Ressurreição de um rio

Após décadas de promessas, rio Pinheiros pode sonhar com futuro menos poluído em SP; água potável é utopia

Matheus Pichonelli Colaboração para Ecoa, de Campinas (SP) Gabriel Cabral/Folhapress

Um rio navegável, sem odor, com águas menos turvas, vida aquática e rodeado por árvores, restaurantes, equipamentos culturais e esportivos. E, claro, muita gente ao redor.

Para projetar o futuro do rio Pinheiros é preciso lembrar que ele já teve um passado. E o passado era um rio cheio de curvas e cercado de araucárias onde os habitantes da futura maior cidade do país podiam navegar, praticar esportes, lavar as roupas e pescar.

Resultado de um século de crescimento desenfreado, quando a população de São Paulo saltou de 230 mil habitantes, em 1900, para os mais de 10 milhões atuais, o rio Pinheiros passou, ao longo do século passado, por inúmeras intervenções que o transformaram em um lago sem vida. Foi canalizado, retificado, teve a calha aprofundada e suas águas foram bombeadas, no sentido inverso do curso natural, em direção à represa Billings. O bombeamento precisou ser interrompido no fim dos anos 1980 por causa da poluição —que ainda persiste.

Em 2019, primeiro ano de sua gestão, o governador João Doria (PSDB) prometeu despoluir o rio Pinheiros até dezembro de 2022. A meta era (e ainda é) reduzir o esgoto lançado em seus afluentes e melhorar a qualidade das águas e revitalizar seu entorno. Com o projeto, que prevê investimento em torno de R$ 4,5 bilhões, contando recursos privados, o governo quer incentivar empresas a instalar cafés, bares, restaurantes, museu e até um cinema ao ar livre às margens do rio. E transformar o local em uma versão paulistana de Puerto Madero, em Buenos Aires.

Tudo isso é viável?

A história da revitalização de outros rios mundo afora, como o Cheonggyecheon, em Seul (Coreia do Sul), e o Manzanares, em Madri (Espanha), mostra que sim, isso é viável. Embora sejam céticos em relação ao prazo, especialistas ouvidos por Ecoa veem com bons olhos a proposta, que leva em conta as especificidades da capital paulista e difere de métodos anteriores (e que fracassaram) de flotação.

"A parte mais difícil de despoluição do rio talvez seja coletar de forma adequada o esgoto. É a etapa que exige mais recursos e mais tempo", afirma José Carlos Mierzwa, professor do departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica (Poli) da USP.

Um dos eixos do projeto de despoluição é conectar mais de 500 mil imóveis (ou 3 milhões de pessoas) à rede de esgoto de São Paulo. Em 15 de outubro o governo do estado contabilizava 424.211 casas conectadas e mais de 46 mil toneladas de lixo removidas do rio.

O plano é evitar que o esgoto produzido nos locais chegue até o rio. No caminho, porém, estão ocupações irregulares em áreas informais onde quase não há espaço para a instalação da rede.

Nesses locais, que Marcelo Reis, idealizador do movimento Volta Pinheiros, descreve como um cenário medieval, o projeto prevê a implantação, em cinco sub-bacias, das chamadas Unidades de Recuperação de Qualidade (URQs), que recolhem a água contaminada, fazem o tratamento e só então a devolvem ao rio.

Gabriel Cabral/Folhapress Gabriel Cabral/Folhapress

Todo mundo que viaja para fora do país percebe como os rios dessas cidades são locais de interesse, com uma variedade de opções para você usufruir. Rios que no passado eram poluídos foram revitalizados. Isso traz um ganho econômico muito significativo. O rio Charles, em Boston (EUA), era extremamente poluído no começo da década de 1980 e hoje tem até competições de remo.

José Carlos Mierzwa, professor do departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica (Poli) da USP

Divulgação/Volta Pinheiros

Rio com vida aquática

Se for visto em perspectiva, não faz tanto tempo que os rios que cortavam a capital também recebiam competições do tipo, como lembra Douglas Mattos Siqueira, diretor do Instituto Navega São Paulo. "O rio começou a perder qualidade na década de 1970", diz.

Hoje nem o mais otimista dos paulistanos imagina que esportistas voltarão a competir nos rios paulistanos no futuro próximo. Nadar e pescar, idem. "A água não será potável", admite o governo do estado na página oficial do projeto.

"O que se busca é atingir uma qualidade da água que, se não dá pra nadar, que ao menos tenha um nível de oxigenação adequado para a vida aquática. Sou otimista. Não com o prazo de entregas, mas quanto ao programa em si", diz Siqueira. Mierzwa reforça essa visão: "Não dá para garantir que vai ter um rio todo limpo, mas sim uma melhoria nos aspectos estéticos e mau odor, principalmente no verão", afirma Mierzwa.

Em abril deste ano, Doria compartilhou um vídeo em suas redes mostrando a "volta de peixes" no rio. O vídeo causou comoção, mas o milagre dos peixes não tem relação (ainda) com as obras.

