Método em código aberto

Com a Gerando Falcões, Edu Lyra leva desenvolvimento social e profissionalização a jovens potências da favela

Juliana Vaz Colaboração para Ecoa, de São Paulo Flavio Sampaio/Divulgação

"Eu nasci em um barraco de terra batida em uma favela de Guarulhos. Não estudei sobre desigualdade, eu vivi desigualdade. Isso vai forjando seu caráter, sua experiência de mundo. É impossível passar pelo que passei e ficar imune à transformação humana. Com a experiência que tive, com os amigos que perdi, eu não poderia seguir outro caminho a não ser fazer o enfrentamento à pobreza.

Quando você dorme ao lado de ratos pela falta de saneamento básico, bebe água com cloro, e visita o pai na cadeia, você quer se livrar disso. Quando comecei, eu não tinha outra referência a não ser a garra e força da minha mãe.

Muita gente me pergunta, até mesmo nas entrevistas, porque eu nunca desisti? E eu digo que nunca houve essa opção. Não havia outra saída a não ser fazer o enfrentamento à pobreza. Meu plano B era fazer o plano A dar certo. A minha confiança vem de ver como a favela é potente. A realidade coloca as pessoas em uma jaula, para elas não acreditarem nisso. Eu, a Gerando Falcões, é uma amostra diminuta da potência que existe na favela.

Tudo o que eu aprendi foi lá, vendendo alface na feira, sobrevivendo à enchente, visitando meu pai na cadeia, resolvendo conflitos. Lá existe uma criatividade e resiliência imensa. A gente precisa defender que todos os brasileiros tenham oportunidades iguais."

Lutar ou lutar

A história de Eduardo Lyra - o Edu - cofundador da ONG Gerando Falcões, é de exceção. A realidade desigual brasileira tinha previsto que suas chances para concluir o ensino superior seriam baixas. Preto, periférico, filho de um ex-presidiário, ele vivia na favela desde o nascimento e tinha como vizinhos traficantes e assaltantes. Que dirá se tornar escritor, palestrante, ir a Harvard, ser apontado como um dos 15 jovens capazes de mudar o mundo pelo Fórum Econômico Social, e um dos maiores empreendedores sociais do país, com apenas 33 anos? Nem mesmo quando sua mãe, dona Maria Gorete, lhe dizia "Filho, não importa na vida de onde você veio; o que importa é para onde você vai, e você pode ir pra onde quiser", ele imaginou que chegaria tão longe.

Edu se agarrou aos estudos como caminho para fazer valer o que sua mãe lhe dizia. Aos 22 anos, ele escreveu e lançou de forma independente o livro "Jovens Falcões", em 2011, com histórias de 14 brasileiros empreendedores. Com os exemplares debaixo do braço, saiu de porta em porta vendendo os livros pela favela da Cidade Kemel, em Poá, cidade da região metropolitana a leste de São Paulo. O preço cobrado era simbólico: R$ 9,99.

A ideia era fazer com que as histórias de sucesso de outros jovens inspirassem as famílias da comunidade. Com o dinheiro dos 5 mil exemplares, vendidos ao longo de três meses, ele deu início ao Projeto Gerando Falcões. Por meio de palestras para estudantes de escolas públicas, Lyra queria motivar os jovens a, como ele, superar as adversidades e enxergar um futuro longe das drogas e do crime.

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Histórias entrelaçadas

Foi nessa mesma época que ele se reaproximou do rapper Alex dos Santos - mais conhecido como Lemaestro. Suas primeiras letras de rap foram escritas em 2011, quando se internou voluntariamente em uma clínica para dependentes químicos.

"Lá nasceu o desejo de usar o skate e o rap para fazer um trabalho social quando saísse, e foi isso que fiz. E o Edu já estava dando palestras em escolas da região, então a gente se conectou mais forte e começamos a criar a Gerando Falcões. Enquanto o Edu fazia palestra, eu cantava o rap e já dava aula de skate em uma escola da região." Em vez de carrões e luxo, as rimas de Lemaestro falam de estudo e dignidade.

Aos poucos, eles entenderam que as ações estavam dando certo. Das oficinas de esportes e de artes em parceria com as escolas públicas da região, vieram os programas de capacitação profissional para jovens, incluindo egressos do sistema prisional, para o mercado de trabalho.

A nossa conexão é também de família. A gente se reconectou em um momento delicado, quando eu havia saído de um processo de dependência e trazia sequelas, inclusive emocionais. O Edu havia trilhado outro caminho, o de estudo, esporte, trabalho. Então os desafios que eu ia começar a encarar, ele já tinha trilhado e foi como um irmão mais velho pra mim. A gente trocou conhecimento, irmandade. Ele me ensinou a escrever direito, até que eu me tornasse um colunista

Lemaestro, cofundador da Gerando Falcões

Para Norberto Goes, 22, deu certo. Ele participou das primeiras oficinas de skate promovidas pela Gerando Falcões quando tinha 10 anos. "Minha mãe sempre dizia que eu precisava estudar, mas eu era bem preguiçoso. Foi a oficina de skate que me incentivou: para participar das aulas era preciso ler algum livro e contar uma resenha sobre o que compreendeu, quer dizer, não tinha como enrolar!", conta.

