As outras economias

Novas teorias questionam atual sistema e planejam um mundo em que cuidado e confiança movam as pessoas

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo

A economista Gabriela Mendes Chaves provoca: "O capital é colaborativo...entre si. As grandes empresas são solidárias, montam oligopólios e concentram a renda." Por isso, ela defende que as periferias criem sistemas econômicos, com o nome que seja, para fortalecer quem foi escolhido para o papel de vulnerável. "O dinheiro tem que circular dentro da comunidade, de forma horizontal e transparente. Tem que haver um esforço para criar um ambiente de empreendedorismo social e negócios de impacto no território. Exemplos não faltam."

Um deles é tocado por Thiago Vinícius Silva, que montou até um banco comunitário no distrito do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. "O pobre sempre fez economia colaborativa, desde a época do escambo. Vai falar que não é economia em rede fazer mutirão e bater laje na casa do vizinho? Onde os outros enxergam isso como inovador, aqui é a vivência diária da periferia", sentencia o ativista que toca uma incubadora que ajuda mais de 300 microempresas da região.

Circular, solidária, regenerativa, compartilhada, seja qual for. Primeiro de tudo: essas economias não concorrem entre si. Afinal, quem cultua a concorrência é a economia dominante. As ideias dessas economias se misturam. Ou, como preferem se referir, uma se aninha na outra. O conceito de aninhamento reforça que um sistema está contido no outro e há neles uma promessa de futuro.

Cada um desses formatos tem um enfoque. A colaborativa prioriza formar conexões. A solidária reforça a distribuição justa na cadeia produtiva. A regenerativa antepõe recuperar habitats e culturas enquanto produz. O que muda é a entrada no assunto, mas todas buscam uma saída para o labirinto que a humanidade se meteu priorizando lucros elevados, crescimento contínuo e a cultura da eficiência.

A economia solidária é a alternativa que ganhou mais prestígio oficial no Brasil e também a que mais sofreu retrocesso com a guinada à direita que a administração do país deu nos últimos anos. Afinal, seu criador foi Paul Singer, economista de origem austríaca que esteve entre os fundadores do PT e foi o titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária entre 2003 e 2016.

Formulada em 1996, ela é um modelo de organização econômica do trabalho baseado na cooperação e na autogestão. Tem o viés colaborativo porque prioriza os grupos, e também possui um lado regenerativo porque incentiva os negócios locais, causando menos impacto ambiental.

Logo no primeiro mês do governo de Jair Bolsonaro a secretaria foi reduzida a um departamento e seu orçamento minguou. Isso afetou em cheio os bancos comunitários, que recebiam verbas dessa pasta.

O Banco União Sampaio, fundado em 2009 por Thiago, reduziu seus microcréditos a praticamente zero, e a moeda local, o sampaio, também foi parando de circular. Essa divisa alternativa funcionava para dinamizar os comércios e os serviços do entorno.

Mas Thiago não se apequenou. Decidiu apostar em outro ramo da economia solidária: a alimentação. Fez um curto circuito com produtores orgânicos da região de Parelheiros e tirou intermediários do caminho para oferecer vegetais sem agrotóxico e com desconto para a população periférica. Ele montou uma loja de orgânicos e um restaurante vegetariano onde "tinha dez farmácias e nenhum sacolão". O cenário mudou com sua ação.

"Como o povo vai entender de economia se não consegue fazer nem as quatro operações da matemática? Os poderosos querem afastar as pessoas da economia, assim como da política, falando que é coisa de corrupto. Mas política e economia são assuntos legais pra caramba e fazem a gente entender a realidade. É fundamental ocupar a economia", argumenta.

A boa notícia é que várias prefeituras e Estados, como a Paraíba e o Paraná, estimularam recentemente programas de economia solidária - e há legislações sobre o tema tramitando nas casas legislativas pelo Brasil afora.

Acompanhar crianças, idosos, pessoas com deficiência, além de dar conta dos trabalhos domésticos de cozinhar, limpar e consertar. A economia do cuidado é invisibilizada e praticada majoritariamente (76% do total) por mulheres em todo o planeta, muitas delas vindas de minorias e de países estrangeiros.

"A pandemia mostrou a importância desse trabalho. Se não, quem cuidaria das crianças sem escola durante o ano todo? A esfera do cuidado precisa ser valorizada para haver uma melhor distribuição de renda no país, afinal, é uma massa gigantesca de mulheres que é mal paga e sem proteção social", questiona Gabriela.

Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), na atualidade há 2,1 bilhões de pessoas que precisam de cuidado no planeta, sendo que desses 1,9 bilhão é composto por crianças com menos de 15 anos. Levando em conta 12,5 bilhões de horas diárias de atenção, o valor da economia do cuidado chegaria ao montante gigantesco de US$ 10,8 trilhões (perto de 9% do PIB global).

"Além de permitir um crescimento econômico, a oficialização dessa economia promoveria a igualdade de gênero", aponta Gabriela. Mas o assunto não é tão simples. As empregadas domésticas ganharam lei que assegurava carteira assinada em 2015, mas passados cinco anos apenas 10% estão nessa condição.

O geógrafo Felipe Cunha, autor do livro "Economia Colaborativa", acredita que as novas economias vão se encontrar no futuro. "Estamos vivendo uma mobilização das comunidades que estão descobrindo suas potências, deixando o papel do Estado provedor para o segundo plano. E são essas ações populares são tão importantes que acabam guiando as políticas públicas depois. Agora, essas iniciativas precisam ganhar escala", afirma.

Uma economia mais preocupada com as margens dos rios do que com as margens de lucro. A cultura regenerativa se apresenta como evolução do conceito de sustentabilidade em um mundo em que a humanidade tem que devolver espaço para a natureza. Para os seguidores do pensamento circular, é uma continuação deles.

Esse sistema dá muita ênfase ao design e o planejamento, para que a produção humana aumente a vitalidade dos ambientes em que atua. Usando metáfora ecológica das bordas, uma das figuras que os defensores dessa escola usam é o mangue, que aproveita as energias cruzadas do mar e dos rios para servir como local de fertilidade e renovação.

Outra preocupação é o legado de cada projeto, tanto para as futuras gerações quanto para as regiões próximas ao empreendimento. Por isso, usam as teorias sistêmicas e de complexidade em seus projetos. Nessa visão, o mundo é um sistema vivo e para dar conta dele é preciso métodos, dados e ações conjuntas. O objetivo final é a co-evolução da humanidade e as de outras espécies animais e vegetais.

Podemos e devemos alinhar nossa teoria e prática econômica com nossa mais recente compreensão de como o universo e nossa humanidade realmente funcionam

John Fullerton, analista econômico norte-americano e autor do livro "Regenerative Capitalism"

Não adianta a economia crescer a custa de cortar suas florestas, receita de países subdesenvolvidos como Brasil e Indonésia em anos recentes. A escassez programada de bens livres é um dos meios mais destrutivos que as teorias econômicas vigentes aplicam, desde a mais liberal até suas versões mais estatizantes.

"Até o desenvolvimento sustentável, esse termo chique da moda, trabalha com a lógica dos bens escassos. É só ver como se cobra mais caro por uma embalagem de papel reciclado ou por um vegetal orgânico. Temos que abandonar essa lógica e substituir pelos bens comuns, livres e abundantes", afirma Paulo Roberto da Silva, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e autor do livro "Economia, Consciência e Abundância"

É só ver o que aconteceu com a água nos últimos tempos, cada vez mais se transformando em uma mercadoria, precificada, comerciável, com os rios poluídos e as fontes privatizadas. E outros bens comuns também podem ir nesse caminho, como o sol e o ar - é só pensar como nas grandes cidades os apartamentos com mais insolação e ventilação são mais valorizados.

Silva propõe sair desse beco da monetização de tudo o que não tinha preço. "A escassez só provoca desigualdade. Há poucas pessoas privilegiadas por essa lógica, e, no final, ela não é boa nem para ricos muito menos para pobres", aponta Silva.

Essas outras economias se apresentam como alternativas, como evoluções ou como guinadas na economia vigente e corrente. Mas há também uma grande força de assimilação delas. O exemplo mais recente foi a economia compartilhada, que se apresentou como uma revolução horizontal no consumo por volta de 2015, mas que acabou em grande parte absorvida em aplicativos como Uber e iFood, que centralizaram negócios (alguns com ações na bolsa, outros com aportes bilionários de fundos de investimento) e precarizaram as relações de trabalho para lucrar.

