Ninguém para trás

Tabata Amaral defende terceira via contra a polarização política e continua na luta pelo direito à educação

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Pedro Ladeira/Folhapress

Tabata Amaral parece — e é - boa aluna. Daquelas que adora ter dados e estudos em mãos, pronta para defender seus pontos de vista com segurança. As pesquisas são usadas até mesmo para narrar a própria experiência de vida. A deputada federal (PDT-SP) se formou em Ciência Política em Harvard, mas sua trajetória começou bem longe da universidade que formou Barack Obama e Mark Zuckerberg.

Nascida na Vila Missionária, na periferia de São Paulo, Tabata viu a realidade, marcada pela pobreza de seu bairro, chocar-se a um universo de oportunidades ao entrar em uma escola particular. A aprovação em Harvard veio acompanhada de choro quando pisou no campus norte-americano no primeiro dia de aulas. Ela não falava inglês e tinha perdido o pai há pouco, com 39 anos. A morte, interpretou ela, era "vida querendo" colocá-la em seu devido lugar. Um mutirão de professores a incentivou a não desistir e entender que era ali mesmo onde deveria estar.

A mesma abordagem técnica e a favor da educação que sustentou sua carreira acadêmica foi a responsável pela sua chegada a Brasília. Hoje, um ano e meio após os mais de 200 mil votos que a elegeram, a tecnicidade não dá conta de explicar as minúcias políticas do cargo. "Tenho uma coisa de pele, sabe? Vi o que a educação fez por mim", diz em entrevista para Ecoa. "Então, me incomoda, do coração, o que está acontecendo com a educação."

Para Tabata, o Ministério da Educação (MEC) foi entregue às alas mais "ignorantes e autoritárias" e é usado para promover uma guerra cultural que abafa a ineficácia técnica da pasta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em março do ano passado, a parlamentar criticou a falta de projetos apresentados pelo então ministro da educação Ricardo Vélez em um PowerPoint. Neste ano, protocolou um pedido de impeachment contra o ex-ministro Abraham Weintraub, a quem chama de "pior ministro da história". O cenário é tão devastador, em suas próprias palavras, que tem dificuldade para avaliar a terceira escolha para a pasta, Carlos Alberto Decotelli da Silva - envolto em polêmicas já no segundo dia no cargo.


Enquanto o MEC patina, a pandemia interrompeu o ano letivo dos milhares de estudantes brasileiros. O Enem foi cancelado. "As expectativas para o próximo ministro não são altas. Está tudo tão ruim que poucas coisas já podem melhorar a educação", diz.

Depois de cumprir mais de três meses em quarentena, pretende voltar para o trabalho presencial na Câmara dos Deputados e defender o Fundeb.

Com o primeiro ministro, Ricardo Vélez, você o criticou e ele caiu. O segundo, você pediu um impeachment. Afinal, qual é um bom nome para assumir a pasta de educação?

Tenho uma resposta com contexto e sem contexto. Se levarmos em conta que falamos de um governo que não prioriza a educação e que parece desconsiderar e não entender que a pasta é importante, e ainda colocá-la à disposição do que há de pior no governo, de uma ala ignorante, autoritária que estamos tendo, talvez a minha esperança é de que tenhamos um ministro sério, aberto ao diálogo e que não tenha esse descontento e entenda o papel da educação em um país tão desigual como o nosso. Em um cenário em que há um governo que pelo menos não despreza a educação, poderíamos ter mais esperança [para um bom nome]. Mas depois do que vimos com o [Ricardo] Vélez e que vimos com [Abraham] Weintraub, que em um ano e meio colocaram a educação à deriva, com essa sangria sem fim, creio que alguém sério e aberto ao diálogo já vai ser um grande passo.

Qual a expectativa para Carlos Alberto Decotelli?

