Semear o futuro

Vandana Shiva começou lutando pela floresta na Índia e criou movimento para salvar milhares de sementes

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Fabio Braga/Folhapress

Desde os anos 1980, a cientista e ativista ambiental indiana Vandana Shiva se dedica a defender a conservação de florestas, a biodiversidade e a soberania alimentar.

Filha de um agente florestal e de uma agricultora, Shiva estudou física e recebeu doutorado em teoria quântica no Canadá antes de assumir essas causas como seu compromisso de vida. O "chamado" do ambientalismo veio quando o desmatamento na região do Himalaia, onde cresceu, a fez sentir como se uma parte de si tivesse sido extirpada.

Ela se juntou então ao Chipko, movimento liderado por mulheres afetadas pela devastação, que formavam uma corrente ao redor das árvores para impedir sua derrubada. Mais tarde, realizou estudo para o governo sobre o impacto da mineração no Vale Doon, levando a Suprema Corte indiana a decidir que a atividade no local contrariava o direito à vida previsto na constituição. "Foi então que decidi que isso era o que eu deveria fazer pelo resto da vida", disse a Ecoa, às vésperas da COP26, Conferência pelo Clima da ONU, que começa hoje (31), em Glasgow, na Escócia.

Dali em diante, publicou vários livros e criou a Fundação de Pesquisa para a Ciência, Tecnologia e Ecologia, atuando em temas como a biopirataria, e a ONG Navdanya, que promove a biodiversidade de sementes, a agricultura ecológica e os direitos dos agricultores na Índia.

Em 2021, sua luta pela preservação de sementes foi contada em documentário e seu livro "Ecofeminismo", de 1993, ganhou uma nova edição no Brasil.

Shiva falou a Ecoa sobre a agricultura ecológica que, segundo ela, irá salvar o planeta e como a Terra, as mulheres e os povos originários estão na vanguarda desse processo.

Ecoa - Como você define o ecofeminismo? Como ele pode nos ajudar a encontrar soluções para os problemas sociais e ambientais que enfrentamos no mundo hoje?

Vandana Shiva - O ecofeminismo é o movimento que surgiu das lutas de mulheres para defender a Terra, como o movimento Chipko. Ele se baseia em remover as viseiras da ganância, do patriarcado capitalista. O patriarcado capitalista diz: "a natureza está morta, é apenas matéria-prima a ser extraída. As pessoas são apenas obstáculos a serem removidos, e ganhar dinheiro é o objetivo da vida". Esse modelo é o que causou a crise em todos os lugares. Tudo resulta desse pensamento de morte.

O ecofeminismo é ver o mundo como ele é: um sistema vivo, diverso, auto-organizado e abundante, do qual fazemos parte. Indígenas, mulheres e camponeses nunca se esqueceram disso. E eles são os professores para esse despertar.

Os bilionários ainda estão dormindo. E estão fazendo um grande estrago neste sono. Estão causando destruição enquanto andam como sonâmbulos. Mas o poder de sua destruição não é sinal de estarem acordados, mas de que estão dormindo para o poder e a criatividade da natureza.

Você tem uma visão crítica sobre a Revolução Verde na Índia e a maneira como a agricultura industrial se desenvolveu no país. Tivemos um processo semelhante aqui no Brasil e gostaria que você comentasse a respeito. Quais foram as consequências?

Não é que eu seja crítica da Revolução Verde — eu estudei a Revolução Verde e sou honesta sobre sua narrativa. Percebi que estavam mentindo para nós.

Eles basicamente reduziram um sistema muito rico e biologicamente produtivo a uma única cultura. O rendimento não é o quanto o sistema produz, quanta nutrição tem ali ou o que custou para a terra, o solo, o agricultor. É puramente o quanto se pode extrair.

Veja o caso da Amazônia: não existe um sistema mais biologicamente produtivo na Terra do que uma floresta tropical. Nenhum sistema produz mais matéria orgânica ou biodiversidade. Mas para o mercado, a soja transgênica é a commodity que se pode extrair e, portanto, sua lógica é cortar a floresta para plantar soja.

Então, eu decidi medir as coisas reais que importam: biodiversidade e nutrição. E depois de 37 anos, conseguimos mostrar que, ao proteger a biodiversidade da Terra, alimentamos mais pessoas. E enfrentamos as mudanças climáticas, porque 50% dos gases de efeito estufa vêm de um sistema industrial globalizado de produção de commodities — não um sistema alimentar.

Temos que ser resilientes, manter as alternativas vivas na nossa mente, na nossa imaginação, nos nossos corações, onde pudermos. E nos posicionar em solidariedade onde quer que as pessoas estejam lutando pela vida

Vandana Shiva, ambientalista indiana a Ecoa

O que seu trabalho com preservação de sementes tem a ver com isso?

