Branquitude antirracista

"Sou pessimista no varejo, mas otimista no atacado": Lilia Schwarcz e o papel dos brancos na luta antirracista

Alexandre Ribeiro Colaboração para Ecoa, de Berlim, Alemanha Renato Parada/Divulgação

"Sempre digo que sou pessimista no varejo, mas otimista no atacado." Com empatia e brilho nos olhos, a historiadora e doutora em antropologia social Lilia Schwarcz parece disposta a transformar suas reflexões acadêmicas em ação.

Branca, ela se formou em história pela USP, universidade pela qual também também defendeu o doutorado e, em 1986, fundou a Companhia das Letras, maior editora do Brasil, ao lado do marido Luiz Schwarcz. Atua há diversos anos como professora universitária, acumula, como autora, alguns prêmios Jabuti (o mais tradicional do país) e ajuda a democratizar o pensamento antirracista no "último país das Américas a abolir a escravidão".

Titular no departamento de Antropologia da USP e, desde 2008, professora visitante na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, Lilia é colunista do Nexo e co-organizadora livro "Enciclopédia Negra" (Companhia das Letras, 2021), com Flávio Gomes e Jaime Lauriano.

Em 2021, foi premiada, na Alemanha, com o Prêmio Reimar Lüst de Educação Internacional em Ciência e Cultura -- no valor de 60 mil euros -- e anunciou os planos de dar continuidade a sua pesquisa em terras germânicas. É sobre a luta antirracista que a pesquisa da professora se debruça. E é nela que focamos este papo.

"Quais são as possíveis reparações?", pergunta este jovem entrevistador negro e cria de favela para professora. "[Além das políticas de cotas] São conversas como essa", responde ela, estreitando o nosso laço.

Renato Parada/Divulgação
Divulgação

Aliada

Ecoa - O que é ser antirracista?

Lilia Schwarcz - O antirracismo é uma chamada de ordem que parte da Angela Davis [professora e filósofa socialista estadunidense] e que é retomado no Brasil pela Djamila Ribeiro [filósofa e feminista negra brasileira]. É uma palavra de ordem muito importante, que basicamente prega: não adianta você somente falar "eu não sou racista", é necessário agir contra o racismo. Ele tira as pessoas dessa zona de conforto, pois, para dizer que não se é racista é necessário fazer algo, a pessoa tem que praticar atos antirracistas.

E não é uma chamada moral apenas, é uma chamada pragmática. Eu tento me considerar uma aliada branca, mas nem sempre sou, porque o racismo é estrutural e pega em todos nós. Mas o que é que eu, como aliada (porque o protagonismo é das populações negras), faço em prol do combate ao racismo no Brasil? É isso o que eu entendo como antirracismo.

"Eu não sou racista", Nego Max

O que tem impedido as pessoas brancas de serem antirracistas?

Eu penso que de um lado o mito da democracia racial e de outro o mito da meritocracia, de o Brasil ser uma democracia. A falsa ideia de que as instituições estão funcionando é a primeira camada que faz com que a branquitude - que eu represento também - se coloque em um lugar de conforto. Porque eu não sou questionada, eu continuo vivendo a minha vida, continuo convivendo somente com pessoas brancas, na minha vida social eu só vejo pessoas brancas. E eu vivo nessa situação de conforto que eu chamo de "miopia cultural".

Eu trabalho sempre com dois verbos que parecem sinônimos, mas não são na verdade. O verbo "ver" e o verbo "enxergar": porque ver é uma faculdade biológica facultada a quase todos nós — nem todos e todas, infelizmente. Agora, enxergar é uma opção cultural.

A primeira questão é que a sociedade brasileira foi socializada na linguagem da desigualdade. Essa linguagem da desigualdade vem, na minha opinião, de um sistema escravocrata que foi muito enraizado no Brasil. O Brasil não só recebeu a maior parte dos africanos e africanas que tiveram que deixar compulsoriamente o seu continente, como o Brasil teve escravizados em seu território inteiro, ou seja isso faz muita diferença porque nós fomos construídos socialmente - porque a identidade é uma construção social e política também - nós fomos construídos na base da linguagem da desigualdade.

Os corpos aprendem, os corpos são instruídos. Os corpos brancos são socializados na língua do privilégio, e esse é um obstáculo muito grande. Como contornar? Com esse tipo de conversa. Questionando democraticamente, mas questionando essas estruturas que parecem naturais e biológicas quando na verdade não são naturais e biológicas: são históricas, são políticas, são econômicas.

A editora Companhia das Letras (da qual Lilia é cofundadora ) contratou no ano passado Fernando Baldraia como editor de diversidade. Você consegue enxergar mudanças vindas dessa contratação?