Estamos presenciando um cenário tão devastador na educação do país que fica difícil avaliar a terceira escolha do presidente Bolsonaro, em 1 ano e meio de governo, para comandar a pasta mais fundamental para o desenvolvimento do Brasil. Temos como parâmetro o pior ministro da história. A completa falta de gestão deixou um vácuo expressivo que está prejudicando o futuro de milhões de jovens brasileiros. O que posso afirmar é que continuarei aberta ao diálogo e continuarei fiscalizando o trabalho do Ministério da Educação, com o objetivo de tornar a educação prioridade na pauta do nosso país. A esperança é de que consigamos, finalmente, avançar nos projetos que são tão caros à nossa população e de que tenhamos um espaço democrático, e não mais um ministro refém da ignorância e do obscurantismo.

O ministro-interino Paulo Vogel seria um bom nome para a pasta?

No contexto [do governo que temos], e dentro das alternativas que possam ser colocadas, é um bom nome. Falo da minha experiência até aqui, mas não sei como ele seria como Ministro. Eu participo da comissão externa de acompanhamento do MEC, e neste ano tivemos reuniões com os secretários. Via de regra, os secretários e o corpo técnico do ministério são diferentes do ministro. A recepção era cordial e ele nos traziam dados e topavam debater. Tanto que pedimos uma audiência três vezes com o ministro [Weintraub] e nunca fomos recebidos. Era sempre o Vogel que nos recebia, e foi ele que recebeu 54 sugestões apresentadas pela Comissão no final do ano passado. Se ele se mantiver técnico e aberto ao diálogo, dado do que pode vir, ele é uma boa opção.

Até por ser técnico, a senhora acredita que ele sobreviveria à influência dos ideológicos do governo Bolsonaro?

Sinceramente, acho que não. Temos um governo que despreza a educação e vale dizer isso com mais força. É um governo que pega a pasta mais importante do país, que é o MEC, e o vê como uma oportunidade de avançar guerras e paranoias ideológicas para colocar combustível no que importa para a ala mais autoritária e mais intolerante do governo. Via de regra, quem segue linhas técnicas e faz um bom trabalho não sobrevive no governo. Vide o que aconteceu no Ministério da Saúde [com a demissão de Henrique Mandetta]. É difícil falar de uma situação de que não tenho controle. O que posso fazer é ter esperança de que o Bolsonaro vai fazer o primeiro gesto aos milhões de jovens do nosso país que são desprezados por ele desde o começo do ano passado.

Como poderia ser definido o papel da "ideologia" no Ministério da Educação? Dá para ser puramente técnico?

Eu entendo o posicionamento ideológico como se ter uma visão de mundo. É o que mostra onde se quer chegar e quais são as prioridades. Tenho uma discordância profunda com a visão de mundo do Bolsonaro, de seu governo e vários de seus ministros. Mas uma coisa [técnica] não substitui a outra [ideologia]. É importante que o governo, que segue uma visão, seja confrontado não só por ter essa visão, mas pelo que faz dela no meio do caminho. A minha discordância com a visão de mundo dele, com a intolerância, com o autoritarismo e o que há de pior no governo Bolsonaro já é clara, mas é importante que na minha atuação eu questione o que eles fazem na prática. No meu ponto de vista, há coisas que vão além da ideologia, como execução orçamentária. Não importa sua visão de mundo, mas me parece absurdo que no Brasil, onde temos dificuldades tremendas com a alfabetização, tenhamos uma execução orçamentária próxima de zero em um projeto de alfabetização ou de jovens e adultos.

Ou seja: eu posso discordar da prioridade dos outros, mas é preciso explicar por que um dinheiro não está sendo utilizado. Independentemente de cortes, contingenciamento e crise fiscal, qual o dinheiro que o MEC tem em cada programa e o quanto foi executado? É muito pouco. Temos um relatório que mostra que a maior parte dos programas deste ano pertencem a iniciativas do ano passado. O governo alardeou que a alfabetização era uma prioridade nos primeiros cem dias de governo. Verificamos, e o máximo que aconteceu foi uma conferência para debater métodos de alfabetização. Mas nada chegou nas secretarias. O máximo que se tem é um curso online. Tento separar as críticas. Algumas pessoas podem se sentir representadas por aquela visão de mundo do governo, mas independentemente de discordar ou concordar, tem que criticar o que é feito. Weintraub revogou uma portaria que incentivava a inclusão de pessoas com deficiência, negros e indígenas na [pós] graduação. E vemos o quanto ele foi um péssimo líder e não conseguiu tirar do papel seus projetos. Todos os fatores nos permitem dizer que estamos falando do pior ministro da educação em época recente. As expectativas para o próximo não são altas. Está tudo tão ruim que poucas coisas já melhorariam a situação.

