (escola estadual de ensino fundamental e médio) Jones José do Nascimento, em Serra (ES)
Imagem: Fundação Victor Civita/Divulgação
Por que está entre os melhores educadores: Criou o projeto "Gestando sonhos, alcançando metas!" que ela desenvolveu na base do diálogo com a comunidade ao redor, na tentativa de descobrir quais as demandas e necessidades a serem atendidas pela escola.

"Vale lembrar que Paulo Freire foi um grande educador, reconhecido internacionalmente e Patrono da Educação Brasileira. Escreveu uma vasta bibliografia e por suas pesquisas, recebeu 41 títulos de doutor honorário em diversas universidades do mundo, inclusive Harvard e Oxford.

Ele acreditava nos estudantes, sabia que, ao chegar na escola, cada um traz seus conhecimentos, sua cultura e tem sua própria leitura de mundo. Por isso valorizava a relação horizontal e dialógica entre professores e estudantes e lutava para que todos tivessem acesso ao conhecimento.

Ler, estudar e me apropriar dos ensinamentos de Freire mudou a minha maneira de ver o mundo e as relações nele estabelecidas. Certamente meu jeito de trabalhar na educação é motivado por reconhecer os saberes de meus estudantes.

Infelizmente, na história da Educação Brasileira observamos diversos momentos em que é mais fácil culpar alguém do que de fato oferecer condições dignas aos professores e estudantes para que se possa garantir os direitos preconizados na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, no Estatuto da Criança e do Adolescente entre outras legislações"

Patrícia Barreto, 36, professora de língua portuguesa

Educador nota dez - Patrícia - Fundação Victor Civita/Divulgação - Fundação Victor Civita/Divulgação
A professora de língua portuguesa Patrícia Barreto, 36, criou o jogo "Argument(ação): protagonismo juvenil" para ensinar pensamento crítico aos alunos
Imagem: Fundação Victor Civita/Divulgação
Por que está entre os melhores educadores: Desenvolveu um jogo chamado "Argument(ação): protagonismo juvenil", que nasceu como forma de estimular os estudantes a pensarem em tipos de argumentos e soluções para problemas sociais do lugar onde cada um mora.

"Paulo Freire é, inquestionavelmente, um dos maiores estudiosos e pesquisadores da Educação no mundo. Seus ensinamentos perpassam os limites geográficos, as diversidades culturais, desigualdades sociais, até o próprio tempo, pois estão pautados no diálogo. Aquilo que nos humaniza - o pensamento consciente reflexivo - é construído por meio do diálogo, por isso, quando Freire centra seus ensinamentos nesse ponto ele está vivificando em nós a nossa própria essência. Negá-los é um suicídio humanístico.

As vozes de Freire ecoam por todo o meu fazer pedagógico: A forma como defino Aprendizagem (um ato revolucionário); como concebo a educação (construção coletiva capaz de promover a liberdade e a autonomia de indivíduos); como idealizo a docência - mediadora de saberes), e como vejo o estudante (ser transformado pela educação e capaz de mudar o mundo).

Não quero aqui afirmar que ressalvas a propostas criadas por Freire não possam ser feitas, a crítica construtiva é um convite a uma reflexão, mas o que tenho visto da atual gestão, infelizmente, está longe desse contexto.

Os xingamentos, o menosprezo sem nenhum embasamento acadêmico são condutas que divergem das expectativas que projetamos para as lideranças, especialmente, as de um país. "