"O mainstream cooptou e transformou a ideia do compartilhamento em marketing, em algo charmoso. Mas há exemplos positivos como o linux, o creative commons e o wikipedia, que usam a estrutura de indivíduos em colmeia no lugar de instituições e corporações no centro", opina Cunha.

"Antigamente, antes do industrialismo, as tecnologias de comunhão eram mais profundas e avançadas. Mas esse cenário quer voltar de novo agora em uma sociedade pós-industrial", completa Cunha, que atualmente estuda na Itália, na Bélgica e em Portugal iniciativas de base comunitária que estão ganhando escala.

A economia colaborativa busca na natureza exemplos de relações simbióticas no mundo animal e vegetal para mostrar que a cooperação fortalece os ambientes - ao contrário da interpretação de um darwinismo raso para justificar a competição dentro da sociedade humana, a tal "lei do mais forte".

Esse raciocínio surge com intensidade nas periferias do Brasil. "Várias quebradas de São Paulo, Rio, Salvador, Belo Horizonte, Recife e outras cidades estão dando protagonismo para os negócios dentro delas. A proposta é integrar os empreendedores para dinamizar a economia no território", sentencia Mendes.

Um exemplo disso foi a digitalização das moedas sociais, criadas por bancos comunitários. O Brasil tem mais de 120 desses bancos, fortes especialmente no Norte e Nordeste - o Banco Palmas, fundado em Fortaleza (CE) em 1998, conta atualmente com o "e-dinheiro", aceito para pagamento por "maquininhas" nos bairros Palmeiras e São Cristóvão.

Substituir o modelo linear de "extrair, produzir, descartar" pelo ciclo de manter produtos em uso, eliminar resíduos e regenerar sistemas naturais. Várias teorias se adaptam a essa lógica como a economia da performance, a ecologia industrial, o capitalismo natural e a filosofia do design Cradle to Cradle (Do Berço ao Berço). A base principal é imitar o movimento cíclico da biologia nos processos humanos.

A economia circular é adotada por muitas empresas e cidades. A prefeitura de Toronto (Canadá), por exemplo, só contrata empresas que adotam essa política. Na Finlândia, os restaurantes são responsáveis pela reutilização e compostagem dos alimentos. Shenzen, na China, eletrificou toda a frota de transporte coletivo atrás de um modelo com energia renovável. Mas o maior exemplo é Amsterdã, capital da Holanda, que adotou a chamada "economia do donut", que também obedece o formato circular, para resolver seus problemas sociais e ecológicos.

"A economia deve possibilitar a satisfação de nossas necessidades e desejos. Mas, para isso, é fundamental o autoconhecimento. De outra forma, as agências de publicidade é que vão ditar o que você quer, te transformando em um ser de carência permanente. A maioria dos problemas sociais e ambientais são causados pelo afastamento de nós mesmos", opina Paulo. "Somos animais que querem coisas que a humanidade nunca teve, sacrificando a água pura para ter comunicação global ilimitada ou poluindo o ar para ter um turismo de massa. O ser humano vai ter de escolher o que quer para seu futuro."

Por seu lado, Felipe acredita que as mudanças econômicas começam com ações e escolhas feitas por nós mesmos. "Quando era garoto, eu tinha a ambição de mudar o mundo. Uma coisa que eu aprendi é que mudando o seu mundo e dos seus próximos você começa uma mudança sistêmica, muito mais efetiva e duradoura", sentencia. "Precisamos trocar a narrativa do medo e da acumulação pelas relações de confiança e cuidado para com os outros e o meio ambiente. Só o reconhecimento e o respeito podem levar a isso."

A Curadoria Ecoa

  • Ítala Herta

    As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à pratica jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Ítala Herta, curadora do ciclo Re_construção.

    Imagem: Raul Spinassé/UOL
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Amanda Miranda/UOL

Re_construção

Ecoa propõe durante o mês de outubro um ciclo temático de reportagens e entrevistas sobre Re_construção. A proposta é falar sobre pessoas e ideias que oferecem diferentes maneiras de ver e lidar com nosso mundo e sociedade durante e após a pandemia.

Ao longo de três semanas nos aprofundaremos em debates que vão da necessidade de se falar (e agir) sobre as populações mais vulnerabilizadas, a luta antirracista, os saberes ancestrais e seus ensinamentos e, é claro, o mundo dos negócios e o futuro do trabalho.

Não perca nenhum conteúdo do ciclo temático!

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