Luis Macedo/Câmara dos Deputados Luis Macedo/Câmara dos Deputados
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Nos últimos anos, a defesa pela educação sempre foi uma bandeira em manifestações de rua. Por que esse terreno foi escolhido para a pauta comportamental pelo Bolsonaro?

Falo pelo que leio em estudos: além da incompetência e da corrupção que está sendo investigada, o governo Bolsonaro se elegeu por uma guerra cultural. Por exemplo: inventa-se um suposto kit gay que é entregue nas escolas, e sabemos que isso teve uma repercussão importante na campanha do Bolsonaro. Alimentar a guerra cultural foi entendido como importante para que o governo se mantenha, e toda a incapacidade, o mais do mesmo, seja ocultado. Sempre que eles colocam lenha na fogueira, isso é bom para o governo. Onde essa guerra cultura é lutada? No Ministério da Educação. Infelizmente, a pasta nunca foi vista por Bolsonaro como estratégico no combate à desigualdade e ao desenvolvimento econômico. O Ministério deixa de ser visto como um vetor de um Brasil melhor, como sonhamos, para ser transformado em palanque como guerra cultural. [É espaço para um] ministro que não faz nada pela alfabetização, que não faz nada pelo Fundeb, mas que faz questão de dizer que é contra o termo povos indígenas e de revogar a portaria de acesso a outros grupos ao acesso à pós-graduação. Eles se importam com os símbolos, com o preconceito e desconhecimento das pessoas. E nós ficamos reféns disso. Quando Weintraub fazia um absurdo, nós parávamos e a mídia parava só para poder falar. A escolha do ministério da educação, assim como da secretária da cultura, serve para alimentar isso e para que não seja visto o que é feito do outro lado.

Você chegou a se comunicar com Weintraub?

Tivemos alguns confrontos públicos. Pedimos reuniões via comissão externa de acompanhamento do MEC, mas nunca fomos atendidos. Falei pessoalmente e virtualmente com todos os chefes das principais autarquias do MEC. Todos, mas nunca conseguimos falar com o ministro. O contato que tivemos com ele foi em comissões nas quais ele levava horas e interrompia quem queria debater educação para falar absurdos, ofender e inventar histórias sobre o ensino público, do qual ele não conhece.

Qual o legado mais urgente deixado pela pasta?

Devemos pensar no que ele deixou e no que ele não deixou. Foram deixadas várias tentativas do governo em dizer quem deveriam ser os reitores de universidades, de forma antidemocrática. Inclusive, reitores foram indicados no período em que uma medida provisória neste sentido estava atuante. Ele editou a portaria sobre a inclusão de negros, indígenas e PCDs na pós-graduação. Foram várias ações simbólicas, mas que são importantes em um país desigual como o nosso. A gente vai pouco a pouco tentando remendar o que não conseguimos segurar. Apresentei um projeto com outros parlamentares para suspender a ação da portaria na pós-graduação e um projeto para ter mais segurança jurídica e impedir que um ministro como ele apareça e saia alterando tudo. Outra coisa que não foi deixada por Weintraub foi a aprovação do Fundeb. Estamos há um ano e meio discutindo. É um mecanismo responsável por metade do financiamento da educação e é a primeira vez na história que um ministro da educação não participa da discussão. Não tenho dúvida que a dificuldade de pautar o Fundeb tem a ver com a ausência do ministro.

Há chances reais do Fundeb ser extinto? E o que você está fazendo na prática por isso?

Eu e outros parlamentares trabalhamos todas as semanas, inclusive aos domingos. Fizemos uma reunião às 11 horas da manhã dum domingo para falar sobre o Fundeb. Se depender da gente, vai ser votado nas próximas semanas. Segunda-feira eu volto para Brasília, mesmo compreendendo que foi importante trabalhar de casa neste período. Mas temos um reloginho: o Fundeb vence em dezembro, e estamos falando sobre um negócio superimportante para a educação.

