A internacional veganista

Sabrina Fernandes é a doutora marxista pop que une socialismo, veganismo e YouTube em uma frase

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

Sabrina Fernandes é ouvida por milhares de pessoas na internet. Quando ela fala, as pessoas escutam. Melhor, se declaram. "É sempre uma aula", escreve um fã. "Nutre minha alma ouvir esse ser", se derrama um outro ouvinte. Sabrina é marxista. Desde 2017, apresenta o programa "Tese Onze" no Youtube. O nome é uma homenagem à 11º tese sobre Feuerbach de Karl Marx. Escrito em 1845, o texto diz: "os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo". Pode-se dizer, então, que ela transformou termos políticos complicados, como "práxis" ou "materialismo histórico e dialético", em exemplos que não parecem saídos de um comitê soviético. Em vez da vida dura da classe trabalhadora europeia há 200 anos, a doutora em sociologia analisa em vídeos se é "Possível ser socialista e usar iPhone"; "A verdade sobre Karl Marx", "Comunismo para iniciantes", etc. O público apareceu. São mais de 300 mil inscritos no Youtube, cerca de 230 mil no Instagram e quase 50 mil no Facebook. A marca virou uma escola de educação política.

Sabrina da Fonseca Borges Fernandes tem 32 anos e é de Goiânia. Tem no currículo um doutorado em sociologia política pela Universidade Carleton, no Canadá. Ao marxismo mais marcante, acrescentou também o "ecossocialismo", em que o socialismo também deve salvar o meio ambiente enquanto combate a existência de uma sociedade de classes.

A pensadora lançou um livro sobre a urgência ambiental no mês passado, mas também escreve sobre feminismo, liberalismo, punitivismo, etc. A discussão é feita a partir de alguns pensadores marxistas que não conheceram sequer a internet, as fake news, o feminismo negro e o aquecimento global. Que, enfim, vivem sob o eterno risco de ficarem ultrapassados. Ela discorda. "Há marxistas de hoje e do passado discutindo de tudo e isso é possível justamente porque o marxismo não é a 'palavra' de Karl Marx, mas sim uma escola viva de pensamento e prática", pontua.

Em um tempo de conflitos entre esquerda e direita na internet, Sabrina, que na academia estuda justamente as discordâncias entre movimentos de esquerda, "levou um particular" com intelectuais para dar resposta a uma desavença sobre o ex-ditador soviético Josef Stalin, "fantasma" autoritário e violento que insiste em assombrar a prática real do socialismo, mesmo morto em 1953. Mas quem foi Stalin? O que é ecossocialismo? Feminismo? Machismo? Por que homem de esquerda não se acha machista? Sabrina explica de um jeito mais didático abaixo durante papo com Ecoa.

Você poderia definir o que é ecossocialismo e como ele é aplicado na prática?

O ecossocialismo é uma tradição mais recente do socialismo que compreende que o marxismo é uma perspectiva também ecológica e que não é possível construir socialismo em terra arrasada. Isso exige pensar o hoje e o amanhã a partir de uma visão que respeita o metabolismo da natureza e que concilia a luta por emancipação humana com a luta contra a destruição do nosso planeta. Uma sociedade ecossocialista só pode ser realmente realizada a partir de uma ruptura revolucionária, pois só assim para que as forças capitalistas não atropelem nossos avanços, e porque compreendemos que não é possível alcançar esses objetivos de emancipação enquanto a existência de uma classe dominadora de capitalistas for norma.

Qual é a base teórica que você usa para defender o ecossocialismo?

O ecossocialismo é uma perspectiva marxista que traz muitos ganhos da ecologia marxista e, em certos aspectos, também da vertente do marxismo humanista. Nós nos preocupamos com a superação da alienação, da opressão e da ruptura metabólica e fazemos isso a partir do materialismo histórico e dialético. O conceito de ruptura metabólica é muito importante para nós, porque explica como o sistema capitalista possui um modo de produção que é incompatível com os limites impostos pela natureza. Isso acrescenta à lista de razões pelas quais é impossível simplesmente reformar o capitalismo.

