Empreender em rede

Após enfrentar machismo, Ana Fontes já capacitou meio milhão de mulheres para os negócios

Vanessa Fajardo Colaboração para Ecoa, de São Paulo Arquivo pessoal

"Foram quase 17 anos no mundo corporativo. Sofri muita discriminação, hoje consigo elaborar, falar sobre isso, mas na época não tinha essa clareza. Sabia que tinha mais obstáculos para conseguir qualquer passo dentro dessa carreira. Sempre ouvia em todos os processos seletivos que não vinha de escola e de faculdade de primeira linha, que não falava inglês fluente. Eram obstáculos que sempre batiam toda vez que tentava uma promoção.

O colégio não conseguia resolver, mas fui fazer pós-graduação em marketing na ESPM e consegui uma licença não remunerada para estudar inglês fora do país. Quando fui tentar outra promoção, o diretor me disse que gostava do meu currículo, do meu desempenho dentro da empresa, mas era uma pena que fosse mulher. Na época minha reação foi até meio inocente, fico pensando como agiria hoje. Virei e falei: 'mas o que você quer que um homem faça que uma mulher não pode fazer?'. 'Quero alguém agressivo nas decisões, que bata na mesa', ele respondeu. Eu disse que era possível conseguir resultados, tratando com respeito. Mas ele não quis me dar a vaga. Fiquei bem chateada na época.

Ao mesmo tempo, quando minha filha tinha cinco anos me via trabalhando demais e continuava sofrendo com os processos discriminatórios. Tinha o sonho de virar diretora, mas depois chegou um momento em que queria fazer coisas que fizessem mais sentido. Tinha um salário bom, carro, plano de saúde, mas pedi demissão porque não queria mais viver nesse ambiente. Minha única certeza era de que queria viver outras possibilidades."

Aprendizados na trajetória empreendedora

A publicitária Ana Fontes, 55, é nordestina, mãe de Daniele e Evelyn, hoje com 18 e 13 anos, e mais um bocado de outras coisas. Desde os episódios de machismo e misoginia enfrentados no mundo corporativo, ela não só viveu outras possibilidades como permitiu que milhares de outras mulheres também as experimentassem.

Ana trabalha - muito - para empoderar mulheres a ter autonomia financeira e dessa forma impactar outras mulheres. Faz isso por meio da Rede Mulher Empreendedora, fundada em 2010, uma plataforma pioneira que virou referência no empreendedorismo feminino.

Meses depois de abandonar os benefícios de funcionária com carteira assinada, Ana decidiu empreender. Seu primeiro negócio foi uma plataforma chamada ElogieAki, uma comunidade em que os consumidores têm espaço para tecer elogios, criada por meio de uma sociedade com dois amigos que "deu muito ruim." Paralelamente foi para a segunda empreitada: um espaço de coworking. Entretanto, ambos os negócios não vingaram.

No meio dessa trajetória "cheia de decisões erradas", Ana foi selecionada para participar do programa 10 Mil Mulheres, criado pela FGV em parceria com o grupo Goldman Sachs. Foram escolhidas apenas 35 mulheres em um montante de 1 mil inscrições.
"Aquilo, ao invés de me deixar feliz, me deixou incomodada, por isso comecei a escrever o que a gente aprendia em um blog em uma linguagem muito acessível. Só sei que ao final de 12 meses tinham uma rede com 100 mil mulheres. Era o início da Rede Mulher Empreendedora."

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Meio milhão de mulheres capacitadas

A Rede, então, virou holofote e começou a atrair a atenção de empresas e parceiros. Nessa onda, em 2010, Ana consolidou o negócio criando produtos como consultorias e eventos patrocinados. Dessa forma conseguiu monetizar o trabalho para seguir prestando consultoria às mulheres de forma gratuita. De lá para cá, a Rede já capacitou meio milhão de mulheres. O público vai desde aquela que vende bolo no pote até as que possuem startup que participam de programas de aceleração, têm apoio de capital ou precisam se conectar com grandes companhias. Há ações para diversos níveis e perfis de empreendedoras, e 95% delas são gratuitas.

Em 2017, a Rede ganhou o braço social com o Instituto que atende mulheres em vulnerabilidade social, com foco em empreendedoras negras, transgênero, que moram em comunidades ou, ainda, possuem mais de 50 anos. A empresa se sustenta por meio de doações de grandes fundações nacionais e internacionais, além de patrocínios.

"Hoje temos 30 colaboradores diretos que são funcionários e mais 1 mil voluntárias no Brasil. Não oneramos as empreendedoras, nossa preocupação é de que seja uma rede inclusiva e não exclusiva, focada em um único perfil."