E quais os entendimentos até agora sobre o Fundeb?

Até agora, entendemos que o Fundeb vai para a Constituição e deixará de ter prazo de validade, como é hoje. É maior do que o atual e terá uma revisão quando vencer o teto de gastos. A União passaria de 10% para 20% de investimento [nos estados e municípios]. Tem uma falsa dicotomia do Brasil entre quem diz que falta dinheiro e quem fala que falta gestão na área da educação. Quando se olha para a realidade, falta um pouco dos dois. A participação extra da União vai ser especialmente importante, já que sabemos que a arrecadação de impostos vai cair neste e no próximo ano. Ao mesmo tempo, pretendemos distribuir mais o valor. Os 10% adicionais passarão diretamente aos municípios mais pobres, o que é muito importante para combater a desigualdade.

A partir do momento que for seguro, na minha opinião, a gente tem que voltar com uma série protocolos que deveriam estar sendo desenhados pelo MEC. O novo calendário letivo não vai seguir com o calendário civil, e tudo bem. O nosso ponto é não deixar mais gente para trás.

Tabata Amaral, sobre retomada das aulas

Há uma corrente de que, além do Enem, também se cancele o fim do ano letivo por conta da pandemia. Essa medida foi avaliada? Poderia ser colocada na prática?

De novo, temos um MEC ausente. Inclusive, quando interpelamos o MEC sobre isso, nos foi dito que não era de responsabilidade deles. Não sei o que é responsabilidade deles, então... Mas as aulas foram canceladas, e diferentes redes agiram cada uma a seu jeito. No Amazonas, houve aulas por canais de televisão por já terem experiência em levar sinal de comunicação para regiões ribeirinhas. Em São Paulo, liberaram dados de telefonia. Mas ainda temos quase seis mil redes de educação lançados à própria sorte e sem um ministério que ajude em parcerias para criar plataformas. O Conselho Nacional de Educação já havia elaborado um documento para saber o que poderia ser feito ou não em relação às aulas em termos jurídicos, pois a pandemia é uma situação pela qual nunca passamos. O MEC, então, recebeu o documento e demorou, demorou e só depois de muita pressão homologou o documento. Na Câmara, sou uma das autoras de um projeto para criar conselhos municipais, estaduais e nacional com profissionais da saúde e da educação para decidir como será o retorno às aulas. São vários atores encobrindo o vácuo deixado pelo MEC. A minha opinião é que se adeque o calendário para retornar no ano seguinte, quando for saudável. Se a gente entender que a partir de outubro, por exemplo, em outubro.

Pode explicar mais?

Quanto mais tempo as crianças e adolescentes estiverem em casa e não na escola, mais a desigualdade educacional vai se aprofundar. Não dá para ignorar que quantas soluções a gente pense, alguns estudantes estão dividindo cômodos com vários familiares, sem internet, passando fome. A gente sabe que a aulas [a distância] não estão chegando em todo mundo. Duas coisas que precisamos combinar: voltar à aula o quanto antes. Há estudos que mostram que quanto mais tempo as crianças ficam em férias, elas regridem no conhecimento em comparação às que foram estimuladas durante. É uma questão de desigualdade. Dito isso, a segurança das crianças e de todo o corpo docente é a prioridade. A partir do momento que for seguro, na minha opinião, a gente tem que voltar com uma série protocolos que deveriam estar sendo desenhados pelo MEC. O novo calendário letivo não vai seguir com o calendário civil, e tudo bem. O nosso ponto é não deixar mais gente para trás. A ideia nisso também é avaliar como está a saúde mental. Nosso projeto fala um pouco disso. É o ideal voltar logo? Não é. Mas não dá para ignorar que, se cancelar o ano, uma galera vai ter um dano irreparável e podemos sim ter uma evasão do ensino médio. Quando tivermos esse novo calendário letivo, teremos um novo calendário também para provas como o Enem. A decisão não pode ser uma enquete no Facebook do Ministro.

