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"Quando subi o morro, percebi que tinha muito a aprender", diz Flávio Canto

Flávio Canto fundou em abril de 2003 o Instituto Reação - Divulgação/Instituto Reação
Flávio Canto fundou em abril de 2003 o Instituto Reação Imagem: Divulgação/Instituto Reação

Anderson Baltar

De Ecoa

17/12/2019 04h00

Quem acompanha o esporte olímpico brasileiro conhece bem o currículo de Flávio Canto, 44. Em quase 20 anos de carreira no judô, acumulou vários títulos e conquistou a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. Porém, milhares de famílias de comunidades carentes têm muito mais motivos para aplaudir a trajetória do comentarista e apresentador do SporTV. Com 16 anos de existência, o Instituto Reação, fundado por ele, já parte para a segunda geração de lutadores e, sobretudo, cidadãos, formados em suas 10 unidades espalhadas pelo Rio de Janeiro e Cuiabá.

Nascido em uma família de classe média carioca, Flávio Canto praticava ações sociais desde o fim da adolescência, "Eu costumava distribuir roupas e alimentos para moradores de rua, brinquedos em orfanatos. Mas percebi que isso não estava adiantando muita coisa. Hoje reconheço que foi a minha primeira onda, um bom começo para desenvolver minha responsabilidade social", relata.

A "segunda onda" de Canto teve início em 2000. Ele já colecionava duas medalhas em Jogos Pan-Americanos (bronze em Mar Del Plata - 1995 e prata em Winnipeg - 1999). Porém, foi derrotado na seletiva para os Jogos Olímpicos de Sidney. A dor da derrota promoveu uma verdadeira transformação na vida do judoca. "Para encarar a situação, resolvi experimentar uma coisa diferente e fui dar aula de judô voluntariamente em um projeto da Universidade Gama Filho, na Rocinha", lembra.

A experiência de subir pela primeira vez o morro foi decisiva para o futuro de Canto. "Costumo dizer que eu subi o morro de faixa preta e desci de faixa branca. Cheguei lá pensando que iria fazer a criançada vir para o meu mundo e logo vi que, pelo contrário, eu é que tinha muito mais a aprender". Por pouco mais de dois anos, enquanto o projeto tinha apoio da Prefeitura do Rio, Canto deu aulas de judô na comunidade, considerada a maior favela da América Latina.

Ensinar a se levantar dos golpes da vida

O Instuto Reação conta 1.600 alunos nas escolinhas de judô - Divulgação/Instituto Reação  - Divulgação/Instituto Reação
Atualmente, o Instituto Reação conta 1.600 alunos nas escolinhas de judô
Imagem: Divulgação/Instituto Reação
Com o fim do apoio, o projeto foi desativado e, para que as aulas tivessem sequência, Canto conseguiu o apoio de um grupo de 40 amigos e fundou, em abril de 2003, o Instituto Reação. Durante um ano, os trabalhos foram financiados por essa equipe, até que os primeiros patrocinadores apareceram. O nome do Instituto vem do momento que, na opinião do ex-judoca, é o mais importante da luta: "É fundamental saber se levantar após um golpe e voltar para o combate ainda mais fortalecido".

E é justamente essa a filosofia que norteou o Instituto Reação desde os seus primeiros momentos: em meio aos golpes de judô, preparar crianças e adolescentes para os desafios da vida, formando faixas pretas dentro e fora do tatame. "Costumo dizer que passado não é destino. A gente luta contra a falta de oportunidades na largada fazendo todo mundo acreditar que tem potencial para ser o que quiser", afirma Canto.

No principal projeto, o "Reação Faixa Preta", o Instituto se vale de uma metodologia chamada "O Caminho" em que os alunos são incentivados a conquistar cada um dos seis valores defendidos pelo Reação: coragem, humildade, disciplina, honra, excelência e solidariedade. Em cada semestre, um desses valores é ensinado por meio de três estágios: construir, conquistar e compartilhar. Ao fim do semestre, o aluno recebe um patch (selo no quimono), que indica o valor adquirido. "Cada criança tem, de forma visível, todo o seu caminho de construção", explica o ex-judoca.

Trazendo medalhas para o Brasil

Se, atualmente, a maior parte do trabalho se destina à formação de cidadãos, com 1.600 alunos nas escolinhas de judô, a preparação de atletas de alto rendimento também está no radar do Instituto Reação. Com cerca de 200 participantes, o projeto olímpico comemora resultados visíveis. O mais celebrado a medalha de ouro de Rafaela Silva, cria da Cidade de Deus, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.

No Instituto Reação o aluno recebe um patch (selo afixado no quimono) a cada final de semestre - Divulgação/Instituto Reação  - Divulgação/Instituto Reação
No Instituto Reação o aluno recebe um patch (selo afixado no quimono) a cada final de semestre
Imagem: Divulgação/Instituto Reação
Com a coordenação de Geraldo Bernardes, treinador com experiência na seleção brasileira, muitos jovens valores surgem a cada dia. Anna Belém, 17, conquistou em setembro o Campeonato Mundial sub-18, no Cazaquistão. No início de dezembro, sete atletas do Reação ganharam medalhas no Campeonato Brasileiro, disputado em Balneário Camboriú (SC), com direito ao bicampeonato de Yasmim Lima na categoria abaixo de 52 kg.

