Regenerar o mundo

Com crise ambiental e social em aceleração, cultura regenerativa se coloca como sucessora da sustentabilidade

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo Amanda Miranda/UOL

Não estranhe se você começar a tropeçar cada vez mais por aí em palavras como regeneração, regenerativo ou regenerar. Pode ser em um discurso, um post, uma propaganda, uma discussão de família ou em uma reportagem, como esta aqui. Vivemos tempos destrutivos e, digamos assim, degenerados. Mas muita gente está disposta a enfrentar essa situação.

A cultura regenerativa propõe inicialmente avançar na ideia de sustentabilidade, criada há mais de 30 anos. Atualmente, com as mudanças climáticas e os desastres ecológicos em aceleração, já não basta não agredir o meio ambiente, criar compensações para os desgastes e ficar no 0 a 0. É preciso virar o jogo e fazer com que todas as ações humanas tragam vitalidade para os lugares, dinamizando tanto os ecossistemas quanto as culturas tradicionais. É preciso ativamente recuperar os anos de consumo desenfreado.

Para tanto, cada atividade econômica deve ser planejada, desenhada e aplicada seguindo essa premissa. E, para ser efetivo, o processo deve acontecer nas pessoas, famílias, bairros, cidades, empresas, setores econômicos, regiões e países.

"A regeneração interna é o início. Temos que deixar a ideia de que controlamos a natureza e perceber que somos a natureza. Depois, colocar isso da porta para fora. As empresas, os órgãos públicos devem se ver como catalisadores da saúde do lugar aos quais mais pertencem", afirma o engenheiro ambiental Felipe Tavares, fundador do Instituto de Desenvolvimento Regenerativo, escola e consultoria dessa nova área.

Até cinco anos atrás, o termo regenerativo era mais ouvido quando se falava em biologia ou medicina. Afinal, os animais regeneram partes do corpo: lagartixa perde e recupera a cauda, e o próprio ser humano recompõe órgãos, como a pele ou o fígado. A ecologia também usa essa palavra para habitats que se revigoram, com ou sem a ajuda humana. Dali pulou para a economia.

"Temos de abandonar a visão mecanicista e linear, criada na era industrial, e entender que operamos com sistemas vivos, para os quais precisamos de um pensamento mais complexo. O mundo não é uma máquina: é um organismo. Por isso, temos de deixar as ações automáticas de lado e dar profundidade aos projetos e execuções", completa Tavares.

Viver é complexo

O pensamento regenerativo abarca uma coleção de áreas de conhecimento para a humanidade voltar a se enxergar como natureza. Para tanto, vai desde o estudo das práticas mais tradicionais até a biologia e a física mais recentes. Seu dicionário de termos começa na agroecologia e termina em xenofilia (afeição pelo desconhecido que permite desenvolver um design para "o outro", que pode ser um estrangeiro, uma minoria ou a própria natureza).

Entre os princípios mais interessantes está o da "esperança ativa", desenvolvido pela filósofa norte-americana Joanna Macy para encarar as dores internas e do mundo em relação a um futuro incerto. Seus textos sobre o "engajamento feliz" têm servido como guia para que as pessoas se fortaleçam para encarar a transição coletiva, onde é preciso ser o especialista em cuidados paliativos para os costumes ancestrais e a parteira do novo, nas palavras da própria Macy.

Outras ideias mudam a forma como vemos a natureza. Por exemplo, a biomimética busca replicar nas atividades humanas os padrões e as estratégias já testados na natureza. Já o conceito de salutogênese quer criar ambientes que melhorem a saúde dos humanos e outros seres vivos, afinal, a vida em toda sua complexidade é a base dessa lógica.

Thais Mantovani fez o mestrado de ciências holísticas na Schumacher College, referência no assunto, e é cofundadora da iniciativa Futuro Possível, uma das plataformas de divulgação da cultura regenerativa. "O holismo ficou como uma coisa de hippie no Brasil, mas seu sentido original é o olhar integral, ver o sistema como um todo e perceber as interconexões. A ciência acabou ficando muito separatista e reducionista, mas agora precisamos olhar o planeta em sua inteireza e precisamos levar em conta teorias mais complexas e sistêmicas."

O grupo está trabalhando com a empresa Natura para introduzir a cultura regenerativa dentro da empresa de cosméticos que já é um exemplo de gestão com cuidado ecológico. No mundo, a marca mais associada à regeneração é a norte-americana Patagonia, que produz roupas para práticas ao ar livre. A empresa criou até um índice interno de regeneração para seu processo produtivo.