Como a saúde mental pode interferir nesse processo e como foi dado esse tema?

Há um estudo americano que mostra que alunos mais pobres regrediram em parte do conhecimento e desaprenderam durante férias escolares enquanto estudantes mais ricos continuavam a aprender por terem acesso a capital cultural. Os alunos vão chegar com uma defasagem. A segunda questão é o que vivemos: muitas famílias viram a fome batendo na porta. Há crianças que foram para as ruas após os pais ficarem desempregados e as coisas apertarem. Há professores e estudantes que perderam entes queridos. A pandemia atinge mais as periferias. Tenho essa discussão com deputados, e achamos que vai ser necessário a atuação do estado para entender como é que os professores chegam na escola. Mas dada a dificuldade de lidar com o MEC, estou conversando com professoras e líderes de ONGs para pensar no que fazer. Não temos uma resposta ainda, uma vez que saúde mental já é uma coisa que não é muito valorizada e bem compreendida no Brasil.

Uma das saídas é a manutenção do auxílio emergencial, com uma espécie de renda mínima, como você defende? De onde viria esse dinheiro?

Primeiro, precisamos saber como fazemos a transição do auxílio emergencial. É realmente absurda pensar em interrompê-lo, porque espera-se que a crise econômica se aprofunde ainda mais nos próximos meses. Mesmo que a pandemia vá embora e encontremos uma vacina, ainda vamos precisar do auxílio emergencial por mais um tempo. Aí, é aproveitar que o Brasil está passando por essa discussão para fazer uma etapa de fases rumo a uma renda básica. De onde viria o dinheiro? Poderíamos incorporar o Bolsa Família e alguns projetos, como o Salário Família, o abono... A ideia é pegar programas que já existem na área social, que tenham uma renda que não chegue a um salário mínimo, que chegue a compor a renda básica. Teremos algumas brigas boas, falando de forma leve.

Quais brigas e com quem?

Será que vamos conseguir falar dos supersalários? É uma discussão que temos na Câmara e nunca consegue [sair] por causa de lobby. Estamos falando de um dinheiro bom, sabe? Há cálculos que falam de R$ 1 bilhão que são imorais. Nossa Constituição prevê que ninguém pode receber acima dos ministros do STF. Será que a gente vai ter coragem de olhar para algumas exonerações? De isenções tributárias que não fazem sentido? Para a renda básica, a ideia é olhar para fontes de financiamento a partir do que já existe hoje e rever outros setores em que o dinheiro público é mal alocado.

Nesse cenário de estruturas tão grandes, tua visão sobre educação real mudou? E qual é ela?

Minha visão continua a mesma e continua sendo a razão pela qual estou na política. Para mim, a educação é o único caminho para que a gente tenha um Brasil justo, desenvolvido e ético. E todas as bandeiras usadas por diferentes grupos, de forma honesta ou não, são alcançadas por meio da educação. É uma experiência de pele, sabe? Eu vi o que a educação fez na minha vida. E vi o que ela não fez na vida de muitos amigos que perdi aos 12, 13, 14 anos de idade. Sei que ela tem o poder de libertar as pessoas para que possam ter uma vida digna. Meu ativismo de dez anos me mostrou que a política tinha que mudar para que a gente tivesse educação integral e que de fato formasse as pessoas para a cidadania e desse a possibilidade de sonhar. Então, me incomoda, do coração, o que está acontecendo com a nossa educação hoje. Eu perdoaria alguém que tivesse uma visão diferente da minha, mas tentando fazer alguma coisa. Alguém que pega a educação de milhares de pessoas em nome de alguns projetos pessoais para manter a guerra cultural, para mim é desumano, imperdoável. Não há ideologia que explique isso.

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Às vezes, você acha que a política institucional talvez não seja a melhor maneira para a gente mudar a educação?