Ana conta que sente "um quentinho no coração" quando vê mulheres evoluindo em seus negócios a partir de mentoria e capacitação. E que sempre aprende nas formações que oferece. Todavia, ela almeja a criação de políticas públicas voltadas às mulheres que proporcionem mais.

Meu sonho como empreendedora é que a gente não precise esperar 150, 200 anos para viver numa sociedade mais justa e inclusiva para mulheres. Que a Rede possa fazer um trabalho de capacitação e orientação e não precise fazer de inclusão, que a gente precisa fazer porque as mulheres não têm as mesmas oportunidades e condições do que os homens.

Ana Fontes, fundadora da Rede Mulher Empreendedora

Seca fez a família deixar interior de Alagoas

Ana nasceu em Igreja Nova, cidade alagoana de pouco mais de 24 mil habitantes, a 100 quilômetros de Maceió. Era lá que morava em uma casinha de taipa junto com os pais e os irmãos. Uma forte seca em 1970 fez com que o pai de Ana, que trabalhava como pescador, e a mãe, lavradora, migrassem para São Paulo. Vieram de ônibus em uma viagem cujo trajeto de mais de 2 mil quilômetros durou três dias.

"Como não tinha peixe, não tinha plantação, não tinha nada, eles resolveram vir para São Paulo com a cara e a coragem. Se jogaram nesse mundão como um bando de nordestinos fizeram. Meu pai veio na frente com os meus dois irmãos mais velhos, e minha mãe veio um mês e meio depois com 6 crianças."

Da vida em Diadema, Ana se lembra de muitas dificuldades, mas também de incentivos. "Lembro vagamente do ambiente da casa que não tinha cama, a gente dormia em umas esteiras. Gostava muito de ler, meus pais estudaram só até a 4ª série [atual 5º ano], mas minha mãe falava que a gente precisava estudar para poder melhorar de vida. Aprendi a gostar de ler com fotonovela. Tinha um sonho grande de ser jornalista, mas acabei que entrei para a comunicação e estudei publicidade."

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Transição capilar e feminismo

A empreendedora se define como super feminista, defensora dos direitos humanos e das mulheres, e conta que passou a se sentir melhor com a autoestima quando parou de alisar os cabelos.

É combo perfeito para atiçar discursos de ódio, principalmente, segundo ela, quando se posiciona contra o governo atual. "Eu apanho muito nas redes sociais, os haters ficam bravos, recebo muitos comentários racistas", diz.

Foi esse tipo de discurso que fez com que na infância e adolescência sentisse vergonha de seus cachos tipo 4C (de menor curvatura). O processo de mudança, iniciado há quatro anos, foi doloroso até ela se sentir confortável com o visual natural. Há quatro anos resolveu deixar o cabelo crescer, foi cortando aos poucos, até sair toda a química. No último corte, já podendo se enxergar com os fios totalmente naturais, chorou. "Foi meio esquisito, me senti insegura, foi um grande processo de autoaceitação, mas fui me encontrando e me sentindo mais bonita com cabelo curto e crespo. Até na minha família tive dificuldade, mas hoje me sinto mais eu mesma."

Ana é a voz das mulheres que empreendem dentro da favela e têm sucesso. Quando você enxerga o que almeja, consegue realizar porque traz para perto. Ana Fontes é isso: ela traz o sonho para perto e mostra que não é impossível realizá-los.

Elizandra Cerqueira, empreendedora e dona do Mãos de Maria Brasil

Arquivo pessoal

Bistrô em Paraisópolis melhora gestão e faturamento

Elizandra Cerqueira, 33, é dona do Mãos de Maria Brasil, negócio de impacto social que reúne serviços de restaurante, bistrô e delivery dentro da favela de Paraisópolis, em São Paulo. Desde 2018, a empreendedora é atendida por programas da Rede que a fizeram definir o propósito do negócio, melhorar a gestão, organizar as ações de planejamento e aumentar o faturamento em 15%.

O espaço, que funciona na "laje mais charmosa, no coração da comunidade", ganhou uma divertida e colorida decoração composta por guarda-chuvas e com o cultivo de temperos e hortaliças utilizadas no preparo da comida afetiva, que inclui moqueca de peixe, vaca atolada e feijoada.

"Me sinto muito mais segura por falar diretamente com outras mulheres, por ter a experiência da Ana Fontes em uma área que ela domina que é o empreendedorismo. Muitas vezes quando ela fala, me vejo nela, porque sua história é muito parecida com a de milhares de mulheres que estão empreendendo dentro da favela", conta Elizandra.

Para Elizandra, o trabalho da Rede desconstrói a figura de que "empreendedor de sucesso é um homem, branco, rico."

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