Esperança renovada

Emicida lança nova série e fala sobre maneiras de atravessar as barreiras por um mundo com mais igualdade

Camilla Freitas Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Jef Delgado/Divulgação

O que você sabe sobre você? Talvez saiba dizer, de primeira, qual sua comida favorita. Mas o que você sabe sobre o outro? Sobre o mundo? Sobre a física, a matéria, a energia escura? "Nenhum de nós sabe porra nenhuma, sacou? Nem sobre nós e nem sobre o outro". Emicida é enfático.

Nesse caso, o conselho do rapper é dar um passo para trás e assumir, humildemente: "ok, o que eu sei é que nada sei".

Se você topa fazer esse exercício, a série "O Enigma da Energia Escura", que estreou na quarta-feira (18), no GNT e no Globoplay, pode ser seu caminho para começar a olhar o mundo de uma forma diferente. Estrelada por Emicida e com uma produção composta por pessoas majoritariamente negras, a série é um convite a alimentar nossa curiosidade pelo mundo.

Emicida bateu um papo com Ecoa para contar mais sobre essa nova produção, mas também para falar sobre trabalho, história, e claro, esperança. "Todo mundo está buscando elaborar um discurso, só que a gente precisa se colocar em um lugar de quem não sabe. E, a partir desse lugar humilde, a gente tem a probabilidade de encontrar um caminho melhor".

Um convite ao diálogo

Ecoa - Emicida, você pontua na divulgação da série que não se trata de uma produção sobre racismo. Mas como e por que trazer esse tema da racialização dos seres para discussões sobre meio ambiente, direitos humanos e economia?

Emicida - Porque a superação do racismo passa por esse tipo de reflexão. Quando eu pontuo essa diferenciação, é porque é crucial que a gente passe a compreender as pessoas de pele escura como seres que são além do racismo, e não o racismo em si. Se a gente não compreender que o racismo é estruturante, que ele é o balde que precisa ser chutado e que em cima desse balde se construiu toda a ideia que a gente tem de Brasil e que essa é uma discussão de todas as pessoas que existem dentro da sociedade brasileira, a gente não avança.

A gente precisa, para ontem, superar a desigualdade racial. E como a gente vai superar essa desigualdade? Enfrentando de verdade o racismo. E como a gente vai enfrentar o racismo? Compreendendo que ele é um assunto que pertence à sociedade brasileira. Se a gente empurrar isso para a população preta dizendo "esse é um assunto de vocês, resolvam-se", vamos estar fazendo o quê?

Imagina que tem uma goteira no telhado da sua casa e você coloca um balde embaixo, você pode resolver isso por uma noite porque está chovendo e você não vai subir no telhado para consertar isso porque é perigoso, mas depois de 500 anos se você não tomar uma atitude, subir lá e tampar o buraco, aquela goteira vai virar um oceano dentro da sua casa. O Brasil vem trocando de balde há muito tempo. Se a gente quer mesmo fazer alguma coisa que tape o buraco e a gente consiga viver confortavelmente dentro desse país, é importante que a gente suba lá e resolva o problema.

Jef Delgado/Divulgação Jef Delgado/Divulgação

Assim como no documentário "AmarElo", disponível na Netflix, a série também conversa com especialistas, intelectuais, ativistas, artistas para recontar a história do povo negro. O que significa e qual a importância de recontar essas histórias na TV?

Eu acho que a TV é uma janela na qual podemos distribuir isso não apenas no nosso nicho. A gente não está falando de um lugar restrito onde aquilo só vai ficar conversando com uma bolha. Eu acho que precisamos levar essa discussão para onde ela tem que ir.

Você fala que a maior inimiga do conhecimento é a sensação de que já sabemos tudo. Essa sensação de que se pode dar opinião sobre tudo é algo que vemos principalmente nas redes sociais. Como a série pode abrir essa discussão?

A gente parte de uma metáfora que é astrofísica. A pergunta sobre o enigma da energia escura é muito recente porque a matéria escura e a energia escura são elementos recentes no nosso imaginário. Essa discussão nos faz pensar o que é aquele pano preto que está por trás das estrelas e até então a coisa mais sólida que a gente tem nesse sentido é que 96% do universo é composto por matéria e energia escura, o resto é tudo o que a gente sabe, só 4%. Ou seja, nenhum de nós sabe porra nenhuma, sacou? Nem sobre nós e nem sobre o outro. O que você faz quando não sabe nada? Busca aprender. A gente está levando a discussão para esse lugar. A gente precisa escutar.

Jef Delgado/Divulgação Jef Delgado/Divulgação

Um mano fazendo um corre

A série é produzida majoritariamente por pessoas negras. Para você, qual a importância de colocar grupos historicamente vulnerabilizados nessa posição de destaque?

É aquele velho ditado: quando o leão não conta a história, quem conta a história é o caçador. Se a gente consegue oferecer outras perspectivas acerca do mesmo ponto, a gente constrói uma história oficial que contemple mais a população brasileira como um todo, que é gigante e bastante variada. As pessoas do Rio Grande do Sul são completamente diferentes das pessoas do Amazonas. Então, o que a gente está fazendo não só com as histórias que a gente conta, mas também usando a posição de relevância que eu tenho, que a Laboratório Fantasma tem, é trazer essas pessoas para levantarem suas vozes, é ampliar o campo de visão de todo mundo que foi orientado por uma única matriz.