Já atuei um pouquinho em diferentes áreas e acho que todos esses lugares têm os seus papéis. Fiz pesquisa em educação, dei aulas em escolas públicas, privadas e fundei movimentos com ativismo no Brasil inteiro. Trabalhei em uma empresa na área de relações governamentais na área de educação. Tenho consciência do quanto ONGs, empresas e sociedade civil organizada podem fazer pelo avanço da educação. Mas desde o ensino médio, quando comecei o ativismo, sempre vi o quanto as iniciativas barravam no setor público. Por exemplo, um prefeito me disse que não daria continuidade a um projeto belíssimo de educação porque não queria dar ibope para a gestão anterior — ele usou essa palavra! — na tese de graduação, ou uma secretária que chegou para trabalhar e relatórios de trabalho tinham sido queimados. Um outro secretário que não entendia nada de educação, foi loteando a secretaria e ninguém na pasta falava sobre educação. Você percebe que sem a política, não vamos conseguir ver nada muito profundo acontecer no curto prazo.

Existe esse cansaço acumulado por ficar em dúvida se era mesmo o melhor caminho?

Não sei se é cansaço, mas foi a indignação que me levou à candidatura. Fiz muitas coisas durante muitos anos e não via nada indo para a frente, e via tudo sendo destruído por que não era de interesse político, como uma superpesquisa ou uma demanda dos jovens. Então, ou eu via a política como um meio de solução ou uma barreira intransponível e jogava a toalha, ou entraria para participar. É claro que fico indignada com o que acontece hoje, mas se não for por meio da política, não sei o que vai ser. Não serão as empresas apenas, as ONGs ou a sociedade apenas.

Você entrou na política com discurso antipolarização. Mas recebeu críticas da esquerda durante a reforma da previdência, o que gerou o desgasta com o PDT, de centro-esquerda. Também foi criticada pela direita por pedir o impeachment de Abraham Weintraub. Na política real de Brasília, é realmente possível não escolher um lado da moeda?

Te respondo com muito cuidado e a sua pergunta é de uma forma muito seletiva. Votei pelo partido na grande maioria das questões, mais do que a grande maioria dos deputados do meu partido. Não me vendi e sempre votei de acordo com as minhas convicções. Quando voto com base no que digo há dois anos, mas recebo o telefonema do líder do partido dizendo que não dá para votar daquele jeito "porque política é assim", é a maior prova de que estou aguentando não a corrupção financeira, pois essa eu já aguento, mas também aguento a corrupção de convicção. Quando você diz que eu não escolho um lado, é porque não escolhi os dois lados mais proeminentes. E acho que tenho direito a fazer isso. Que bom que posso fazer isso!

Quando a gente tenta resumir o Brasil a PT ou Bolsonaro, a gente tapa os olhos para as coisas erradas feitas pelos dois lados e ignora todo o resto só para mostrar qual bandeira é mais bonita. Me considero progressista e estou num partido de centro-esquerda. As minhas votações são condizentes com essa postura, inclusive na reforma da previdência. Foi uma votação dura e trabalhei para caramba. Mais do que muita gente de esquerda. O que fizemos foi aproximar as regras de uma classe média e de uma classe mais alta a das pessoas mais pobres, então com regras piores do que as vigentes. Minha mãe foi diarista a vida inteira e meu pai, cobrador de ônibus. A eles, a reforma da previdência não muda. Não sei se é uma vantagem ou desvantagem e, na verdade, me dá mais trabalho, mas não ter sido criada dentro de partido e ter uma postura de olhar para cada matéria e criticar o que deve ser criticado, para mim é uma coisa importante. É um país muito grande para ser resumido em PT e PSL. Votei em Haddad no segundo turno, Ciro Gomes no primeiro turno, sempre com a mesma coragem de votar no que eu concordo e discordar do que acho hipócrita.

Você crê que a esquerda tem um problema de não propor soluções práticas, como foi a reforma?

Talvez seja genérico usar o termo esquerda. Talvez seja um problema da nossa e de várias políticas: é muito mais fácil subir em um palanque e dizer que é contra. Apenas isso se requer. Mas sentar e falar o que é necessário para o país e levar para o debate — e sentar, por exemplo, com a bancada da segurança, que não tenho muita convergências de ideias — para mudar o texto em prol de alguém que não bate panela e não faz pressão, como os trabalhadores rurais, diaristas, pedreiros? Muitas vezes, quando a esquerda critica algo da direita é só subindo no palanque e gritando. É uma coisa do ser humano, e quanto maior a polarização, maior é o holofote que os dois extremos recebem. Quando há uma mensagem simples, que viraliza, já se acha que os likes estão ali, que terá reeleição, um grupinho aplaude... Mas não aconteceu nada para o país.