Um ecossocialismo passaria por um processo de revolução, como numa mudança prática e até abrupta da ideologia política dominante? Ou seria gradual? De que maneira poderia ser viabilizado?

Não creio ser possível atingir uma sociedade socialista sem um processo revolucionário. Processos graduais são parciais ao ponto que permitem que capitalistas sigam exercendo sua influência, o que facilita golpes e retrocessos. Para chegar ao ecossocialismo é preciso retirar a principal fonte de poder dos capitalistas e isso passa pela socialização dos grandes meios de produção. Assim teremos autonomia para produzir enquanto modificamos mais da sociedade. Isso, obviamente, não será aceito facilmente pelos capitalistas, portanto sabemos que haverá confronto.

De toda forma, sabemos também que uma revolução precisa ser preparada e consideramos, por exemplo, a importância de garantir as condições naturais para que possamos fazer uma revolução; ou seja, precisamos combater as mudanças climáticas hoje, mesmo antes de um processo revolucionário. Por isso, algumas políticas mais pontuais também são parte importante do caminho.

Com uma visão de mundo individualista, o socialismo ainda constrói o mundo a partir da mudança estrutural de sociedade. É possível, mesmo, fazer uma mudança estrutural apenas com atitudes de indivíduos em relação ao meio ambiente e desigualdade social?

É impossível fazer uma mudança estrutural pensando a partir das atitudes de indivíduos desagregados. Uma pessoa que simplesmente se conscientiza sobre a natureza e a desigualdade pode se fechar numa trilha de pequenas ações individuais fragmentadas que são facilmente apagadas ou cooptadas pelo sistema capitalista, na forma de modos de vida "verdes" vendáveis, ou pode se organizar coletivamente em espaços que buscam essa ruptura sistêmica. Com essa organização, vem responsabilidade e dedicação e vem também a possibilidade de agir para além de si mesmo, impactando mais e mais pessoas no caminho.

Isso, obviamente, é um processo. Você não dorme um dia e acorda sabendo Lenin de cor e organizando o bairro todo no outro. Por isso é muito importante investir em formação política e procurar se organizar, porque o aprendizado é prático e teórico ao mesmo tempo. No meu livro novo, "Se quiser mudar o mundo, eu tento dar um empurrão nesse sentido e espero que as pessoas entendam, sim, a importância das pequenas mudanças, mas que elas nunca serão suficientes se não mexermos nas estruturas.

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Há ações, como uniões internacionais de prefeitos, em defesa de que a pauta ambiental se torne uma agenda universal e fure a bolha de esquerda e direita. Você crê que há uma necessidade de se manter a pauta ambiental somente à esquerda? Qual sua opinião sobre o assunto?

A direita só se importa com a natureza no sentido de que é preciso conservá-la para que se possa explorá-la por outro ângulo. A direita que se preocupa com a mudança climática sabe que não é possível lucrar infinitamente em terra arrasada, então trazem suas ideias de mitigação do aquecimento global, mas desde que possam lucrar com essa mitigação também.

De certo modo, a direita "verde" faz oposição à direita antiambiental que sabe que não é possível lucrar em terra arrasada, mas tentará ir até o final. Mesmo na esquerda há quem considere o meio ambiente somente quando ele literalmente pega fogo. Por isso, proponho junto com outros ecossocialistas uma política radical para a sustentabilidade e enfrentamento às mudanças climáticas que realmente vai à raiz dos problemas: combate os interesses privados dos grandes emissores de gases de efeito estufa, proporciona empregos em uma transição sustentável a partir do setor público, valoriza serviços em vez de produtos cada vez mais descartáveis, fortalece a legislação ambiental e que reconhece a importância da reforma agrária e a demarcação de territórios indígenas no processo. Minha opinião é que a natureza não está à venda!