Parece que não, porque a gente está imerso em um momento de muita tristeza, de muita desesperança, mas a verdade é que existe uma preocupação legítima com esse ponto na sociedade brasileira. Porém, a gente não encontrou uma forma de fazer essa discussão acontecer em grande escala para que ela gere os frutos que precisa gerar. Ter todas essas pessoas, para a gente, é uma honra e uma alegria, e por si só é uma forma de revolução uma vez que, infelizmente, esses profissionais, muitas vezes são convidados só quando o assunto é racismo.

Jef Delgado/Divulgação Jef Delgado/Divulgação

Isso tem de ser uma responsabilidade para quem está à frente de um negócio, independentemente do tamanho. Como vocês abordam essa questão na Laboratório Fantasma?

A origem da Lab parte de um outro lugar, nossa origem não é tradicional. Até pouco tempo atrás, eu e o Evandro [Fióti, irmão de Emicida] nem nos víamos como empresários. Mas vou falar para você, do fundo do meu coração, que nem é a palavra que eu mais gosto, eu prefiro ser um mano que está fazendo um corre, que é o que eu fui a minha vida inteira. Eu resolvo uns B.O.s. Se existe uma barreira, a gente precisa pensar numa forma de atravessá-la para chegar no rio de água límpida que vai matar a nossa sede. É isso que a gente faz. Na Lab, a gente sempre trouxe para perto da gente pessoas que amam a cultura hip hop e isso continua sendo o que nos norteia.

Como a gente pode fazer para que mais negócios e projetos tenham essa mesma preocupação de olharem para a oportunidade e a inclusão real?

Primeiro, a gente precisa fazer uma pergunta, e quando eu falo "a gente" eu falo todos nós, independente da cor da pele: em que tipo de país você gostaria de viver? Se a resposta for um país com mais igualdade para todos, isso vai te trazer outras: que tipo de caminho você trilha, a partir de onde você está, para construir um país com mais igualdade? Com as ferramentas e o poder que você tem, você faz tudo o que você pode para viver em um país com mais igualdade? A gente só precisa responder essas perguntas com sinceridade porque essa diversidade superficial não serve a nenhuma transformação autêntica. Se eu coloco no mês do orgulho LGBTQIA+ uma pessoa LGBTQIA+ no outdoor da minha marca e eu ignoro a existência dessas pessoas no resto do ano, eu não participo de nenhuma transformação. Fico acreditando que uma questão profunda se resolve dessa forma superficial. E não é isso. A gente está falando de grandes rupturas.

Como diz a Elisa Lucinda: não dá para a gente mudar o passado, mas dá para a gente mudar o final. É nisso que eu estou concentrado. A gente pode fazer a nossa transformação agora e entender que tipo de mundo a gente deixa para os nossos filhos.

Emicida

"Todos os dias a minha esperança se renova"

Sobre esses retrocessos institucionais que você fala, como a gente pode manter a esperança nesse momento?

Precisamos observar nosso passado e aprender com ele para não reproduzi-lo. A ascensão do bolsonarismo representa todas as lições de casa que a gente não fez, tudo que ficou aberto. A falsa abolição continua em aberto. O genocídio indígena continua em aberto. Todas as questões referentes à ditadura militar e ao autoritarismo que está no cerne da sociedade brasileira continuam em aberto. Enquanto acreditarmos que a gente produziu conciliações e acharmos que amanhã vai ser outro dia somente porque o Sol vai retornar, não vamos avançar. Quando eu canto que "tudo o que nóis tem é nóis", não é uma frase de efeito, é porque mais que nunca a gente precisa cuidar um dos outros, mais do em que qualquer outro momento da história, porque agora, de maneira inequívoca, a gente viu onde a ignorância pode nos levar. Mas todos os dias a minha esperança se renova, e se renova porque sou paciente. Sei que transformações com a magnitude com a qual eu sonho não são rápidas.

E aqui a gente volta naquela questão da representatividade. O que muda para a juventude negra e periférica tendo você e outras pessoas como eles nessa posição?

Tem uma definição de loucura que eu acho muito interessante que é: loucura é você fazer o mesmo caminho buscando chegar em um lugar diferente. Eu acho que uma ascensão de uma pessoa como eu oferece uma reflexão. A gente precisa pensar muito nos caminhos que a gente trilha para chegar nos lugares. Minha trajetória é completamente atípica. Eu acho que a sociedade brasileira como um todo precisa se perguntar por que que um jovem negro morre a cada 23 minutos, mas não dessa forma genérica. A pergunta que a gente tem que fazer é: como a gente permite que esse país mate um Emicida a cada 23 minutos? Eu entendo a responsabilidade de estar no lugar onde estou, mas eu tenho muito orgulho de ter construído o que eu construí, de falar o que eu falo e de fazer o que eu faço. A posição que eu ocupo é uma posição de muita honra, mas eu entendo que é uma continuidade, muita gente sonhou para que eu estivesse aqui nesse lugar.

Sou um artista que de maneira alguma abdica sua condição de cidadão. Eu não moro na lua, moro no planeta Terra, me preocupo com ele. Se eu puder montar um banquete e em volta desse banquete só tiver gente com fome, qual a intenção desse banquete existir? Não é isso que eu quero. Se eu não fosse famoso, eu continuaria preocupado com essas coisas. Esse é um traço da minha personalidade. Quem chegou agora não foram meus valores, foram as câmeras.

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

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