Quando a gente tenta resumir o Brasil a PT ou Bolsonaro, a gente tapa os olhos para as coisas erradas feitas pelos dois lados e ignora todo o resto só para mostrar qual bandeira é mais bonita. Me considero progressista e estou num partido de centro-esquerda.

Tabata Amaral, sobre a polarização política

Na escola, você nunca ouviu que poderia haver uma faculdade após do ensino médio. Você tomou o caminho contrário, mas sabe o que aconteceu com seus colegas de classe? E por que muitos deles não tomaram o mesmo caminho que você?

Estudei em escolas públicas até a sexta série, que hoje é o sétimo ano. Na escola pública, nunca tinha tido uma discussão sobre profissões ou sobre faculdade. Aquele papo de Unicamp, ITA... Quando entrei na escola particular, todo mundo falava disso! Todo mundo assumia que iria fazer uma faculdade, só precisava escolher qual a área e a profissão. Eu achava que iria trabalhar com bordados, como minha mãe, minha avó, minha tia. A desigualdade de sonhos tem a ver com várias desigualdades, mas tem a ver com uma realidade, de um horizonte que mostra até onde se pode ir. Tenho colegas da escola pública que se formaram em universidades públicas. Meu irmão é um exemplo. Estudou em escola pública, sem aula de química, que vai embora no horário do intervalo por falta de professor, conseguiu se formar com uma bolsa em um cursinho. Tenho uma amiga do Educafro que fez uma faculdade privada e hoje é professora de português. Tenho uma amiga que também está se formando por uma universidade privada. Mas tenho muitos amigos que pararam o ensino médio. Tenho alguns que saíram antes de acabar; um deles, a namorada engravidou muito cedo e foi preciso sair para trabalhar. Tenho uma amiga que engravidou muito jovem, outra que casou no ensino médio, outros que acharam que não teriam futuro. Outros que morreram com 13, 14, 15, 18... Tenho um pouco de tudo. Os que fizeram faculdade são em menor número.

Você se sentiu privilegiada neste cenário, por ser branca?

Tenho certeza, e me guio por estudos, que muito provavelmente privilégios aconteceram comigo: sabemos que estudantes brancos recebem mais atenção dos professores e se saem melhor em entrevistas. Há estudos que mostram que estudantes brancos recebem notas melhores. Eu nunca fui parada por um segurança e policial, mesmo vivendo em bairros perigosos. Ninguém nunca presumiu que eu estava roubando algo ou disse que meu cabelo é feio. Não acho que política pública se faça com experiências pessoas, me baseio em estudos. Não sei dizer até onde uma Tabata negra teria ido, mas com certeza teria enfrentado muito mais dificuldade para chegar no mesmo lugar. O que posso fazer como parlamentar é analisar os dados e ver que tive privilégios; e trabalhar para que pessoas negras tenham os mesmos acessos que tive.

Transitar entre Harvard, Brasília e uma origem pobre te dá uma sensação de não-pertencimento?

Com certeza. Mas não é entre Harvard e Brasília. É entre periferia e Harvard. Quando fui para a faculdade, minha vida ficou completamente diferente das dos meus colegas. Muitos amigos tinham sequer consciência que eu estava podendo, literalmente, escolher meu futuro. Se eu quisesse ser astronauta, poderia ter sido astronauta. A maior diferença está na minha própria família. Tenho primas que engravidaram muito novinhas. Minha mãe engravidou de mim no Ensino Médio. Meu pai morreu com 39 anos de idade, a alguns meses de fazer 40 anos. Tudo isso me mostra que não é questão de esforço. Eu estava ali, sabendo que vários dos meus amigos estavam sequer vivos, lutando para caramba para sobreviver, enquanto eu escolhia meu futuro. O mais difícil foi saber que eu não era a pessoa típica da minha comunidade. Tive uma vida muito diferente. Mas também nunca fui uma estudante típica de Harvard.