Você se apresenta como uma pessoa vegana, além do teu posicionamento político. O veganismo também é um ato político? Por que e como? Quais impactos pode ter na sociedade?

O veganismo é uma postura política que une o objetivo da libertação animal com a prática de se abster da exploração desses animais dentro do possível de cada pessoa. A imensa maioria da exploração animal hoje está interligada com o domínio do agronegócio, a destruição de biomas e até mesmo a mudança climática. Esses fatores já são razões para qualquer pessoa se sensibilizar com a importância de uma produção de alimentos voltada para saciar a fome com qualidade e não para enriquecer a classe ruralista. Tem quem pensa, por exemplo, que a monocultura de soja beneficia veganos, mas a grande parte da soja, especialmente em farelo, tem destino direto para a ração de animais que serão alimentos dos não veganos.

Por isso é importante olhar mais a fundo e compreender essas conexões se pretendemos encontrar uma solução. Soma-se a tudo isso a terrível crueldade animal nesta indústria, onde animais são reproduzidos através de intervenção humana para o único objetivo de suprir uma demanda de alimentos também nutrida por marketing e incentivos comerciais.

A libertação animal é uma pauta urgente, e o veganismo demonstra que é possível sim comer bem sem animais no prato e usar cosméticos sem testes em animais. O que está em jogo é alterar a estrutura de poder para que todas as pessoas tenham o que comer e aí possam escolher retirar a exploração animal da sua vida. Por isso mesmo, é necessário um veganismo político, anticapitalista, popular e que tenha a soberania alimentar com uma condição necessária para a sociedade livre de exploração.

Como aconteceu a sua transição para o veganismo? Você sente que o movimento tem ganhado força? A que você atribui isso?

Eu já era ecossocialista, mas antes só conhecia o veganismo liberal ou individualizado, onde parecia ser apenas um modo de vida alternativo. Com o tempo, veganos mais politizados foram me mostrando sobre a crueldade animal e passei a pesquisar sobre a relação dessa crueldade com os lucros de quem também explora seres humanos, embora de outra forma. Eu me tornei ovolactovegetariana, retirando primeiramente a carne do meu prato, mas desde o princípio o objetivo final era o veganismo. Posso dizer que foi bem mais fácil que pensava que seria. Vejo muitos veganos politizados e principalmente periféricos mostrando essas conexões e as possibilidades da luta pela libertação animal.

Num país como o nosso, creio que as grandes referências em veganismo precisam vir da periferia e da luta, pois representam a maioria da população, e não do mundo elitizado.

Sabrina Fernandes

Karime Xavier/Folhapress

Você trabalha com Youtube, num cenário em que a discussão política é acirrada e ardilosa. Muitas mulheres compartilham comentários violentos que recebem por ter posicionamentos políticos firmes. A sua experiência também é essa? Isso te afeta de alguma maneira?

Enfrento machismo vindo da direita e da esquerda. Da direita, não espero muita coisa. Mas é decepcionante ver como há homens na esquerda que insistem em desqualificar mulheres em vez de debater seus argumentos. Isso é ainda muito mais visível quando a mulher é negra, pois há quem não consiga ver na mulher negra uma grande referência intelectual. Isso é reflexo do abismo racista em que nossa sociedade ainda se encontra, inclusive nos espaços acadêmicos.

Na minha experiência pessoal, já tive momentos em que fiquei abalada por alguns ataques, mas hoje sou bastante firme no princípio em que tenho direito de escolher meus interlocutores dentro da esquerda organizada. Se um militante é machista comigo e insiste nisso em vez de debater as nossas diferenças políticas diretamente, simplesmente me retiro. Muitos desses caras têm tempo demais no colo e tempo é uma coisa muito preciosa pra mim. Prefiro investir em terreno fértil.