Comecei a guardar sementes depois que, por conta do meu trabalho sobre a Revolução Verde, fui convidada para uma reunião sobre novas biotecnologias. Em 1987, as corporações que haviam trazido os produtos químicos [para a agricultura] agora diziam "uau, ouvimos dizer que há uma tecnologia para unir genes e movê-los entre as espécies e, por meio da engenharia genética, podemos patentear as sementes".

O que eles buscavam era o patenteamento das sementes e a coleta de royalties, porque todo o colonialismo tem a ver com extrair royalties. Mas a semente é um sistema complexo, não é uma máquina que você tem. Colocar um pequeno gene nela não é produzir a semente, seus milhões de anos de história. Não se pode possuir o futuro dessa semente adicionando um gene, é como trazer um móvel para dentro de um prédio e dizer que construiu o prédio, que é o proprietário e querer cobrar aluguel.

No voo de volta, eu decidi que queria salvar sementes. Não sabia como fazer isso, então procurei quem soubesse. E nos primeiros quatro anos, eu andei, andei e andei, coletando sementes, incentivando os agricultores. Criamos mais de 150 bancos de sementes comunitários para ter onde as sementes pudessem ser armazenadas, trocadas, compartilhadas. Todos os dias recebo cartas — hoje recebi uma de um de nossos coordenadores dizendo que alguém que nos procurou para treinamento ficou tão inspirado que abriu 3 bancos de sementes comunitários em sua região.

Salvamos tudo o que podíamos. A Índia desenvolve 200.000 variedades de arroz, salvamos 4.000 variedades nos bancos de sementes.

Fabio Braga/Folhapress Fabio Braga/Folhapress

Às vésperas da COP26, você vê avanços no combate ao aquecimento global e na agenda da sustentabilidade?

O primeiro Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em 1988, é a razão pela qual temos uma Convenção do Clima. Estava muito claro que tínhamos que reduzir as emissões. Essa era a agenda, ponto final, não havia nada mais. E era muito evidente quem eram os poluidores — países industrializados que haviam usado todos os combustíveis fósseis.

Eles ficaram muito espertos: usaram a globalização para terceirizar sua poluição. Com muito cuidado, enviaram toda a indústria poluidora para a China, para a Índia, todo o agronegócio pesado para o Brasil. E agora contam sua poluição como nossa poluição.

Em um mundo globalizado, as corporações são a unidade, porque a soberania nacional foi destruída. O Brasil não é um país economicamente soberano no momento. A Amazônia está sendo queimada pelas Cargills, Monsantos, BlackRocks e Vanguards. Portanto, é a sua pegada [de carbono] que deve ser analisada. E quando olhamos para isso, 95% da poluição vem dos países industrializados ricos e suas corporações.

Digo que estamos em uma regressão porque a agenda de parar as emissões deu lugar à continuação das emissões, agarrando o que resta como propriedade. Como vimos em nossas pesquisas e em nossa prática, se protegessem todas as florestas, poderíamos não apenas realmente evitar o aumento da temperatura em 1ºC, mas baixar a temperatura como a Terra baixou antes.

A COP26 será uma exibição do pior das distorções da ciência e da economia. Espero que mais pessoas despertem para reaver a democracia e seus governos, porque eles foram sequestrados.

O primeiro trabalho será feito pela Terra, só precisamos estar por perto para desempenhar nosso papel nessa regeneração. E, comparado ao que a Terra pode fazer, nosso papel é pequeno. Foi o que todos os povos indígenas entenderam: que eles não são os mestres ou os artífices da teia da vida, mas são um fio nela, e seu trabalho é não causar danos e curar quando necessário. Nosso trabalho agora é curar o planeta, curar e descolonizar nossas culturas.

Vandana Shiva

Arquivo pessoal

Podemos reconstruir nossas economias para respeitar a natureza?

Não é apenas possível, é necessário. Mas isso não significa que essa máquina de destruição irá parar de repente, da noite para o dia. Quando comecei a salvar sementes, um lindo poema palestino me inspirou muito. Ele dizia: você pode destruir e bombardear minha terra, pode tirar minha literatura, pode destruir todas as árvores até que nenhum pássaro encontre lugar para se esconder. Você pode fazer isso e muito mais, não temo sua tirania. Não me desespero nunca, porque guardei uma semente que vou plantar novamente.

O poder da semente é que mesmo só uma já é suficiente para fazer um sistema crescer novamente. Uma pessoa com outra imaginação, uma comunidade na Amazônia é o suficiente. A natureza tem o poder de recuperar a Terra, temos que perceber que trabalharemos junto com esse poder para recuperá-la.

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