Como assim?

Eu não falava inglês e morro de vergonha até hoje de falar. Nunca tinha ido a um museu, a um show. Eu não tinha capital cultural e não tenho muito, até hoje, sobre arte. Trabalhei a faculdade toda como babá. Meus colegas não tiveram que fazer isso e eu ainda precisava mandar dinheiro para casa. Era uma angústia terrível não saber se conseguiria mandar o dinheiro para minha mãe, que estava desempregada. Nunca fui uma aluna típica de Harvard, nunca fui uma estudante típica da periferia. Mas uni as duas coisas em mim para saber como era.

Me descreve o primeiro dia de marcante em Harvard?

O dia mais marcante foi o primeiro que cheguei. Fui aceita no dia 8 de março e meu pai faleceu no dia 12 de março. Foram quatro dias depois. Obviamente, eu perdi o propósito de sonhar. Eu fazia física na USP e depois fui aceita em mais cinco faculdades, que sequer abri os e-mails e respondi que não iria. Achei que era a vida me colocando em meu lugar. De uma maneira muito doida, associei a morte do meu pai com a aceitação em Harvard. Os professores da escola onde eu era bolsista conseguiram me arranjar visto e passagem para visitar e me estimularam a não desistir. Me disseram que, se eu não fosse, levaria mais um tempão para alguém da periferia ir para Harvard. Entendi que não era só sobre mim.

No primeiro dia, lembro que estava muito quente. Era verão americano, e estava lá com uma malinha pequena, com quase nada e uma roupa supervelha e supertriste. Eu não queria ir. Não tinha vontade. Entrei no campus e comecei a chorar. À noite, houve uma reunião das pessoas que iriam dormir comigo no dormitório. Não entendi nada do que eles falavam. Tinha um rapaz da Guatemala, mas que tinha crescido no estado da Georgia. Ele começou a falar comigo em espanhol e consegui entender algumas coisas. Eu só chorei naquele dia. E demorei um tempão para aprender inglês a ponto de ficar confortável para falar. O começo foi difícil.

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O que você aprendeu na Vila Missionária que não aprendeu em Harvard?

Um bocado de coisa. Primeiro, a ser resiliente de um jeito muito raiz, sem a opção de desistir. Aprendi a ser solidária. Mesmo que o Brasil não seja um país muito solidário, pesquisas mostram que pessoas pobres doam muito mais. Nunca faltou roupa para gente, nunca falou comida. O pessoal da paróquia se organizava e ia o mercado comprar coisas, nos levavam carne. Minha casa foi construída em cima dum escadão. Várias pessoas: meus pais, meus tios, vizinhos ajudaram a construí-la. É um aprendizado de comunidade mesmo. Não falo isso para glamourizar. Quem deveria me ajudar era o governo e tá errado o que aconteceu, mas nunca passei fome devido à minha comunidade. É um aprendizado de engolir e seguir em frente, de ter pessoas disponíveis para contar com você e ter a quem contar contigo.

Você convidou pessoas negras e de onde você morava para trabalhar contigo? Quantas pessoas negras estão no seu gabinete?

Durante a campanha, a grande maioria veio da minha própria comunidade. Até porque era quem acreditava em mim e pronto. Quem não me conhecia, achava eu que não teria chance. Para montar a equipe [como deputada], metade das vagas foi para quem trabalhou comigo durante a campanha, e metade foi uma seleção aberta com milhares de inscritos. Sempre tive muito forte comigo que, quanto mais diverso o time, melhor a execução. Metade das pessoas que trabalham comigo são pessoas negras, temos LGBTs, que conheci na campanha ou foram selecionadas.

Se não tivesse ido para Harvard, onde estaria agora?

Eu teria me formado em física, na USP. É tão diferente que mal consigo pensar. Estudei em uma faculdade que valoriza muito o serviço público, que é a ciência política e humanas. Provavelmente perceberia que não queria trabalhar em laboratório, ser cientista, mas ainda estaria trabalhando em educação. Sou apaixonada mesmo por educação.

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