Oxigenando o mercado

Indicada ao Grammy Latino com As Baías, Raquel Virgínia criou agência para promover diversidade e inovação

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Pedro Dimitrow/Divulgação

"Tudo que eu faço, inclusive como empresária, é para a arte em que eu acredito", diz a Ecoa a cantora e empreendedora Raquel Virgínia. Entre 2015 e 2021, ela fez parte do trio musical As Baías e a Cozinha Mineira e há pouco menos de um ano fundou a agência Nhaí, que oferece consultoria e outros serviços para marcas com foco na diversidade.

Mulher negra, trans e de periferia, Virgínia cresceu em diversos bairros da Zona Sul de São Paulo: Jardim Miriam, Parque Residencial Cocaia, Capão Redondo, Vila Santa Catarina. O vai-e-vem era determinado pelo tempo que conseguiam ficar na casa de algum parente — a mãe, solo, só tinha dinheiro para pagar o aluguel ou a escola e escolhia investir na educação da filha.

Com aptidão desde cedo para a arte, Raquel fez aulas de teatro na infância e foi incentivada a cantar. Depois de uma temporada em Salvador, onde tentou uma carreira como cantora de axé, voltou a São Paulo e entrou na graduação em história na USP. Foi na universidade que conheceu Assucena Assucena e Rafael Acerbi, com quem formou As Baías e gravou três álbuns de estúdio, dois deles indicados ao Grammy Latino.

O grupo se dissolveu em 2021, mas o escritório de Raquel acabou dando origem à Nhaí. Na sexta-feira (28), véspera do Dia da Visibilidade Trans, a empresa promove na avenida Paulista a primeira edição de um encontro entre empreendedores LGBTQIA+, em sua maioria negros, chamado Contaí.

A artista e empreendedora falou a Ecoa sobre o impacto de seu negócio no mercado, as dificuldades de ser uma empreendedora trans e negra, os caminhos abertos pelo trabalho em As Baías e, claro, a expectativa para a participação de Linn da Quebrada no BBB 22.

Ecoa - Qual a sua expectativa para a participação da Linn da Quebrada no BBB 22?

Raquel Virgínia - É algo que estou acompanhando muito de perto. Eu vi que no programa da Fátima Bernardes disseram que ela é uma mulher travesti e no final de semana a discussão era justamente de que iam querer higienizar e não iam falar a palavra travesti. E a Globo falou, fiquei muito feliz.

Estou muito contente com a entrada da Linn, acho que o Brasil precisa disso, ainda mais num ano como esse em que a gente vai viver. Eu espero que ela consiga trazer não só texto, mas também leveza, porque isso vai fazer muito bem para ela, para nós, para o movimento trans e travesti. Com certeza é um momento histórico do entretenimento brasileiro.

E que bom que é ela, porque ela tem muita sagacidade, inteligência e maturidade midiática. Ela sabe como reagir à imprensa, às câmeras, já foi protagonista de um documentário e o Big Brother tem um quê de documental. Estou bem esperançosa para que ela consiga criar uma jornada inesquecível, não só para ela mas para o entretenimento brasileiro em relação ao movimento trans.

Temos que aproveitar esses momentos para educar o Brasil. Um país sem educação de gênero ou com educação de gênero conservadora e retrógrada. Um programa dessa dimensão pode educar em larga escala

Raque Virginia, CEO da Nhaí

APU GOMES/AFP APU GOMES/AFP

Como o trabalho das Baías na música contribuiu para a visibilidade de artistas trans?

Eu e a Assucena fomos as primeiras artistas dessa geração a falar as palavras "mulher trans". As outras transicionaram durante o processo artístico. Nós tínhamos a Mel [Gonçalves, da Banda Uó] anterior a nós, que abordava isso de uma maneira muito diferente. [O fato de ser trans] não ganhava a manchete. Quando a gente surgiu, as pessoas levaram vários choques: o fato de ser uma dupla de cantoras trans e que não cantavam algo marginal, mas uma musicalidade extremamente intelectual, de MPB.

Tudo era muito impressionante para o mercado brasileiro. Porque até então, ser travesti ou trans no Brasil sempre estava associado a algo de humor. A gente veio com a questão trans e numa pegada de cantoras de MPB. Acho que isso significa, sim, um divisor de águas.

Também temos que agradecer a Mel e a várias outras mulheres trans e travestis que nem tiveram condições de produzir um álbum, de chegar nessa concepção. Uma vez, eu e a Assucena encontramos com o Luiz Melodia numa festa e ele disse: "Nossa, vocês sabem que existiam duas mulheres trans na década de 1980 que cantavam juntas também?" Então o que acontece é que há um processo de invisibilização.

A gente fez um trabalho muito importante, não à toa a gente continua sendo muito respeitada. A banda acabou, mas o trabalho das Baías continua sendo muito relevante.