Ser verde não é suficiente

A cultura regenerativa é algo que emerge no mundo todo. Nos EUA, ela tem um jeito mais pragmático e corporativo. Enquanto na Europa, possui um viés mais filosófico, cujo centro é a Schumacher College, fundada em 1990 pelo ativista pacifista indiano Satish Kumar. O campus é vizinho de Totnes, cidadezinha inglesa que se proclama em "transição econômica" e onde é mais fácil encontrar um terapeuta floral do que um encanador.

Por seu lado, o grupo Regenesis existe desde 1995 nos Estados Unidos e ajudou a planejar escolas, fazendas, resorts, parques e até bairros inteiros usando um processo que começa com o levantamento ecológico e cultural da área junto com moradores e trabalhadores e termina com o projeto de legado para todo o entorno e para as gerações seguintes. "Não adianta nada chegar com boas intenções e receitas verdes para melhorar uma região. É preciso ouvir e participar com as pessoas da área. Cada local tem sua história humana e natural, e ali estão as suas soluções. O futuro é algo que sai de muitas cabeças", afirma Ben Haggard, co-fundador do grupo.

Já Carol Sanford é a estrela do "regenerative business", em consultorias para executivos de conglomerados como Google, Dupont e Intel com foco em "pensar nos sistemas", "crescer com responsabilidade" e "perenidade do negócio". "Muitas empresas tratam seus funcionários como ratinhos de laboratório. Mas o mercado, assim como o mundo, é dinâmico e mutável. Se o sistema de trabalho não levar em conta a essência de cada trabalhador e não privilegiar a regeneração, essas pessoas não serão criativas e inovadoras no negócio", sentencia.

Na Europa, o biólogo alemão Daniel Wahl tem se destacado após publicar o livro "Design de Culturas Regenerativas", que foi lançado no Brasil pela editora Bambual, com direito a ciclo de palestras por aqui. "Temos que ter pensamento de longo prazo. Não podemos ficar com a mente presa a metas bimestrais, orçamentos anuais e ciclos eleitorais. Temos que agir como os índios iroqueses, que tomavam decisões pensando na sétima geração seguinte", sintetizou.

Ele estudou também na Schumacher College, uma verdadeira central de ideias ecológicas que tem uma grande procura por estudantes brasileiros, seja por cursos rápidos ou de pós-graduação. Entre seus professores está Fritjof Capra, autor do best-seller "O Tao da Física", que traçou paralelos entre a física moderna e o misticismo oriental. Essa mistura de ciência e espiritualidade é a marca dessa faculdade.

O movimento ecológico surgiu com força na virada dos anos 1960 para 1970, junto com vários questionamentos no mundo político. Em 1972, o pesquisador britânico James Lovelock publica sua teoria de Gaia, apresentando o planeta como um complexo sistema biogeoquímico, quase como um organismo vivo.

Nos anos 1980, são fundados os primeiros "partidos verdes", iniciando pela Alemanha. Na década seguinte, a ONU (Organização das Nações Unidas) promove grandes conferências internacionais sobre o tema, começando pela Eco-92, que aconteceu no Rio de Janeiro. Nesse período são difundidos os conceitos de sustentabilidade e desenvolvimento sustentável.

De lá para cá, o tema ficou cada vez mais urgente. E, não por nada, a cultura regenerativa ganhou mais força. O termo está, por exemplo, nos manifestos de dois dos grupos mais destacados da atualidade que defendem ação radical contra a emergência climática: tanto o Fridays for Future, rede criada pela adolescente sueca Greta Thunberg que prega greve semanal contra o aquecimento, quanto o Extinction Rebellion, grupo de desobediência civil criado na Inglaterra para evitar o colapso ecológico e a extinção humana.

A palafita é o futuro

Ecologia e economia são bem mais próximas do que se imagina. E a sonoridade já entrega. Ambas as palavras vêm do grego: eco significa "casa", logia é "estudo" e nomia vem a ser "lei". Ou seja, basta combinar o saber e as regras de nosso lar (ou planeta) para ter uma economia propriamente ecológica.

E isso foi o que fez a equipe do escritório Livre Arquitetura, de Belém (PA), projetando um centro cultural na cidade de Altamira, para recuperar a vitalidade da cidade afetada pela barragem de Belo Monte, quarta maior hidrelétrica do mundo, que entrou em plena operação em novembro de 2019.