A semente cresceu, e, depois de estudar em um colégio profissionalizante, Norberto foi selecionado para um curso de programação da Oracle em parceria com a ONG, aos 19 anos. Ele recebeu propostas de trabalho em multinacionais, mas quando surgiu uma vaga na própria ONG, ele não pensou duas vezes.

"Eu sinto que é mais que um trabalho, é seguir um propósito. Eu continuo morando com a minha família aqui na periferia, então isso me motiva a somar forças com a GF. O Edu até hoje me puxa de canto, conversa, quer saber como estão meus estudos, é um cara incrível", diz o jovem.

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Pontes entre periferia e centro

Outro objetivo das ações promovidas pela Gerando Falcões é romper bolhas e mitigar a pobreza. "A distância entre Poá, que é a periferia de São Paulo onde estou agora, até a [avenida] Faria Lima deve dar algo em torno de 50 quilômetros. Mas a distância social para quem nasce na periferia pode ser de 9 gerações - isso significa mais de 20 anos. É tempo demais!", diz ele, destacando a dificuldade que o jovem da periferia enfrenta para ter acesso a empregos em um dos maiores centros empresariais de São Paulo. Por isso, ele criou "o próprio espaço econômico", a fim de atrair investidores como Microsoft, Patrícia e Ricardo Villela Marino, do Banco Itaú, e Jorge Paulo Lemann, da AB inBev.

Para Edu, a única maneira de quebrar esse ciclo de desigualdade é a educação, mas não apenas aquela da escola. É preciso formar pessoas sócio e emocionalmente autônomas - disciplina que também é sempre abordada e debatida nos programas da ONG.

"A inteligência emocional é uma plataforma de mudança. O jovem da favela que não consegue desenvolver essa capacidade, é como se a situação social [de pobreza] tivesse sequestrado ele. Por exemplo, quando um moleque preto da favela vai à [avenida] Faria Lima fazer uma entrevista de emprego, ele vai encarar os olhares e até outras atitudes de preconceito. Ele sabe identificar e enfrentar esse preconceito em vez de baixar a cabeça e voltar para casa achando que ali não é lugar para ele. A gente quer que a favela se levante para ser protagonista", explica Edu.

De ONG, a Gerando Falcões se tornou um ecossistema vivo e em expansão, que leva para comunidades e favelas o modelo de gestão que criaram, baseado nos mecanismos de administração da Ambev: com metas, indicadores de performance. A ONG tornou-se uma espécie de aceleradora de organizações não governamentais.

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Em 2019, nasceu a Falcons University, que seleciona jovens líderes comunitários locais para capacitá-los a expandir seu potencial. Um deles é Jefferson Quirino, fundador da Favela Radical no Morro do Turano, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, um complexo formado por 7 áreas e mais de 13 mil habitantes.

"Tendo acesso à metodologia e à rede de relacionamentos humanizada criada pelo Edu, passamos a ver sob outra perspectiva o impacto social nas comunidades que a Favela Radical atende. Porque a gente executava muito bem, mas não tínhamos um plano estratégico. Nos profissionalizamos", explica Jefferson.

Em 2020, a Favela Radical ofereceu a duas mil famílias cestas básicas digitais (cartões com crédito para compra de alimentos) no valor de R$ 300. Além disso, oferecem oficinas de skate, de artes marciais, aulas de zumba, laboratório de robótica para crianças de 7 a 12 anos, curso de programação e criação de games, e até um muro de escalada, para apresentar às crianças a modalidade esportiva que fez sua estreia nos Jogos Olímpicos de Tóquio.

Flavio Sampaio/Divulgação Flavio Sampaio/Divulgação

É preciso comemorar

Neste ano, a ONG completa 10 anos, celebrando o aumento de comunidades atendidas de 30 para 723; líderes da ONG de 18 para 190 e de 54 parcerias para 170. "Hoje, nós estamos alimentando 1 milhão de pessoas nessa fase pandêmica. Anos atrás, era eu quem precisava ser alimentado", diz.

Apesar da crise atual agravada pela covid-19, ele é otimista sobre o futuro. "A pandemia acelerou muitos processos. Eu vou sábado para Medellin aprender com eles sobre o enfrentamento da pobreza.

Para sairmos desse labirinto, precisamos dar as mãos. Não pode ter segredo industrial, tem que ser código aberto. O EGOsistema é o que gera todas as crises que vemos. São 14 mil favelas. Tudo o que aprendi até hoje, nós sistematizamos para a Falcons University, justamente para expandir e compartilhar. O único inimigo é a pobreza."

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

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