Rafa Kennedy/Divulgação Rafa Kennedy/Divulgação

E agora você é CEO de uma agência. Como a Nhaí surgiu?

Quando a banda se dissolveu, eu já estava muito inclinada a expandir o que o escritório estava fazendo. A gente já tinha prestado uma consultoria para a PepsiCo, num projeto estrelado pela Gloria Groove e de que as Baías também participaram. Isso abriu totalmente as portas para o que sou hoje.

Porque existe uma bagagem intelectual que adquiri ao longo de anos de movimento social e dentro da USP. Por ser uma mulher negra, de periferia e trans, estou inserida tanto na pauta de recorte de classe quanto de gênero e raça. E há uma expertise que o mercado publicitário e do entretenimento querem cada vez mais. Há uma sede muito grande do mercado hoje em compreender essas pautas porque há uma pressão do público.

A Nhaí vem nesse sentido. A gente quer fazer com que essa pauta ganhe cada vez mais capilaridade e que o ecossistema da publicidade e do entretenimento sejam mais legítimos quando o assunto é diversidade. E que a diversidade não esteja só na frente das câmeras, mas seja 360º.

A gente consegue sinalizar para a marca algo com um repertório que eles não têm, porque infelizmente não têm esse público interno. Uma marca pode ter uma fornecedora trans e isso também simboliza um avanço, uma oxigenação no ecossistema do mercado publicitário e do entretenimento brasileiro.

Todas as marcas devem cumprir uma responsabilidade social mínima para serem relevantes e com propósito. As pessoas não estão mais só interessadas em comprar um produto e ponto, elas querem a história do produto, quem está envolvido nele.

Raquel Virgínia, CEO da Nhaí

Renan Ramos/Divulgação

Como é feito esse trabalho junto às empresas?

Quando entro em uma marca, geralmente é de forma muito decisiva. É diferente de quando a empresa tem uma trainee que é trans, porque não necessariamente essa pessoa vai participar das decisões. Como consultora, eu falo com a diretoria de igual para igual.

Além de haver um confronto saudável por eu ser de fora, as marcas tendem a ouvir porque ofereço um serviço realmente de qualidade. Não acho que a Nhaí deva ser contratada só por uma questão de representatividade, mas porque nós somos ótimos fornecedores. Tanto eu quanto os meus colaboradores temos realmente condições de operar no mercado da melhor maneira possível, sendo influentes na questão das narrativas que a marca vai escolher, de curadoria do elenco, desenvolvendo um projeto inovador para essa marca.

A diversidade não é apenas uma questão ética e moral, mas de inovação. Hoje o mercado mais avançado quer justamente experiências inovadoras. O público quer novas experiências. Quem mais pode propor novas experiências do que uma travesti, negra, dona de seu próprio negócio?

Rodolfo Magalhães Rodolfo Magalhães

De que maneira a diversidade interna molda o trabalho que vocês fazem?

Tenho hoje cinco pessoas trabalhando comigo e sou muito feliz com a minha equipe. Cada vez que a gente constrói um projeto eu vou tendo mais certeza de que estou com a equipe certa, porque participo de reuniões em outros espaços e é muito diferente o repertório. A gente fala de coisas aqui que em outras agências certamente as pessoas não estão falando, e esse é o nosso diferencial.

A gente vai mexendo no acabamento do produto e isso vai dando uma outra mensagem, criando outros protagonismos. O ecossistema precisa ser oxigenado, porque é essa cadeia de raciocínio que faz com que o produto final seja diferente.

É diferente ter pessoas negras no escritório, mas a liderança ser branca e cis. Há o fato de eu ser a CEO e ser trans e negra. Isso muda tudo. Mas é muito mais difícil para mim em vários níveis, desde uma reunião onde eu não sou levada a sério como potencial fornecedora, o quanto eu preciso reforçar que a minha entrega é completa, que a empresa é organizada...

O que mais é dito é que empreendedor tem que errar. Mas será que eu posso errar mesmo, sendo uma mulher trans negra? Quantas vezes uma empreendedora negra trans pode errar e quantas vezes um empreendedor branco cis pode errar... Será que um erro meu não é fatal?

Eu posso te dizer que sim. Algumas vezes em que errei, não teve volta. E eu tenho certeza que para outros empreendedores seria tipo assim: "você é corajoso!" Já vi empresários brancos cometerem os mesmos erros que cometi e os desdobramentos não foram os mesmos.

+Representatividade

Transempregos

Maite Schneider transforma sonhos em realidade para a população trans

Ler mais

Educatransforma

Noah Scheffel construiu seu próprio modelo de família e pariu um projeto social

Ler mais

Transcendemos

Gabriela Augusto já ajudou dezenas de empresas a pensar sobre diversidade

Ler mais
Topo