De casa e do escritório

Com aprendizados da pandemia, empresas se organizam para pensar o modo de trabalho do futuro

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, de São Paulo Victor Vilela/UOL

"Trabalho aqui como se estivesse em qualquer lugar do país", diz Samuel Engmann, que há meses, como tantos outros desde o início da pandemia, está em home office. A necessidade de isolamento social e as restrições de circulação aceleraram a transição de boa parte do mundo corporativo para o trabalho remoto. Foi a solução possível para manter uma infinidade de negócios em atividade.

Foi a flexibilidade do trabalho virtual que permitiu o gerente de produtos de 39 anos manter o emprego quando viu, em poucos meses, sua vida entrar num modo "montanha-russa".

No ápice da pandemia da covid-19, uma promoção o fez se mudar do Rio de Janeiro para São Paulo. Em seguida, a esposa recebeu um diagnóstico de câncer de mama. A terceira mudança em menos de sete meses foi para Goiânia, onde vive a família dela.

Mas, e agora? Qual deve ser o caminho com a crise sanitária, enfim, arrefecendo com o crescente ritmo de vacinação? Entre as empresas, a tendência parece ser a do trabalho híbrido, que permite o home office em alguns dias da semana. E há também quem aposte no "work anywhere", ou seja, trabalhar de onde estiver.

Seja qual for a opção, empresas precisam entender que há uma interdependência entre qualidade de vida e produtividade, avalia Mariane Guerra, vice-presidente de Recursos Humanos da ADP na América Latina. E soluções simples podem fazer a diferença.

Muitos em home office estão preparando suas refeições; se tiverem filhos pequenos fica mais complicado ainda. Neste caso flexibilizar o horário do almoço bastaria para resolver o problema.

Mariane Guerra, vice-presidente de RH da ADP na América Latina

Tempo de mudança

"Ao longo do último ano, vimos o trabalho se transformar de uma forma sem precedentes, escritórios e colegas de trabalho foram substituídos por bancadas de cozinha e animais de estimação", comenta Carol Azevedo, líder de RH do Google para a América Latina.

"O momento na empresa é de mudanças", diz Carol. Parte dos funcionários desejam estar no escritório, outros preferem a flexibilidade de trabalhar em casa alguns dias da semana, passar um tempo em outra cidade durante parte do ano ou até mesmo se mudar permanentemente.

"Sempre tivemos uma política de flexibilidade mas não tínhamos uma política de home office antes da pandemia", observa a executiva. No Brasil, em home office desde março de 2020, ainda não há previsão de retorno aos escritórios. Mas, em dezembro do ano passado, o Google anunciou que adotará o formato híbrido.

Outro gigante da tecnologia, o Twitter foi uma das primeiras empresas a adotar o trabalho remoto no início da pandemia. "A ênfase na descentralização e no suporte a uma força de trabalho capaz de atuar a partir de qualquer lugar nos preparou, em um tempo muito curto, para ter 100% em casa", explica Daniela Magalhães, gerente de RH do Twitter para América Latina.

Apesar de Jack Dorsey, cofundador do Twitter, ter anunciado em maio passado que funcionários poderiam "trabalhar de casa para sempre", no pós-pandemia, o modelo na empresa também deverá ser o do trabalho híbrido.

Para o coordenador do MBA de Marketing e Negócios Digitais da FGV (Fundação Getúlio Vargas), André Miceli, profissionais precisam de momentos para se relacionarem. "Equipes com laços pessoais performam melhor", diz.

Como promover home office com qualidade de vida e produtividade

  • Ofereça ajuda física

    Quem trabalha de casa precisa ter as mesmas condições ergonômicas que teria na empresa, como uma boa cadeira, teclado decente, monitor em boas condições

  • Dê suporte financeiro

    Empresas devem custear gastos com itens de home office, cadeira de escritório, mesa e luminária, entre outros -- o Google, por exemplo, ofereceu aos funcionários US$ 1 mil

  • Tecnologia precisa funcionar

    Mantenha uma central de soluções para questões tecnológicas do trabalho remoto, como problemas com rede de internet doméstica, desempenho de computador e qualidade de videoconferência

  • Garanta apoio psicológico

    Apoio psicológico pode ir de um simples bate-papo até a terapia. O serviço deve ser oferecido por empresas terceirizadas para garantir privacidade de quem busca auxílio

  • Promova interações

    Novos tipos de reuniões sociais virtuais podem contribuir para manter interações com colegas, como tour em casa, junto com filhos, troca de receitas, entre outros

  • Estimule pausas

    Aulas remotas de ginástica laboral, ioga, pilates, pop-ups com lembretes para se desconectar e desligamento automático do computador são boas soluções

Direito à desconexão

"As pessoas começaram a ficar mais disponíveis para demonstrar produtividade", afirma a advogada Fernanda Perregil, especialista em direito trabalhista. Resultado disso, muita gente viu a quantidade de horas crescer no home office.

