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Psicóloga faz posto de saúde em favela e ensina: não queira abraçar o mundo

Julia Rangel, a psicóloga que criou a Rede Postinho de Saúde em comunidade do Rio - Arquivo Pessoal
Julia Rangel, a psicóloga que criou a Rede Postinho de Saúde em comunidade do Rio Imagem: Arquivo Pessoal

Diana Carvalho

de Ecoa

18/10/2019 07h00

De um lado, um consultório bem localizado no Leblon, área nobre do Rio de Janeiro. De outro, um imóvel abandonado numa favela, sujo, com as paredes cheias de mofo e o telhado prestes a ruir. Qual você escolheria? A reposta pode parecer óbvia, mas a psicóloga Julia Rangel, 36, escolheu os dois. Primeiro o perrengue, depois o conforto.

Julia criou no segundo endereço um posto de saúde que já ofereceu, gratuitamente, mais de 20 mil atendimentos na área de nutrição, fisioterapia, medicina e mediação familiar para mulheres que vivem nas comunidades do Cantagalo, Pavão-Pavãozinho.

Em 2010, a jovem recém-formada, nascida e criada em Ipanema, tinha uma certeza: queria trabalhar com o social. Como? Foi descobrir subindo, na cara e na coragem, o Morro do Cantagalo. Por lá, encontrou o presidente da Associação de Moradores, Luiz Bezerra, e ofereceu atendimento voluntário.

"Eu nunca tinha subido numa favela, não sabia como era. Quando encontrei com Bezerra, ele me falou que a região era carente de todo e qualquer tipo de serviço na área de saúde. Pensei: 'Sem problemas, vou chamar mais gente'".

Julia conseguiu o apoio de quatro amigos, todos voluntários, um ortopedista, uma fisioterapeuta, uma fonoaudióloga e uma enfermeira. De quebra, uma casa abandonada foi cedida para os atendimentos. Tudo dando certo? Nem de longe. Nascia, ali, a Rede Postinho de Saúde: um ambiente repleto de boa vontade, mas completamente precário.

Rede Postinho de Saúde antes da reforma - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A sede da Rede Postinho de Saúde antes da reforma, no Morro do Cantagalo, no Rio
Imagem: Arquivo Pessoal

"Primeiro, a casa estava em um estado lamentável. Toda mofada, paredes sujas, sem pintura, com baratas, portas quebradas e teias de aranha. Tivemos que fazer um mutirão de limpeza. Depois, não tínhamos equipamentos suficientes, cadeiras, nada. O que comprava pra minha casa, levava pra lá. Não tínhamos secretária, funcionários... Limpávamos o chão, o banheiro e ainda atendíamos os pacientes. Minha mãe chegou a ficar na recepção para ajudar", relembra.

Erro Acreditar que iniciativas que promovem impacto positivo podem ser feitas do dia para a noite, sem planejamento e apenas com amor e dedicação

Aprendizado Organizar uma rede de apoio e só começar a parte prática com equipe e local bem estruturados

"O que essa patricinha quer?"

Com tantas limitações, Julia precisou lidar ainda com a desconfiança dos moradores. Como antes a sede do projeto era usada para campanhas eleitorais de candidatos que ofereciam serviços e depois sumiam, imaginar que a presença de Julia e dos outros voluntários também seria passageira foi inevitável.

"Cheguei a ouvir: 'O que essa patricinha quer? Não vai durar dois meses aqui'. Normal, eles não me conheciam. Com o tempo, fomos criando uma relação de vínculo. Fui me apaixonando pela comunidade e eles entenderam que estávamos ali por amor, pelo cuidar, não para querer nada em troca."

Ao mesmo tempo em que a confiança aumentava, o número de pacientes também foi crescendo. "A gente começou atendendo todo mundo e fazendo tudo. Abrimos as portas e tínhamos que dar conta, mas foi ficando impossível."

Erro Querer abraçar o mundo. Não focar em um nicho por acreditar que pode e deve oferecer o melhor atendimento para todo e qualquer tipo de pessoa

Aprendizado Buscar dados, estudar e mapear as demandas da região para chegar a um público-alvo. A partir daí constituir ações que gerem resultados efetivos

O fracasso bateu à porta

Lidando com a falta de recursos e com a demanda cada vez maior de atendimentos, Julia e os voluntários seguiram nesse ritmo por quase dois anos. Foi quando algo inesperado fez com que todo esse esforço fosse, literalmente, por água abaixo.

Atendimentos eram feitos com pouco estrutura nos primeiros meses da Rede Postinho de Saúde - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Atendimentos eram feitos com pouco estrutura nos primeiros meses da Rede Postinho de Saúde
Imagem: Arquivo Pessoal
Em 2012, uma forte chuva no Rio causou diversos pontos de alagamento. A sede do Postinho, que já era precária, não resistiu. "Mofou de vez, encheu de água. O pouco que tínhamos foi perdido e levado pela enchente. E aí, fechamos. Não tinha mais condições de atender ali. Foi uma época muito triste, em que cheguei a pensar: 'Fracassei. Não tenho dinheiro para resolver. Acabou. Já era'", conta.