É que o local onde foram feitas as imagens, segundo a professora e pesquisadora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) Marta Marcondes, é a saída do Córrego do Sapateiro, que passa dentro do Parque do Ibirapuera. "Como na entrada tem uma estação de tratamento de esgoto, o córrego, que vem da Vila Mariana, chega ali, é limpo e vai para os lagos do parque, onde tem muitos peixes que constantemente saem e vão parar lá. Como tem gente de olho só agora no rio Pinheiros, foi uma descoberta", explica a especialista.

Marta Marcondes acompanha há anos os níveis da qualidade das águas do rio Pinheiros. Em suas medições, não foi observada melhora significativa de 2019 a 2021 nos índices coletados em três pontos (Jaguaré, Cidade Jardim, João Dias). Os índices levam em conta características como turbidez e DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio), ainda muito altos. Em alguns índices, a situação até piorou.

Isso mostra que há um trabalho longo ainda a ser feito.

Como está o projeto?

  • Saneamento

    80% da meta atingida, com 425 mil imóveis conectados à rede de esgoto

  • Tratamento

    Criação de estrutura para tratamento de afluentes em cinco sub-bacias. Os contratos foram assinados, as obras ainda estão em andamento.

  • Manutenção

    475 mil metros cúbicos de sedimentos (o equivalente a 22 mil caminhões basculantes) foram retirados por meio de desassoreamento com a ajuda de barcos, redes e bóias

  • Lixo removido

    46.517 toneladas, entre garrafas pet, pneus, plásticos e até bicicletas, foram tiradas do rio

  • Revitalização

    Estão previstas obras para revitalizar diferentes trechos ao longo do rio, como o parque Bruno Covas e a Usina da Traição. Os processos estão entre contrato assinado e obras iniciadas. A meta é que a última etapa seja entregue em junho de 2022

Divulgação/Navega São Paulo Divulgação/Navega São Paulo

Ação tem de ser conjunta

Segundo Mierzwa, da USP, para a despoluição ocorrer será necessária a participação da prefeitura. "A qualidade das águas depende de uma cidade planejada, que impeça ocupações irregulares e torne possível a implantação da estrutura de saneamento". E o problema de São Paulo, afirma, é a falta de planejamento de uso e ocupação do solo. "Isso acabou trazendo um déficit na coleta de esgotos. A perspectiva é que o projeto traga melhorias da qualidade das águas, pelo menos dos afluentes", diz.

O especialista lembra também que o trabalho de despoluição envolve questões como escoamento superficial da drenagem na época de chuvas, quando as águas das ruas correm para o curso dos rios. Isso envolve iniciativas para conter a carga da poluição a longo prazo. Daí a importância dos parques lineares. "Vai ter que ser uma ação conjunta."

Douglas Mattos Siqueira, do Navega São Paulo, cita a importância de projetos de conscientização para uma mudança de fato. Não dá, afinal, para investir em assoreamento enquanto a população segue despejado lixo diretamente no rio.
O instituto promove expedições de barco pela cidade para fazer com que as pessoas, sobretudo crianças e adolescentes em idade escolar, aprendam a enxergar os rios.

"Muitos nem sabem quem que o rio existe. Eles saem do passeio impactados pela navegação, se engajam, contam o que aprenderam para os pais, para a comunidade", diz. "Nosso papel é fazer com que as pessoas enxerguem o rio em uma cidade que os aterrou para deixar o carro passar."

Divulgação/Volta Pinheiros Divulgação/Volta Pinheiros

Trabalho de longo prazo

Siqueira lembra que projetos anteriores de despoluição dos rios em São Paulo foram descontinuados conforme mudavam as gestões. Esse histórico de abandono serve como alerta. "Se a despoluição não ocorrer em 2022, que venha em 2030", diz.

Para o professor Mierzwa, tudo vai depender da velocidade de implantação das obras. "O maior gargalo é a implantação das unidades recuperadoras. A expansão da coleta já anda de forma mais acelerada. O desassoreamento já podemos ver, com as barcaças circulando de lá pra cá. A grande questão é a implantação das estações."

Um ponto elogiado pelos especialistas é o modelo de performance para a contratação das obras de saneamento. Por este modelo, a remuneração das empresas vencedoras das licitações depende do resultado, baseado em números de imóveis conectados e na qualidade das águas. "Isso possibilita uma chance maior de dar certo", avalia Mierzwa.

Marcelo Reis, publicitário que já elaborou diversas ações para chamar a atenção da população sobre a situação do rio —como entregar frascos de perfume com a água do Pinheiros para personalidades, lançar bonecos infláveis em formas de cocô no local e exibir, na avenida paulista, bustos de governadores feitos com seu lodo — considera "eleitoreira" a meta de entrega do novo rio Pinheiros em 2022. A complexidade da cidade explica o ceticismo.

"Quero pagar a língua. O projeto, em si, é muito interessante e já devia ter sido feito há muito tempo. Só que 50 anos de problemas não se resolvem em quatro. É um trabalho de longo prazo que espero que o próximo governo assuma."

Por WhatsApp, ele envia ao repórter uma imagem produzida por um designer em 3D do rio Pinheiros despoluído com barcos, caiaques, decks e pessoas caminhando por margens arborizadas. "Já pensou? É um sonho", diz. Por enquanto ainda é.

Leonardo Vilela/Volta Pinheiros Leonardo Vilela/Volta Pinheiros

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