Um dos temas mais discutidos no momento é saúde mental. O que você faz quando não está estudando ou desligada da internet? É possível se desligar da internet hoje em dia?

Como trabalho com internet, eu considero o uso da Internet de acordo com as minhas funções de trabalho. Tem a função de produção de conteúdo e a função de pesquisa, e organizo meu tempo para cumpri-las. Há redes, como o Twitter, que podem ficar muito tóxicas e desfavorecer o debate crítico, então escolho aplicar meu tempo de um jeito mais eficiente e que me preserva ao mesmo tempo. Nem sempre dá certo, mas creio que é um bom objetivo a ter.

Com a pandemia, o processo de distanciamento social tornou as redes o principal espaço de socialização para muita gente, mas é preciso dosar um pouco, porque a internet faz parte de como aprendemos, nos comunicamos e nos relacionamos. Mas também pode ser um espaço de muito conflito desnecessário, principalmente quando as pessoas utilizam da proteção do anonimato, que pode ser justa nesse mundo de vigilância, para atacar uns aos outros covardemente, que é um dos piores usos possíveis.

A esquerda conseguiu compreender de que maneira se deu a ascensão do bolsonarismo? Qual sua leitura para o futuro, em termos ideológicos, para nosso país e o mundo?

Eu acredito que no meu primeiro livro, "Sintomas Mórbidos", apresento vários elementos da conjuntura que foram férteis para o bolsonarismo, principalmente a despolitização e a desmobilização que apagaram alternativas reais à frustração da população. Todavia, há sempre discordâncias na esquerda, especialmente quando avaliamos o papel dos partidos. Mesmo assim, algo que me preocupa é quando se busca responsabilizar somente a esquerda pela ascensão do bolsonarismo, quando a direita teve imenso mérito em sua articulação para despolitizar, nas fake news, no uso de pânicos morais conservadores, na inserção em periferias por meio do fundamentalismo religioso e até pelo uso de forças de coerção, como é o caso da direita ligada às milícias. É uma questão bastante complexa.

Para o futuro, não posso opinar com certeza. Projeções nas ciências sociais são sempre limitadas por conta da imensidade de fatores que influenciam um caminho histórico, só podemos ver tendências. Mas as ciências sociais possuem o potencial de influenciar coletivamente em uma direção ou outra, e é justamente por isso que costumam ser perseguidas por governos de direita. De qualquer forma, sigo pessimista para os próximos anos, mas o otimismo abre brecha sempre que encontro mais pessoas se interessando por política com um viés crítico. Depois de escrito, percebi que um dos meus desejos em publicar o "Se quiser mudar o mundo" era justamente de tentar influenciar esse interesse e fomentar nosso otimismo da vontade.

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

O que te incomodava no mundo, e pessoalmente, para você estudar marxismo?

A pobreza, sobretudo a realidade de pessoas em situação de rua, sempre me incomodou. Mas eu achava que a solução para isso seria uma sociedade mais caridosa e talvez um ou outro programa social local. Questões ambientais também sempre me pareceram importantes, especialmente porque desde nova me senti conectada ao meio rural. Não foi nada disso que me levou ao marxismo, não era uma questão de direcionamento a partir de um incômodo político, mas sim de curiosidade comum na graduação, onde pude ler Marx mais aprofundadamente. Eu não fui atrás do marxismo; felizmente, ele foi trazido até mim.

Já sentiu que, talvez, existissem outras respostas para a nossa sociedade e quais eram elas? Se sim, como fez para manter-se marxista?

Minha obrigação, se pretendo ser uma pensadora crítica, é avaliar as diferentes respostas que são apresentadas na sociedade. Mas, sinceramente, eu passei toda a minha juventude ouvindo narrativas de criminalização dos movimentos sociais, de forte anticomunismo, e que o capitalismo era a única alternativa. Essas são as respostas padrão que chegam aos nossos ouvidos. Foi o marxismo que apareceu para criticar as respostas anteriores e, de fato, é assim que o marxismo opera. O marxismo é vivo e precisamos saber do que criticamos. Eu fiz economia, por exemplo, então obviamente ouvi outras versões, só não me foram suficientes para assegurar o objetivo que apontei de emancipação humana e fim da destruição desenfreada da natureza.