Foi nesse momento que moradores do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho se organizaram e chamaram atenção da mídia para o que estava acontecendo. Uma matéria sobre o fechamento, após a forte chuva, foi exibida por um telejornal local e sensibilizou um médico de São Paulo. Rodolfo Carnevalli estava no Rio e decidiu bancar toda a reforma da sede.

Do caos às soluções

Julia finalmente teve tempo para pensar. Com o Postinho fechado para a reforma, ela percebeu que 70% dos prontuários dos pacientes atendidos eram de mulheres. "Foi pensando justamente no papel multiplicador da mulher, que muitas vezes, em comunidades, é sozinha e chefe de família, que definimos nosso público-alvo. Se a gente cuida da mulher, nosso impacto social é maior. As mulheres, são, em sua essência, cuidadoras. Elas cuidam da família, dos filhos, dos sobrinhos...", analisou a psicóloga.

A Rede Postinho de Saúde atende mulheres da comunidade do Cantagalo, Pavão-Pavãozinho - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Atualmente, a ONG realiza em média 400 atendimentos por mês
Imagem: Arquivo Pessoal
Com o foco de atendimento definido, o segundo passo foi legalizar a Rede Postinho como ONG, criando CNPJ, buscando recursos e amadurecendo como instituição. "Éramos um monte de jovem querendo fazer o bem, cada um oferecendo o seu atendimento na área da saúde e ponto. A partir do momento que nos estruturamos, conseguimos desenvolver metodologias e criar um núcleo de especialidades."

Erro Não criar metodologias e processos, deixando que cada voluntário trabalhe de uma maneira diferente

Aprendizado Desenvolver métodos e organizar atendimentos de acordo com a demanda e especialidade de cada voluntário, além de criar um núcleo de coordenação de cada serviço oferecido

Buscando o lado gestora

Com a reinauguração da Rede Postinho, a psicóloga se viu, pela primeira vez, como uma gestora. Além de olhar para a comunidade e criar vínculos, ela passou a se preocupar com a sustentabilidade da ONG, buscando apoiadores e cada vez mais voluntários.

"Eu olhava muito para dentro, de cuidar da sede, das pessoas. Isso é muito importante, claro, nunca vou deixar de fazer. Mas precisava mais. Relutei muito antes de buscar outro tipo de direção, mas estava ficando muito cansada, fisicamente e psicologicamente. Foi então que decidi encarar os fatos: 'Sou a fundadora, tenho uma responsabilidade maior, preciso embarcar nessa gestão'. Me aprofundei em assuntos do Terceiro Setor, busquei consultorias voluntárias, editais... Tudo que deveria ter sido feito no começo ou até mesmo antes de iniciar os atendimentos", compara.

Erro Olhar mais para o lado afetivo, preocupando-se apenas em criar vínculos e gerar transformações na comunidade

Aprendizado Entender que é possível trabalhar com o que se gosta, mas sem se esquecer de garantir a sustentabilidade do projeto, por mais difícil que essa parte pareça ser. Não relutar em buscar ajuda, cursos e dicas de quem está ou já passou pelo mesmo caminho

Vida de sobe e desce

Hoje, a Rede Postinho está estruturada, conta com 40 voluntários e tem em média 400 atendimentos por mês. Além de clínica geral, a ONG oferece serviços na área da saúde completar, como reiki, massoterapia, acupuntura e terapia floral, especialidades que faltam na rede pública.

Subindo e descendo o Morro do Cantagalo, Julia divide o seu tempo com pacientes particulares em seu consultório no Leblon, a parte confortável de sua jornada. "Eu chego, atendo e vou embora. Já o Postinho exige bem mais, passo metade da semana por lá. Ele está sempre me desafiando a buscar novas oportunidades e formas sustentáveis", conta. Com quase 10 anos de voluntariado e muito trabalho, Julia ainda espera conseguir levar a ONG para mais comunidades do Rio.

"A Rede Postinho de Saúde é como um filho, me traz preocupações, gastos, e muitas alegrias, como toda criança", brinca a mãe da pequena Helena, de dois anos. "Engravidei e não tive licença maternidade, mas hoje sinto que tudo foi recompensado. Saber que estamos dentro da comunidade, cuidando da saúde e da mente daquelas mulheres é um diferencial. Geralmente, essas iniciativas entram nas favelas por meio do poder público, mas não se tem essa relação afetiva, esse atendimento que considera aspectos físicos e emocionais. Hoje, estamos mostrando o quanto isso é importante e nos tornando referência em saúde complementar", comemora.

Voluntários durante um bazar para arrecadar fundos para a Rede Postinho de Saúde - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Voluntários durante um bazar para arrecadar fundos para a Rede Postinho de Saúde
Imagem: Arquivo Pessoal