Flávio Canto afirma que o alto desempenho sempre foi um dos objetivos do Instituto. E que foi preciso romper uma antiga crença para que o projeto andasse. "Quando começamos, ainda havia uma cultura de que você não podia trabalhar com alto rendimento em um projeto social porque teoricamente iria excluir um grupo que já era excluído. Porém, apostamos em ensinar a garotada a lutar para ganhar e para perder, porque a vida é feita de vitórias e derrotas e que não podemos alimentar o vitimismo", explica.

Segundo Canto, o esporte olímpico foi uma forma de empoderar a garotada para enfrentar o cotidiano difícil de suas comunidades. E uma ferramenta para reverter o preconceito social: "A criançada ia para as competições e ouviam que 'chegaram os favelados'. E eu falava: 'vamos para dentro dos playboys'. E deu certo. Hoje temos um trabalho que abarca várias classes e revela muitos atletas. Muitos meninos que não tinham perspectiva de vida hoje rodam o mundo lutando".

O tatame mudando vidas

Na vida de Rodrigo Borges, 38, existe um divisor de águas. O dia que, em 2000, quando funcionário da Associação de Moradores da Rocinha, recebeu um convite para trabalhar no núcleo esportivo que a Universidade Gama Filho abriria na comunidade. Então lutador de jiu jitsu, Rodrigo iria estagiar nas aulas de judô ministradas por Flávio Canto. Nascia ali uma parceria que já dura 19 anos.

"Sempre sonhei em lutar judô - ganhei um quimono na infância, mas nunca tive grana para aprender. Com o Flávio, aprendi tudo. Comecei limpando e montando o tatame e coordenando as inscrições da garotada. Mas, logo aprendi a lutar e, anos depois, tornei-me faixa preta", relata Rodrigo, que em 2003 já integrava a primeira equipe do Reação e, três anos depois, começou a ensinar os segredos da arte marcial.

Rodrigo Borges é formado em Educação Física e hoje trabalha no Reação com crianças de 4 a 9 anos de idade - Divulgação/Instituto Reação - Divulgação/Instituto Reação
Rodrigo Borges é formado em Educação Física e hoje trabalha no Reação com crianças de 4 a 9 anos de idade
Imagem: Divulgação/Instituto Reação
Por conta da atuação no projeto, a vida de Rodrigo mudou. Com uma bolsa, conseguiu concluir, em 2007, a faculdade de Educação Física. No ano seguinte, tornou-se faixa preta de judô. Atualmente, trabalha no Reação com crianças de 4 a 9 anos de idade. "Eu tinha objetivos bem mais modestos para minha vida e o Reação me apresentou outro mundo. Hoje eu posso mostrar para as crianças que existe uma outra vida que o judô pode ser algo prazeroso para elas. Hoje, temos vários faixas pretas formados que poderiam ter ido para o tráfico. Os pais vêm o Reação como um caminho para seus filhos", orgulha-se.

Aposta na transparência de gestão

Flávio Canto reconhece que sua visibilidade na mídia tem importância para a manutenção da ONG. Mas salienta que, sem uma boa administração e transparência, nada seria possível. "Trabalhar na TV abre portas, mas temos uma equipe muito engajada, com cinco conselheiros, quatro diretores e 74 funcionários. Aproximadamente 80% de nossas receitas vêm de leis de incentivo e cada centavo é auditado e tem balanço publicado", destaca. Em 2018, o Instituto Reação fez parte da lista das 100 melhores ONGs do país e venceu na categoria Esporte o prêmio oferecido pela consultoria Mundo Que Queremos, o Instituto Doar e a Rede Filantropia.

O ex-judoca vive agora o que chama de "terceira onda". Após fazer cursos de gestão e liderança e passar a conviver mais de perto com pessoas do mercado financeiro, no início do ano ele abriu uma empresa com viés social. Com metodologia focada na formação sócio-emocional por meio das lutas marciais, Canto abriu unidades de ensino em escolas particulares do Rio de Janeiro, que atuam nos horários de contraturno. "Uma parte da receita é investida em projetos sociais que envolvam lutas. Meu objetivo é que, a cada aluno particular matriculado, possamos bancar um em um projeto", explica.

O grande diferencial dessa metodologia, que leva seu nome, é que ao final dos semestres os alunos das escolas particulares lutem, irmanados nas mesmas equipes, com os oriundos dos projetos sociais: "Você quebra o paradigma que a responsabilidade social da escola privada é visitar orfanato. Na competição por equipes, um depende do outro para vencer. Estamos migrando de um projeto social para um projeto de sociedade".

Para conhecer melhor

Pelo site, é possível conhecer todos os projetos da ONG e fazer doações. Na página também é realizado o cadastramento de voluntários para os seus projetos. A maior demanda no momento é para oficinas pedagógicas, reforço escolar, fotografia e tradução. O telefone do Instituto Reação é (21) 3681-2768.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado na reportagem, Flávio Canto foi medalhista de bronze em Atenas, e não de prata. O erro foi corrigido.