Karl Marx consegue explicar alguma coisa sobre a sociedade conectada e hiperbólica atual? É possível, a partir da teoria marxista, explicar fenômenos como as fake news, por exemplo?

A partir da teoria marxista podemos aprender sobre as ideias dominantes da classe dominante, sobre o papel do conservadorismo moral na estrutura social, sobre as consciências conflitantes da classe trabalhadora diante da hegemonia burguesa...

Tudo isso reverbera hoje, e é impossível analisar as fake news sem falar de ideologia. Se histórias absurdas parecem verdadeiras pras pessoas, é porque existe um lastro de desconfiança e de vício de confirmação que se reproduz no senso comum da sociedade. Posso trabalhar com Marx e [Antonio] Gramsci, por exemplo, para lidar com isso. Se a tecnologia é empregada com intuitos capitalistas e imperialistas, posso confiar em [Herbert] Marcuse e [Vijay] Prashad na análise. Se há um conflito sobre democracia, posso trazer Rosa Luxemburgo comigo. Se o encarceramento em massa é crescente, tenho Angela Davis na lista de referências. Se o racismo estrutural é tão presente hoje, preciso de Clóvis Moura para compreender essa realidade.

Há marxistas, de hoje e do passado, discutindo de tudo, e isso é possível justamente porque o marxismo não é a "palavra" de Karl Marx, mas sim uma escola viva de pensamento e prática que se estabelece com o pontapé de Marx e [Friedrich] Engels no método do materialismo histórico e dialético.

Se hoje, em 2020, eu falo de mudanças climáticas, não preciso procurar em Marx sobre algo tão específico, já que seria anacrônico, mas posso me basear no método e em elementos de sua análise sobre a natureza, na atenção de Lenin à conservação, e no histórico de luta socialista contra o imperialismo, que também é um imperialismo antiecológico, para me orientar e também criar novas sínteses.

Sabrina Fernandes

Por que parece haver uma semelhança, e até mesmo contatos diretos, entre um ditador como Kim Jong-un e Donald Trump? Ou até mesmo entre [Nicolás] Maduro e Trump, como no jeito de lidar com a pandemia? O que eles têm em comum, mesmo partindo de fontes políticas diferentes?

Para mim, Donald Trump é um ditador da burguesia, mesmo que o regime político estadunidense ainda se dê nos moldes de uma democracia liberal. Digo isso, porque é sempre bom a gente pontuar que como compreendemos cada regime político parte de parâmetros. Como eu enxergo a democracia é diferente de como um liberal enxerga a democracia e também de como Eduardo Bolsonaro pensa que a democracia é ou deve ser.

Há eleições nos Estados Unidos, mas quão livres elas são diante da capacidade do poder econômico de alterar rumos de campanhas e orientar votos através da internet? Ao mesmo tempo em que enxergo o ecossocialismo como uma alternativa mais desejável do que a realidade da Coreia do Norte, acredito que existem rios de distância entre os desafios de uma sociedade que busca o socialismo num ambiente cercado por forças imperialistas e as ações do homem que lidera um estado tão militarizado, intervencionista, imperialista e evidentemente responsável por assassinatos de lideranças de esquerda ao redor do mundo, como é o caso de Trump e dos Estados Unidos. O mesmo vale para o caso de Maduro.

Para falar de Maduro e Trump, sou obrigada a falar das ameaças de intervenção de Trump na Venezuela - mas, até onde eu sei, Maduro não está empenhado em alterar os resultados eleitorais nos Estados Unidos - e mesmo se estivesse, não possui as ferramentas que Trump possui. Então, sobre contatos diretos, Henrique Capriles, oponente de direita à Maduro, afirma estar em contato direto com o governo Trump a respeito das eleições venezuelanas.