O plano ouviu os moradores removidos pela inundação e pela posterior poluição dos bairros à beira da lagoa da cidade paraense. E o desenho do centro se inspirou na floresta amazônica, adotando colunas que lembram raízes das grandes árvores, e na arquitetura ribeirinha, usando ripas de madeira escurecida para paredes e passarelas, o que é típico das palafitas locais.

"Os moradores sorriram e se identificaram quando viram o projeto. O mais importante é fortalecer o sentido de pertencimento e valorizar as coisas de caboclo, o que há de bonito no interior, aliando o poético com o funcional", conta o arquiteto Luis André Guedes, que junto com seus colegas Ari Tomaz e Pablo do Vale, fez um curso com o grupo Futuro Possível sobre cultura regenerativa para responder as "inquietações" deles em aliar construção típica, cultura amazônica e ecologia em seus trabalhos.

Juntar saberes tradicionais e novas tecnologias é um dos caminhos da regeneração, e esses arquitetos fizeram isso. A ideia é usar madeira de apreensão do Ibama e Polícia Federal e escurecer sua superfície com maçarico, uma técnica japonesa para afugentar cupins, no lugar do método com óleo queimado usado pelos ribeirinhos. O projeto ainda busca financiamento para ajudar a recuperar a cidade que cresceu e murchou acompanhando as obras da hidrelétrica.

Outro exemplo no país é a moeda comunitária chamada pólen, que foi criada em Uberlândia (MG) para fomentar um circuito de serviços e produtos na região, incluindo alimentos orgânicos e artesanato. Quem entra e quem oferece algo nesse mercado ganha crédito inicial em pólen. Pode-se vender e comprar com esse dinheiro local desde aulas de espanhol até absorventes ecológicos.

"O pólen funciona como uma ferramenta de conexão, colaboração, incentivo e fortalecimento da rede local de pessoas que acreditam que é possível viver em um mundo com mais respeito e harmonia com a natureza", afirma Bernardo Marquez, cocriador da divisa mineira.

A chance única

Onde muitos enxergam um período de tensão e decadência, os adeptos da cultura regenerativa interpretam como um ponto de virada. As muitas crises da atualidade são, para eles, um chamado para uma mudança de como vemos e existimos no mundo.

"Vivemos em um momento de extraordinária oportunidade. O Renascimento e o Iluminismo foram variações relativamente menores para um tema já existente, se comparados à transformação que está em andamento. O nascimento de culturas regenerativas e de uma civilização humana regenerativa é a mais profunda inovação transformadora pela qual nossa espécie já passou desde que de caçadores e coletores nômades nos transformamos em agricultores sedentários, de uns oito a cinco mil anos atrás", escreveu Wahl no livro "Design de Culturas Regenerativas".

O movimento não tem respostas prontas, mas uma de suas normas é colocar as pessoas como agentes da mudança, tanto na criação como na execução das ideias. Tomar os territórios como ponto de partida e agir localmente é outra regra geral. "Temos que abandonar a narrativa da separação, do 'nós contra eles', das revoluções bruscas e da competição, e procurar o encontro, pensar juntos, colaborar e evoluir", argumenta Mantovani.

Se o mundo é um almoxarifado de ideias e práticas, muitas testadas e abandonadas, outras descartadas e depois recicladas, além das sonhadas e inéditas, a cultura regenerativa busca aproveitar e misturar todas as que priorizem a vida, em todas as suas formas.

Ou como a escritora e ativista ambiental indiana Arundhati Roy escreveu: "Outro mundo não é apenas possível, ele já está a caminho. Em dias calmos, eu posso ouvi-lo respirar."

Amanda Miranda/UOL

Re_construção

Ecoa propõe durante o mês de outubro um ciclo temático de reportagens e entrevistas sobre Re_construção. A proposta é falar sobre pessoas e ideias que oferecem diferentes maneiras de ver e lidar com nosso mundo e sociedade durante e após a pandemia.

Ao longo de três semanas nos aprofundaremos em debates que vão da necessidade de se falar (e agir) sobre as populações mais vulnerabilizadas, a luta antirracista, os saberes ancestrais e seus ensinamentos e, é claro, o mundo dos negócios e o futuro do trabalho.

Não perca nenhum conteúdo do ciclo temático!

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