A advogada é uma das autoras do projeto de lei 5.581/2020, em tramitação na Câmara dos Deputados, que propõe alterações sobre o teletrabalho na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Ela explica que a questão da jornada de trabalho no home office é um dos pontos mais sensíveis, porque não está prevista na lei atual.

E a preocupação com a saúde mental, afetada por extensos expedientes em frente ao computador e agendas lotadas com dezenas de reuniões, fez outra reivindicação ganhar força: o direito à desconexão.

"Nossa regulamentação é ínfima perto de todas as mudanças que ocorreram". A advogada esclarece que a proposta é suprir a ausência de legislação específica que deixa margem para conflitos e processos que estão aumentando, segundo a especialista.
O PL propõe formas de monitoramento da jornada de trabalho, incluindo o modelo híbrido, segurança de dados, saúde, além de direitos e obrigações contratuais.

Outra correção que a proposta pretende fazer é em relação ao ônus do trabalho remoto. De acordo com a advogada, a legislação atual prevê que gastos com internet, energia, materiais e equipamentos precisam constar em contrato. A ideia é fazer com que a empresa se responsabilize pelas contas mais altas, algo que não existe no momento por não haver exigência legal.

Opção mais barata

Do ponto de vista do profissional, a dificuldade de balanceamento entre tarefas domésticas e de trabalho é um ponto negativo do home office.

"As pessoas ficaram muito mais estressadas, muito ocupadas e com muito pouco espaço, seja para produzir ou para ter uma vida saudável", diz a diretora de desenvolvimento e carreira da Cia de Talentos, Juliana Nascimento. Para ela, o home office exige a confiança dos gestores em suas equipes. "Horas 'bunda na cadeira' não querem dizer nada."

O professor da FGV André Miceli coordenou um estudo sobre teletrabalho para a revista MIT Technology Review Brasil, publicação de tecnologia e negócios da qual é editor, que apontou um cenário de prós e contras para ambos os lados. "Para as empresas ficou mais difícil medir a produtividade das pessoas e controlar a privacidade de dados", diz.

A principal vantagem, segundo Miceli, é na economia. Dependendo do pacote de benefícios que a empresa oferecer para quem está em casa, a conta pode ficar mais barata, exemplifica o professor da FGV. "Redução de espaço físico, de manutenção, menor necessidade de mobilização em ativos."

Brigas são positivas

Globalmente a regulamentação do teletrabalho avança. Mas na América Latina, o aumento acelerado dessa modalidade trouxe entraves singulares. A análise é de um relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

"Sem os controles adequados, trabalhar em casa pode levar a relações que não reconhecem a dependência, aumentos no trabalho autônomo ou relações de trabalho disfarçadas", analisa Roxana Maurizio, especialista regional da OIT.

No Brasil, as consequências do vácuo legal podem ser medidas no volume de processos trabalhistas envolvendo o teletrabalho que aumentaram 270% durante a pandemia da covid-19, segundo a advogada Fernanda Perregil.

Por outro lado, a produtividade piorou no home office. "Não significa que se trabalhou menos", pondera o professor da FGV. "Profissionais tiveram que trabalhar mais para entregar a mesma coisa."

Outro aspecto que preocupa especialistas é o da saúde mental. "Do ponto de vista emocional, a falta do convívio social é muito prejudicial, o ideal é o mundo híbrido", sugere a psicóloga do IPq (Instituto de Psiquiatria) da USP (Universidade de São Paulo) Dorli Kamkhagi.

Ironicamente, segundo a psicóloga, no trabalho virtual, o que está longe fica perto, mas o que está perto pode acabar ficando longe. A dica é se prevenir com uma boa e equilibrada dose de bom senso. "Precisamos do toque, do afeto, do carinho e até das brigas que resultam de estar no mundo, com os outros."

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

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