Houve um debate acirrado entre Jones Manoel e pensadores, como Celso Rocha de Barros, que chamam a leitura de Manoel de [Domenico] Losurdo como uma apologia à política de estado de Stalin. Em sua opinião, o que Stalin representa na história da esquerda política?

Primeiro, não vou comentar nada específico ao Celso, com quem já conversei sobre o assunto. Prefiro abordar o contexto geral. Jones e eu somos amigos pessoais e isso significa duas coisas: temos total liberdade para discordamos um do outro, pois nos respeitamos intelectualmente, e, também por isso, repudiamos distorções.

Mesmo que eu discorde de Jones no que significa uma política anti-stalinista em si, por exemplo, já que eu me classifico como anti-stalinista e ele como não-stalinista, muito me perturbou a tentativa contínua de deslegitimação (muitas vezes racista) à qual ele foi submetido durante tal polêmica. Losurdo não é um dos meus pilares referenciais neste assunto específico, já que avalio Stalin via ecossocialismo, via Marcuse, via [Isaac] Deutscher, via [Moshe] Lewin, para citar alguns, mas diria que na maioria das vezes, a polêmica cresceu em cima de uma distração. Losurdo apresenta bons argumentos sobre as facetas cruéis do liberalismo, mas muitos liberais (mais à direita e mais à esquerda) desviaram o assunto para Stalin e a posição de Losurdo e de Jones sobre Stalin como forma de abafar a crítica contundente ao liberalismo. Inclusive, pouco se falava sobre a política de estado de Stalin, e sim sobre a conduta específica de Stalin, o homem, sob viés quase que psicológico.

Isso reduz a possibilidade de explorar até mesmo o que considero profundamente problemático no stalinismo, por exemplo, as perseguições políticas dentro da esquerda, pois tende a excluir o contexto conflituoso em que o stalinismo se edificou. Nunca vamos conseguir debater um fenômeno complexo se só permitirmos clichês simplistas e uma historiografia limitada e anticomunista, mas o liberalismo não me parece pronto para avançar nesse caso.

Na política parece haver a parte teórica, filosófica, mas que na prática não tem funcionado muito bem. É um dos casos do PT, que nasce com matriz de esquerda antissistêmica mas que se enrosca em casos de corrupção e forma até alianças com grupos mais à direita. É possível fazer uma política idealista que seja viável e possa se sustentar na vida real?

Esse desalinhamento entre teoria e prática é o que causa o que chamo de crise de práxis na esquerda, mas não é exclusivo da esquerda brasileira ou do PT. O Partido dos Trabalhadores possui um legado importante na esquerda e há muitos militantes do PT que cumprem um papel essencial de formação política e mobilização, mas os governos do PT se enroscaram (é um bom verbo mesmo para se usar aqui) em uma série de problemas relacionados ao que chamamos de "transformismo", em que um partido de esquerda se adequa à ordem em vez de desafiá-la diretamente. Não há uma só razão para isso.

Podemos falar, por exemplo, em como Lula quis garantir a governabilidade através dos poderes institucionais, quando o povo poderia ter sido o maior pilar de sustentação do governo. Podemos falar também de uma certa melancolia no PT, onde se cria que não seria possível chegar mais longe do que o governo federal, naqueles moldes, de forma que seria preciso conciliar com as classes dominantes para garantir alguns outros ganhos sociais.

Como bons materialistas (históricos), nós marxistas entendemos que é preciso construir as condições para exercer o poder, mesmo o poder limitado de um governo federal sob o capitalismo, e para isso é preciso estremecer algumas bases e usar da mobilização como o maior trunfo possível de governabilidade. Não significa que golpes se tornarão inevitáveis, mas pelo menos não seremos nós a convidar golpistas para sentar conosco em nossos governos.

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