Eu acho que essa medida é fundamental e faz parte do meu antirracismo. A atitude não é só minha, mas eu posso dizer que influenciei muito nessa perspectiva, como você pode imaginar. A ação da Companhia começou a partir de dois censos. Um censo do catálogo e um censo dos funcionários da Companhia das Letras. Por quê? É quando as pessoas são perguntadas: onde estão os negros na sua empresa? E é respondido: "Estão aqui. Olha lá servindo o café, olha lá na faxina."

Depois que nós fizemos um censo do catálogo da Companhia das Letras, foi muito interessante ver quais são os países que dominam os nossos catálogos: Estados Unidos, Inglaterra, França. E também a pouquíssima presença de autores negros, negras, negres. De autores indígenas uma imensa ausência, e, se existia a presença de autores gays, existia uma imensa ausência de autores e autoras trans.

A entrada do Fernando - que é um intelectual que enriquece o diálogo e faz parte do meu grupo na USP, o Etno-História — foi muito importante porque nós queríamos que existisse uma pessoa negra engajada na luta antirracista em uma posição de comando. É claro que todos os editores precisam ser editores de diversidade, mas o Fernando está lá não somente para editar os seus livros, mas também para apontar problemas e sugerir soluções.

Esse é um movimento bastante novo, mas — se eu pensar no catálogo da Companhia das Letras há quatro anos e agora — é um catálogo muito mais diverso e muito mais aberto a autores e autoras negras, autores indígenas, autores trans. Pode melhorar? Pode melhorar muito.

"Amigo Branco" de Thiago Elniño

Reprodução

Não-protagonista

Uma linha de pensamento do movimento negro acredita que, em vez de uma pessoa branca realizar um trabalho em prol do movimento negro, é melhor que ela indique uma pessoa negra que já realiza ou pode realizar esse trabalho. Qual a sua opinião?

No momento em que a gente vive, eu considero que, sim, é hora de nós indicarmos intelectuais negros em vez de fazer. Ou indicar, ou fazer junto. Quando me falam 'você pode me dar uma entrevista sobre quilombos?', eu respondo: 'chamem o Flávio Gomes, ou outro intelectual negro, negra, negre. Um outro exemplo foi a curadoria da exposição "Histórias Afro-Atlânticas", onde eu tive o prazer de trabalhar com Hélio Menezes.

E qual a vantagem de eu estar lá? Para que eu ajude com meu lugar social para abrir espaços e também que eu possa evidenciar - na perspectiva de uma mulher branca - diferentes óticas do racismo.

Você trabalha bastante com a questão dos "quase pretos, quase brancos". Qual é a importância de os brancos não se reconhecerem como pardos e de reconhecerem os pardos como negros?

Cor aglutina fenótipo e origem social. Eu tenho dado muitas palestras sobre branquitude e as pessoas me perguntam: mas eu também me sinto discriminado, o que você pensa sobre isso? E eu digo: 'olha, não há comparação, porque nós falamos de um lugar social totalmente distinto. Branco é um lugar simbólico.

É preciso considerar que branco, em sociedades que tiveram um passado escravocrata, em sociedades marcadas por um racismo estrutural, é um lugar simbólico. Não importa se você está queimada de sol. Se eu estiver falando com você queimada de sol, eu continuo sendo branca. Porque o branco - a branquitude - é uma posição no mundo. É uma posição política, econômica e social.

O racismo brasileiro é um racismo anti-indígena, é antioriental, mas é sobretudo um racismo antinegro. É tão antinegro que nós não conseguimos falar nisso.

Primeiro de tudo, os pardos são negros. Eu já fui contra falar de pardos, mas aprendi com o professor Edson Cardoso que nós vivemos em um momento onde é importantíssimo falar de pardos. Como os critérios do IBGE, se você juntar pretos e pardos você dá na população negra e é por isso que você chega em um número realista, esses 56,4%. Como disse o professor Edson, na família dele alguns saem mais claros, outros mais escuros, mas todos são negros na hora do enquadro e na hora dos brancos poderem localizá-los.

Quando as pessoas falam para mim que a "linha de cor" no Brasil é muito borrada eu respondo o seguinte: pergunte para as autoridades. Pergunte para a polícia e pergunte aos porteiros, eles sabem te dizer exatamente quem é e quem não é.

+ Entrevistões

Fernando Moraes/UOL

Carmen Silva

Ela morou nas ruas de São Paulo e há 24 anos luta para que todos tenham moradia

Ler mais
André Rodrigues/UOL

Luiz Simas

Ele crê na festa como meio de reencantar mundo pós-Covid-19

Ler mais
Divulgação

Bela Gil

"Reforma agrária é das reformas mais importantes hoje no Brasil"

Ler mais
Topo